As civilizações indígenas que nos antecederam são parte importante do arcabouço que nos configurou c
Entre os muitos preconceitos relativos às etnias indígenas brasileiras, a quem tanto devemos, enquanto brasileiros, que ainda persistem em pleno século XXI, quero apontar para o fato de que os povos indígenas da grande família tupi-guarani, da macro família jê, da família tucano, karib, aruaque etc. não eram tidos como povos "civilizados" ("civilizado" unicamente era o europeu; eu nasci em 1960 e me lembro de que, para a classe média de meados do século XX, iam ainda mais ao extremo de considerarem, o que depois, na década de 1990, passaria a ser chamado de "primeiro mundo", na era do neoliberalismo globalizado, de países "civilizados", ou países "adiantados", somente os que estavam ao norte do hemisfério, dos dois lados do Atlântico, comparando-nos negativamente a eles; como se nós, brasileiros, aqui na metade sul do hemisfério, na tropicália, não fôssemos um país "civilizado" como os da neve; infelizmente um juiz importante e progressista brasileiro ainda emprega tal terminologia arcaica em seu blog).
Portanto, gostaria de fazer um contraponto a este entendimento bem curto do que vem a ser uma "civilização" e afirmar que, num significado antropológico mais amplo do que o significado comumente empregado pela história tradicional eurocêntrica, a civilização pode também designar toda uma cultura de vários povos que conjugam certos traços em comum e o acervo de suas características sociais, ecológicas, científicas, econômicas, religiosas e artísticas próprias, de organização política etc., com semelhanças marcantes apesar de distintos traços particulares entre si. Portando, quando falo em civilização indígena (que tanto pode ter um cunho de cultura material e cultura imaterial), tanto no período pré-cabralino e pós-cabralino, na história do Brasil, estou a me referir a estes elementos culturais comuns entre estas famílias de povos ameríndios que habitavam e ainda habitam o território que hoje chamamos Brasil. Sei que estou usando o termo em sentido muito mais amplo do que aquele em que é comumente usado e que isto entra em confronto com o significado mais comum do termo tanto para o senso comum, quanto para o senso de muitos historiadores (mas o utilizo em relação às sociedades indígenas brasileiras exatamente para confrontar o preconceito eurocêntrico e etnocêntrico de nossa classe média que vê tudo que diz respeito aos povos indígenas como selvagens, primitivos, incivilizados, pouco desenvolvidos, pobre etc. e também para demostrar para os historiadores que seguem, sem questionamentos, os paradigmas de uma história positivista ou tradicional, que eles precisam rever seus conceitos sim).
Creio que só avançaremos na luta por uma sociedade mais equilibrada (e para um conhecimento mais amplo e consolidado) quando tivermos o necessário confronto dos preconceitos, advindos da ignorância, com conhecimentos mais concretos e mais complexos (dissolvendo a ignorância generalizante em conhecimentos mais específicos e concretos), porque acredito que uma das maneiras eficientes que temos de combater a discriminação, a marginalização, o desprezo e a truculência que surge por causa dos pré-conceitos (e por pré-conceito quero designar o fenômeno que acontece quando as pessoas já têm conclusões dogmáticas sobre certos temas e assuntos sem sequer conhecerem, ou seja, elas têm um pré-conceito, sem terem passado pelo processo de investigação sobre a realidade - o correto seria somente chegarem a um conceito consolidado, embora dialético, sujeito a ser revisto a todo momento, depois de terem passado pelo processo de investigação da realidade), é ensinar conhecimentos desconhecidos (que é o papel do professor, evidentemente, especialmente um professor de história) para um público que não domina tais conteúdos.
Um dos mitos preconceituosos, bem típicos, relativos aos índios brasileiros era o de que, apesar deles serem nômades, de modo geral, pensava-se (e pensa-se ainda) que eram povos enraizados em um determinado território e que não tinham contatos amistosos (para além da guerra) com outros povos indígenas de outros territórios (muito menos faziam comércio entre si, mesmo que à base do escambo). Além disso, pensa-se que estes povos "primitivos" ou "não-civilizados" eram incapazes de compreender elementos de geografia, impossibilitando o domínio, conscientemente construído por eles, que poderiam ter sobre vastos territórios e o conhecimento de outros domínios territoriais de outros povos; o que não corresponde com a realidade concreta que os documentos históricos estão aí para comprovar (não só sabiam calcular distâncias e fazer o reconhecimento do relevo, da hidrografia, da vegetação e clima, mas podiam representar este tipo de conhecimento que tinham de forma gráfica, na areia, por exemplo, traçando mapas, o que revela que havia mapas mentais em suas cabeças, o que representa um conhecimento geográfico abstrato que dominavam previamente e que esta habilidade não era monopólio do branco colonizador; ao contrário, foi uma habilidade roubada dos índios, que conheciam realidades geográficas que o europeu ainda não conhecia por si só, pelo branco colonizador em proveito próprio; hoje fala-se de espionagem industrial ou em transferência de Know-How, mas foi isto mesmo que ocorreu entre portugueses e índios; tanto porque os portugueses se apropriaram, por métodos nada éticos, do Know-How indígena, quanto porque houve transferência voluntária de Know-How por parte dos índios, especialmente os tupinambás e tupiniquins, aliados de primeira hora dos portugueses, para os brancos portugueses e espanhóis; sem esquecer dos outros aliados dos índios, os franceses) .
