É necessário replantar o saber e as tecnologias indígenas perdidas - todo dia é dia de índio
Bem ou mal que seja, no início do século XXI, a situação dos índios brasileiros é bem melhor do que era no início do século XX. Isto se dá tanto em relação à legislação, quanto em relação à delimitação legal de suas terras ancestrais. Na educação, por exemplo, a lei 10.639/03 obriga o ensino básico a incluir no currículo a história e a cultura indígena para que, aos poucos, a sociedade brasileira vá incorporando formalmente, em sua cultura escolar, nossa riquíssima herança indígena como parte indissolúvel de nosso patrimônio histórico e como fonte de riqueza sócio-econômica, cultural e política que nos faz ser diferentes frente a outros povos ocidentais e orientais. Não falamos apenas o português, nem somos um único povo mestiço, mas muitas línguas (mais de 170) e muitas etnias (mais de 200). Somos uma ampla e complexa confederação de povos que torna nosso perfil sócio-econômico, político e cultural muito mais rico do que supunha uma minoritária velha classe média.
A riquíssima tecnologia sócio-ambiental que os povos indígenas dominavam precisa ser melhor compreendida pelas amplas massas da etnia brasileira muito além dos estereótipos preconceituosos gerados, principalmente, pela sociedade industrial capitalista no século XX. Havia muitos preconceitos quanto a estas tecnologias desde os primeiros tempos coloniais, mas, nos primeiros séculos, os portugueses até que possuíam mais abertura para assimilar muito destas tecnologias (a tal ponto que muito de nossa cultura luso-brasileira é um amálgama entre a cultura lusitana e as culturas indígenas, principalmente a cultura da família tupi-guarani). Entretanto, com o advento da sociedade industrial, estas tecnologias, aparentemente rústicas (muitas vezes preservadas pelos caiçaras ou pelos caipiras), foram sendo consideradas, cada vez mais, "atrasadas" e produtos de superstições e ignorância dos índios (quando, na verdade, a biologia e a ecologia estão aí para comprovar, as tecnologias dos índios eram superiores a muitos aspectos das tecnologias mais destrutivas e mais nocivas ao meio ambiente que a sociedade industrial criou). Uma das metas que me coloco, enquanto pesquisador e historiador, é a de difundir, cada vez mais, para amplas massas, o patrimônio histórico que os índios nos legaram através destes séculos (e, pela pesquisa arqueológica que está em andamento, podemos também dizer que através dos milênios que antecederam nossa era). Como sou educador, evidentemente, interesso-me em difundir, cada vez mais, não só para o público escolar, mas para a sociedade como um todo, os saberes indígenas e, ao fazer isto, não estou fazendo nada mais do que cumprir a legislação presente na lei 10.630/03.
A coivara praticada pelos povos indígenas, quando abriam um área de floresta para um novo roçado, era feita em escala artesanal e controlada, de tal modo que não prejudicava o ciclo de sucessão florestal e a ecologia dos biomas onde praticavam sua agricultura, em pequena escala. A produtividade da mandioca, por exemplo, era espantosa para o sustento de povos inteiros e, hoje em dia já se sabe disto, por causa das pesquisas arqueológicas por todo o pais, e na Amazônia, em específico, havia um povoamento de áreas à beira dos grandes rios amazônicos que criou núcleos populacionais que poderiam muito bem ser considerados cidades (pelos mesmos critérios que se empregam para dizer que Jerusalém e Damasco são duas cidades das mais antigas do mundo, quando sabemos que estes núcleos populacionais, mil anos antes de Cristo, não passavam de 2.000 habitantes; ora, os núcleos populacionais indígenas de que falo, eram superiores a esta população da antiga Jerusalém e Damasco). Florestan Fernandes já havia indicado, por estimativa, baseando-se nas tecnologias agrícolas e nas descrições dos primeiros cronistas coloniais do século XVI, qual deveria ser a população provável dos povos tupis-guaranis no primeiro século de colonização. É bom não se subestimar estes números, porque, como afirma Darcy Ribeiro, por outro lado, a população indígena no Brasil superava o montante de 6 milhões de índios (enquanto que a população portuguesa, na mesma época, não passava de 1 milhão de habitantes; é importante perceber esta proporção para que se entenda que havia mais índios morando em terras que hoje chamamos de Brasil do que portugueses em Portugal).
