Nosso compromisso com a história indígena é indissociável de nosso compromisso com a nossa própria h
- Alberto Nasiasene
- 4 de jun. de 2016
- 10 min de leitura


Tenho verdadeira aversão a quem pratica uma historiografia hermética, platônica, distante de si mesmo e completamente alheada da vida ao redor e das temáticas prementes da atualidade. Claro, não estou aqui a dizer que a prática da pesquisa histórica, com bases científicas, deva ser uma mera militância, muito menos uma militância ideológica ou partidária. O que estou dizendo é que não é possível uma pesquisa científica (em qualquer área que seja) que não parta do próprio sujeito que pesquisa (porque, até onde sabemos hoje, as pedras não pesquisam, nem realizam ciência alguma). Portanto, impossível que esta pesquisa não esteja firmemente ancorada no presente de quem pesquisa, mas também em sua ambientação ideológica, nas lutas cotidianas nas quais está inserido, no contexto histórico em que vive o pesquisador (e isto é válido até para os cientistas que fazem uma pesquisa astronômica relativa às áreas mais remotas do universo, porque a fazem a partir do planeta Terra e neste período histórico em que vivemos como humanidade).


Falo mais, não é possível fazer arte de forma descompromissada de si mesmo (como alguns supostos construtivos e abstratos pensam que fazem, uns até como quem faz um trabalho em uma linha de montagem, com hora marcada para começar e terminar, mas também com o conceito de que "não existe inspiração", apenas trabalho - ridículos que não merecem sequer ser mencionados); muito menos ciência, especialmente a da história social, econômica, cultural e política. Por mais que queiramos mentir para nós mesmos, fazemos ciência a partir de temáticas que nos desafiam e estas temáticas só nos desafiam porque estão intrinsecamente ligadas a nossa vida e ao nosso contexto social.


Por outro lado, é muito delirante pensar que nosso conhecimento científico começou somente a partir de uma determinada data (geralmente pensam que depois de adentrarem os portões do mundo universitário), porque não é bem isso que acontece na maioria das vezes. Nós pesquisamos o que nos apaixona porque, muitas vezes, esta paixão está intimamente ligada à trajetória de nossa vida desde que éramos crianças (e até mesmo antes de nascer, porque nascemos de certos pais, em certos momentos e contextos históricos e geográficos). Consequentemente, nossa trajetória de vida está, de modos diretos e indiretos, intimamente associada à nossa trajetória de pesquisa e, por mais que pensemos que somos pesquisadores e artistas individuais, nunca o somos de modo absoluto, porque não só pertencemos a toda uma imensa geração contemporânea que nos acompanha em nossa pesquisa enquanto pesquisadores ou artistas, mas também recebemos das gerações anteriores até mesmo as temáticas que julgamos serem exclusivamente pensadas por nós ou por nossa geração (quando, na verdade, no processo histórico na face deste planeta, estamos apenas levando adiante certos desdobramentos que surgiram dos movimentos anteriores que nos antecederam).

Como numa espiral dialética (talvez como no processo comum ao espaço sideral no qual estamos inseridos em nossa galáxia e em nosso universo), o movimento histórico do qual participamos, muitas vezes nos faz avançar e recuar (mas sempre a partir de pontos diferentes no próprio espaço que se expande continuamente) num movimento que nunca é o mero voltar atrás, mas também nunca é um simples e linear avançar adiante. No meio de conflitos, tragédias, contradições de toda ordem, vamos tecendo nossos conhecimentos e nossas memórias de pesquisadores e artistas, na intensa luta pela simples sobrevivência física na face deste planeta. Em meio a todas estas lutas pessoais, vamos, mesmo sem ter consciência clara disto, nos inserindo em lutas que são muito mais coletivas do que nossa consciência individual e subjetiva supõe.

Minha pesquisa sobre história indígena e sobre um dos maiores genocídios praticados na face de nosso planeta, em terras brasileiras, desde o século XVI (afinal, eram mais de 1.000 povos indígenas que tínhamos e hoje, depois do extermínio, restaram pouco mais de 200 deles; o que quer dizer que foram exterminados mais de 800 povos indígenas brasileiros nestes cinco séculos de ocupação europeia neste lado do Atlântico Sul e exterminados pela etnia dominante, a luso brasileira), vem de longe e está também associada a uma outra pesquisa que faço pelo menos desde minha adolescência, a pesquisa sobre o genocídio judaico perpetrado pelos nazistas desde a década de 1930 até a de 1940, na Alemanha e países ocupados pelos nazistas depois de 1939.

Portanto, em nossa luta contra o fascismo brasileiro, precisamos sim não só incluir todas as mazelas que nosso fascismo interno (em suas inúmeras variantes, tais como o Integralismo, o militarismo autoritário de base positivista, o neo nazismo etc.) cometeu e quer voltar a cometer, contra comunistas, socialistas, progressistas, artistas, homossexuais, negros, nordestinos, favelados, marginalizados de toda ordem e adversários políticos (quaisquer que sejam), mas também o genocídio dos povos indígenas originários de nossa terra a quem não só devemos nos aliar com mais intensidade, na luta anti fascista, mas também dar voz (e prestar atenção reverenciosa a ela) e ouvir sua memória duramente reprimida e exterminada, ao longo destes séculos, através dos inúmeros indícios concretos que restaram como suporte desta memória exterminada.