Ora, isto eu aprendi de forma mais ampla, foi com Sérgio Buarque de Holanda, em Caminhos e Fronteiras. Ou seja, aprendi a valorizar não só a importância estratégica das trocas culturais que os portugueses fizeram, principalmente com a etnia tupi-guarani (mas também com as outras etnias), de mil maneiras que ainda estão muito entranhadas em nossa cultura luso-brasileira ainda hoje em dia, mas a importância estratégica dos conhecimentos geográficos que os índios tupis transmitiram aos portugueses seus aliados (não por mero acaso, grande parte dos acidentes geográficos brasileiros ainda hoje têm nome indígena, porque eram os índios que os conheciam antes, os nominando um a um e transmitindo este conhecimento aos portugueses, que preservaram a denominação anterior). Isto foi estratégico para o desenvolvimento das bandeiras paulistas (e foram os paulistas os que mais se indianizaram ao ponto de não só falarem a própria língua indígena geral, o nhehengatu, como sua segunda língua, mas também se casarem, à maneira indígena, com várias mulheres índias e construírem seus laços estratégicos de união familiar, com vastos clãs, sobre vastas áreas; o que não era muito diferente do que a própria nobreza europeia, "civilizada", praticava na Europa). Além disso, descobri, com Sérgio Buarque de Holanda, surpreso e maravilhado, que os índios tupi-guaranis, por exemplo, tinham até mesmo um sistema de estradas, organizado e conscientemente estruturado, que percorria grandes distâncias por entre florestas, cerrados, montanhas e rios.
Não sabia, antes disto, que havia, por exemplo, o Peabiru, tão importante para o entendimento das bandeiras e da ligação que o atual território do estado de São Paulo sempre teve com o território central do continente sul americano (bem antes de chegarem os europeus), onde hoje está situado tanto o Mato Grosso do Sul, quanto o Paraguai, a Bolívia e o norte da Argentina, porque o conhecimento sobre a história indígena que nos legou a história tradicional escolar, nos anos 1960 e 1970, quando fiz minha educação básica, em Brasília, em plena ditadura militar, era extremamente superficial, positivista e eurocêntrico, No livro didático de história do ginásio, que foi de meus irmãos mais velhos e meu, posteriormente, o que se depreende da história do Brasil é como se, depois de Cabral, não existissem mais índios no território colonizado pelos portugueses; a não ser o legado cultural genérico que deles sobrou, como a rede, a cestaria, a mandioca, o milho etc. Isto tanto porque omitia-se a escravização e o massacre genocida realizado contra os povos índios (porque, em plena era do Brasil Ame ou Deixe-o, da ditadura, a Transamazônica estava "desbravando a floresta amazônica" para trazer o progresso, através do presidente Médici, quase exterminando o que sobrou dos povos indígenas que estavam pelo caminho, como os Kreen-a-Karore - hoje conhecidos como Panará - mas porque o foco da história permanecia nos "grandes homens" brancos portugueses que foram governadores gerais, bandeirantes, herois nacionais, príncipes, imperadores etc. - claro que confundindo a história em geral, em suas várias dimensões possíveis - a social, a história do cotidiano, a história das mentalidades, a história econômica, a história cultural etc. - com a história política das elites dominantes). Fazer outro tipo de historiografia, naqueles tempos, era considerado "subversivo" e altamente perigoso para a "segurança nacional." Talvez seja por isto mesmo que ainda temos este grande déficit de conhecimento histórico em toda uma imensa geração de classe média, a velha classe média que está sendo confrontada agora por uma nova classe média emergente (graças a Deus) e isto em pleno século XXI (com parte considerável de nossas super-estruturas, geradas durante a ditadura, como a Rede Globo de Televisão, ainda de pé e com a mesma mentalidade que tinham na ditadura militar positivista).
O conhecimento sobre o caminho do Peabiru nos dá uma importante pista de que os nossos tão desprezados índios "incivilizados" tupi-guaranis não só tinham contatos regulares com o Império Inca, mas faziam certas trocas materiais e imateriais com eles (mesmo que este fenômeno não seja o mesmo fenômeno existente na Europa, desde o fim da Idade Média até o começo da Idade Moderna, com maior complexidade, fenômeno que chamamos de comércio e mercantilismo, não se pode negar que era uma rota de intercâmbio e não uma rota construída simplesmente, pelos nossos índios ou pelos incas, para um "passeio de férias" - as evidências concretas do Peabiru indicam que este caminho ia até os Andes, no então território inca; o que daí se infere, antes mesmo da realização de novas pesquisas e novas escavações arqueológicas que poderão aprofundar, cada vez mais, este conhecimento, é que havia um sistema de trocas entre o Império Inca e os povos indígenas brasileiros, além de um sistema de trocas entre os próprios povos indígenas brasileiros). Penso que é necessário continuar por este veio de pesquisa historiográfica e arqueológica, ecológica, física etc. para resgatarmos parte importantíssima de nossa pré-história que tornará melhor compreensível as tendências que se desenvolveram posteriormente em nossa história desde que os portugueses colocaram os pés em Porto Seguro, em 1500. As tendências posteriores não ocorreram por mero acaso, mas dentro de certas tendências já esboçadas antes mesmo dos portugueses chegarem por aqui.