Sempre gosto de lembrar, aos nossos estudantes, de que, quando falo em tecnologia, não estou a me referir à tecnologia eletrônica, mas a algo muito mais antigo e genérico do que este tipo específico de tecnologia recente (claro que a tecnologia eletrônica é uma tecnologia, mas não se pode confundir o conceito de tecnologia com estas tecnologias surgidas com a Revolução Industrial). Ou seja, como costumo afirmar para os estudantes, é bom não esquecer o conceito mais genericamente simples de tecnologia: tecnologia é conhecimento aplicado. Simples assim. Isto quer dizer que o ser humano cria tecnologias desde que apareceu no planeta, há milhões de anos, não apenas desde que a Revolução Industrial criou o sistema capitalista que conhecemos. Geralmente eu começava a ensinar história indicando o domínio do fogo como a primeira tecnologia criada pela espécie humana, mas, aos poucos, fui me dando conta de que mesmo antes disto os primeiros homínidas já dominavam tecnologias de sobrevivência em meio à natureza planetária e tecnologias de vivência social que os distinguia de outras espécies animais (sim, é preciso dizer que há tecnologias sociais também, relativas à própria organização social).
Um roçado de mandioca é fundamental para a sobrevivência dos povos indígenas que praticam a agricultura. A mandioca é originada da Amazônia há milênios atrás e foi sendo disseminada por todo o território brasileiro, mas, na Amazônia, ainda hoje, existem mais de 130 variedades de mandioca que são preservadas intactas, sem cruzamentos, como repositório de estoques genéticos importantes de serem preservados para a própria economia indígena (e os índios, tidos como sem tecnologia e ciência, sabem muito bem quais são os motivos para preservarem intactas as variedades da mandioca ao longo de tantos séculos). Há inúmeras maneiras de se trabalhar a mandioca e transformá-la tanto em comidas, quanto em bebidas. Embora a mandioca tenha sido levada, pelos portugueses, para a África (e tenha se tornado por lá também uma importante fonte de alimentos), é aqui neste lado do Atlântico que há a maior variedade de subespécies desta planta tão resistente e tão pouco exigente em matéria de nutrientes do solo (por isto mesmo é que ela se dá bem até mesmo em solos muito pobres). Foi com os índios que os portugueses aprenderam a se alimentar desta planta e suas raízes (tudo da mandioca é aproveitado, não só as raízes), mas ainda hoje em dia não sabemos de toda a imensa variedade de receitas possíveis com as diversas variedades de mandiocas disponíveis e guardadas por povos indígenas da Amazônia e esta poderia ser sim uma surpreendente fonte de alimentos melhor aproveitada do que é pela agricultura familiar (a agricultura familiar já é a que fornece toda a mandioca consumida Brasil afora, tanto in natura, quanto processada industrialmente em forma de vários tipos de farinhas; mas não é comum, entre nós, como entre os índios da Amazônia, por exemplo, o consumo da farinha de mandioca com peixe seco; um determinado tipo de paçoca que é muito nutritivo e adequado para ser conservado fora da geladeira por muitos e muitos dias). Se formos falar dos diversos tipos de beijus e tapiocas, nem teríamos muito tempo para isto, tal é a variedade de possibilidades culinárias que este tipo de consumo da matéria prima da mandioca fornece. Os povos indígenas da Amazônia conhecem inúmeros tipos de beijus, feitos com inúmeras variedades de mandioca que poderiam muito bem ampliar ainda mais o imenso leque de opções culinárias de nossa própria indústria alimentícia e de nossa própria gastronomia.
A importância da criação do Parque Nacional do Xingu é indescritível e é necessário sim sempre voltarmos a esta temática de mil maneiras possíveis. Toda a política indigenista de meados do século XX em diante deriva do que se criou ali: do exemplo e dos problemas enfrentados é que foram surgindo aperfeiçoamentos até chegarmos à atual legislação indigenista e à demarcação das inúmeras terras indígenas e reservas naturais não só na Amazônia, mas em todo o país. Foi ali que se começou, drasticamente, a barrar o genocídio indígena, mesmo que este processo não tenha sido fácil, nem tenha ocorrido como os antropólogos e indigenistas gostariam que ocorresse (inúmeros povos, durante a ditadura militar, ainda foram massacrados). Ainda há poderosos interesses ligados ao grande capital e ao pequeno capital, em várias partes do país, que querem tomar dos índios o pouco que lhes sobrou (não devemos esquecer que todas estas terras eram deles e que eles não chamaram nenhum europeu para virem morar com eles, mas foram invadidos, cada vez mais, ao longo da história, por hostes e mais hostes da etnia truculenta que os escravizou e tomou suas terras; a nossa etnia).
A criação do Parque Nacional do Xingu foi um evento estratégico, no médio e longo prazos, para a preservação tanto das identidades étnicas indígenas, quanto para a preservação dos ecossistemas amazônicos e de outros biomas que teriam desaparecido rápida e completamente se não houvesse este tipo de iniciativa. É impressionante como antigos preconceitos contra os índios ainda estão arraigados no dia a dia da sociedade brasileira. Até mesmo no Congresso Nacional, quando os índios adentraram o recinto do plenário da Câmara dos Deputados, recentemente, foi possível ver como a ignorância da cultura dos índios gera falsos temores preconceituosos: os deputados e deputadas correram de medo de uma manifestação simplesmente ritualística de povos indígenas que estavam ali para protestar por seus direitos contra uma pequena minoria ligada ao agronegócio que se acha no direito de revogar os direitos indígenas ancestrais a suas terras já delimitadas e homologadas. É ridículo assistir a reação de deputados diante de índios que não irão comer seus corpos em rituais antropofágicos, mas apenas manifestar seus direitos cidadãos garantidos na Constituição.
As tecnologias tradicionais indígenas, hoje em dia, sem que os povos indígenas tenham perdido sua própria identidade étnica, convivem com modernas tecnologias eletrônicas absorvidas da etnia luso-brasileira maior que circunda o território de povos indígenas mais ancestralmente ligados a esta terra sul americana.
As convicções eurocêntricas e etnocêntricas que dominavam os portugueses, quando eles chegaram ao Brasil, em 1500, impediram que as tecnologias dominadas pelos povos indígenas fossem plenamente absorvidas. Claro que não estou ignorando que os portugueses absorveram muito destas tecnologias indígenas, desde as tecnologias agrícolas (da coivara e do plantio da mandioca e milho, por exemplo), das tecnologias de navegação e de locomoção geográfica por distâncias e estradas que só os índios conheciam; mas também das tecnologias da sobrevivência na floresta e nos biomas não florestais outros. O que estou afirmando é que, a despeito desta assimilação básica de tecnologias indígenas que estão na base da formação da cultura e do arcabouço infraestrutural da formação social brasileira, muito dos saberes e das tecnologias dos diversos povos indígenas brasileiros foi ignorada, por arrogância e por cegueira cultural dos luso-brasileiros. Entretanto, não só porque a pesquisa antropológica avançou muito durante todo o século XX, mas também porque pelo menos pouco mais de duzentos povos indígenas sobreviveram ao genocídio e à devastação e o conhecimento imemorial que eles têm sobre o manejo da floresta e dos biomas não florestais ainda está arraigado suficientemente em suas culturas e em suas organizações sócio-econômicas e políticas para que se afirme que isto é uma grande dádiva destes povos para si mesmos e para a etnia maior que os envolve e não pode mais continuar a ser desprezada e discriminada como ainda acontece.
Bem fazem os índios isolados, na Amazônia, que não querem contato algum com o chamado "homem civilizado." Para quê? Para que eles lhes tragam doenças que matam de um terço a metade de sua população logo depois do primeiro contato?... Ou para que eles tomem suas terras e seus saberes (ou melhor, para que destruam suas terras e seus saberes)?
No mundo digital em que vivemos agora, as antigas tecnologias imemoriais têm agora uma possibilidade maior de serem preservadas e difundidas do que tinham em meados do século XX. Os materiais e produtos confeccionados pelos índios são não só importante fonte de renda para os povos indígenas, mas possibilidades de design para a própria indústria e comércio da etnia brasileira maior, com um valor agregado que só os povos indígenas podem imprimir em seus artefatos, pelo domínio e destreza com que os produzem e pela criatividade estética que os move.
Nesta postagem quis me referir a alguns destes conhecimentos dos povos indígenas brasileiros que constituem uma verdadeira riqueza etnobotânica estocada em terras brasileiras (mas ainda muito ignorada pela própria academia e centros de pesquisa) para ressaltar que, em tempos de engenharia genética, transgênicos e "economia verde autossustentada," temos uma imensa riqueza sequer percebida pela maioria do povo brasileiro que ainda vê, infelizmente, os povos indígenas como "atrasados". Nós temos todas as condições, no início deste século XXI, para não deixar de explorar socialmente, até mesmo na dimensão econômica, esta riqueza sócio-cultural herdada em nosso caldo de cultura colonial (e que os povos indígenas ainda detém) em proveito do fortalecimento de nossa matriz sócio-econômica, cultural e política face ao concerto das nações. Felizmente somos tropicais, sul atlânticos, sul americanos e descendentes de povos indígenas que por aqui estão há milênios! A riqueza da biodiversidade dominada pelas tecnologias indígenas é um patrimônio de valor incalculável economicamente. Graças a Deus temos a oportunidade de conhecer melhor, através de povos indígenas sobreviventes, toda esta imensa riqueza que está armazenada nas tradições imemoriais que ainda são mantidas pelos povos indígenas da floresta, do cerrado, do pantanal, etc.
Alberto Nasiasene Todo dia é dia de índios (não somente o dia 19 de abril) Jaguariúna, 18 de abril de 2013
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