Claro que não estou a negar, aqui, que este encontro de povos, foi um encontro violento, devastador para a maioria dos povos indígenas, negando o papel genocida dos portugueses (que encontraram, em 1500, aproximadamente 1.000 povos indígenas, dentro destas famílias maiores que alistamos acima, mas, ao cabo de 500 anos de colonização destas mesmas terras de Pindorama, por levas e mais levas de europeus e africanos, o número destes povos tenha sido reduzido a mais ou menos, dependendo do critério que se adote, 200 povos apenas; não podemos esquecer que por volta de 800 povos indígenas foram exterminados em nossa história, um dos maiores genocídios da história). O que estou afirmando é que não foi somente isto que aconteceu em nossa história, porque em meio a toda esta devastação genocida e ecológica é que foi nascendo o que chamamos de Brasil atual (não por acaso, portanto, vemos uma estrutura de classes sociais que tem raízes na cor e na origem étnica e uma elite dominante imbuída de tantos preconceitos etnocêntricos contra os que não possuem a pele branca como os europeus, mesmo que precisemos dosar esta afirmação que estou fazendo, porque parcelas de nossa elite dominante não só tem lá o seu pezinho na senzala, ou na cozinha, como disse o próprio FHC, nos anos 1990, em campanha presidencial, mas também os genes da mãe índia, como revelou pesquisa genética entre a elite universitária mineira, feita pela UFMG; alguns têm mais a porção indígena do que a porção africana, isto depende de vários fatores, mas o interessante é a constatação de que uma parte de nossa elite tem lá a sua porção de genes indígenas no DNA mitocondrial que revela que foi a mulher índia emprenhada pelo macho português, já que, durante a colonização, não se vê casos, pelo menos até agora não consegui detectar isto, de índios se casando ou se amasiando com mulheres portuguesas; o que se vê é o contrário, portugueses se amasiando ou se casando com as índias, muitas delas, filhas de caciques, como foi a Bartira, filha do cacique Tibiriçá, que está na origem da formação da maior cidade brasileira).
Outro elemento que quero apontar aqui é o fato de que boa parte das cidades brasileiras nasceu onde havia uma aldeia indígena, como foi o caso de São Paulo, por exemplo (e eu suspeito, como hipótese, até agora sem nenhuma prova concreta, que depende de escavações arqueológicas, que Campinas também nasceu em uma área que abrigou uma aldeia indígena antes, onde hoje é o centro da cidade e que os famosos campinhos de onde provém o nome da cidade podem muito bem ter sido as capoeiras, no meio da floresta atlântica, tanto da aldeia quanto das roças que existiram antes da devastação e das correrias causadas pelas próprias bandeiras preadoras de índios), que só se tornou possível, porque o cacique Tibiriçá deu autorização para o padre Manoel da Nóbrega subir a Serra do Mar e construir seu colégio jesuíta. Antes, como agora, as comunicações entre estas aldeias (que se tornaram cidades), os caminhos indígenas, são a base do nosso sistema de rodovias e ferrovias e ainda são utilizados tanto na navegação hidrográfica, quanto na navegação costeira. Ou seja, as raízes mais antigas de nosso atual sistema de estradas e portos recua para muito antes dos portugueses chegarem por aqui (o que os portugueses souberam fazer foi aproveitar, em proveito próprio, todas estas diretrizes já percorridas pelos povos indígenas que subjugaram). Estou me aprofundando, aos poucos, nesta pesquisa dos diversos tipos de conhecimentos que nos foram legados pelos povos indígenas (na verdade, desde minha adolescência é que venho fazendo isto, em Brasília), mas, em especial, por causa dos projetos de documentários que estou elaborando em parceria com o MIS de Campinas, nos conhecimentos que os nossos povos indígenas tinham sobre a ecologia florestal tropical (o conhecimento da botânica e da fauna florestal que eles tinham era imensamente superior ao que os europeus portugueses tinham e foi com o índio que o português aprendeu quase tudo que diz respeito ao habitat tropical). Tanto que, a maioria dos nomes das árvores e plantas, assim como de animais, no Brasil, tem o nome indígena como vemos em capivara. jaguatirica, tatu, mandioca, cupuaçu etc. Alberto Jaguariúna, 4 de janeiro de 2012
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