Aqui embaixo, revelo o e-mail que escrevi para minha filha que está estudando engenharia agronômica na UFRRJ e começando a realizar uma pesquisa etnobotânica sobre a etnia Guarani M'Bya de Angra dos Reis RJ. Também revelo a resposta que escrevi para o Dr. Ângelo Pessoa que foi meu mestre na formação continuada de história no início do século (com quem escrevi um livro sobre a história de Campinas e com quem fui me embrenhando no conhecimento do passado colonial paulista) desde então.

Loretta, leia o e-mail que passei, embaixo, para o Ângelo Pessoa para você entender como é importante para mim a sua pesquisa sobre a etnobotânica dos guaranis de Angra dos Reis (quem sabe, você irá se especializar, cada vez mais, nesta área, em confluência entre antropologia e botânica/agronomia...). Afinal, era para você ter nascido em Seul, Coreia do Sul, filha de missionários que estavam trabalhando com a colônia coreana de São Paulo (mas que estiveram para ir, seu pai, para Moçambique, e sua mãe, para Londres).

Meu compromisso com os povos indígenas brasileiros (uma de minhas raízes mais sagradas) é muito profundo e durará para além de minha vida, com você levando adiante esta bandeira de luta, com eles. Beijo.
Alberto Nasiasene

Caro amigo Ângelo Pessoa,
Peguei o texto do e-mail resposta que lhe escrevi hoje e o inseri em meu site Rota Mogiana, como postagem um pouco melhorada e trabalhando melhor certos conceitos (ainda farei no futuro mais aprofundamentos). É possível fazer uma historiografia dos acontecimentos recentes, inserindo-os na média e longa duração (desde que dominemos muito bem conceitos sociológicos e antropológicos e tenhamos um leque abrangente de informações e fontes primárias de todos os matizes, o que é, cada vez mais, possível em nosso tempo, com a própria internet, com as TVs a cabo, com o NetFlix etc.).
De alguma maneira difícil de ser explicada, foi em você que encontrei um interlocutor altamente qualificado com o qual restabeleci não só o nível de profundidade das investigações sociológicas (e antropológicas) que já fazia desde o final de minha adolescência, a começar pela própria literatura (afinal, ganhei prêmios de análise literária em nível local e nacional, como você sabe); mas a própria linha condutora de minha vida (já que tive traumatismo craniano depois que fugi da Paraíba, para não ser assassinado em Campina Grande e tive minha vida e militância político estudantil completamente destruída, como você sabe). Portanto, não por acaso me liguei tão avidamente a você, quando você foi meu coordenador de formação continuada na mesma rede de ensino, em 2002 (ano simbólico não só para minha vida, mas para o meu país como um todo). O que eu buscava, para além da formação continuada em história, era reencontrar-me comigo mesmo (e uma parte de mim ainda continuava na Paraíba), afinal, todo mundo tem direito a ter, pelo menos, sua própria identidade e sua própria memória (o direito à memória e à identidade é um dos primeiros direitos a serem tolhidos pelas ditaduras, quaisquer que sejam elas). Por isto mesmo é que me identifico com a história do povo judeu no pré Segunda Guerra (com o genocídio, mas também com o assassinato de toda uma cultura secular judaica, em todos os matizes, desde os religiosos, até os seculares), mas também com a história dos nossos povos indígenas brasileiros.
Desde o início da década de 1990, ao ler Os Índios e a Civilização, do Darcy Ribeiro, de cabo a rabo, refletindo profundamente neste livro, quando ia dar aulas de teologia e história da Igreja em Santo André e voltava, de trem, metrô e ônibus para Campinas, já havia me comprometido diante de Deus e do mundo (no caso, a grande São Paulo), que dedicaria o resto da minha vida para lutar pelo conhecimento da história indígena brasileira e pelos povos indígenas, como aliado (ainda estou desenvolvendo este projeto). Você me ajudou a conhecer melhor a importância dos povos indígenas brasileiros a partir de São Paulo (os guaranis que irei conhecer em breve, são descendentes dos índios que os bandeirantes e jesuítas chamavam de Carijós, no período colonial e estão intrinsecamente ligados à história deste estado e do país como um todo) e me levou a adentrar nesta rica história que temos em relação com o mundo desde, pelo menos, o século XVI [lembro-me que, quando fui internado ..., em 2002, em novembro, levei o livro do Sérgio Buarque de Holanda, Visão do Paraíso para o ... porque já havia me reencontrado comigo mesmo no ponto em que parei na Paraíba, abatido a facadas e a tiros (quase literalmente) depois das eleições estratégicas de 1982 em Campina Grande (de certo modo, minha alma penada ficou cativa desta memória parada no tempo e foi você quem me trouxe a luz que foi acendendo aquela escuridão do limbo ou do purgatório onde ela havia ficado acorrentada)].
Portanto, não por acaso, nunca mais consegui (e nem quero) me ligar a um diálogo "intelecto-existencial," como eu dizia na época para você, com nenhum outro amigo (que jamais tive e jamais terei novamente). Coisas assim só acontecem uma vez na vida. Além disso, como lhe disse anteriormente, não tenho mais tempo de vida para me arriscar novamente e nem procuro mais construir amizades do mesmo quilate que tive com você (fiquei mais isolado, de casa para o trabalho e do trabalho para casa; ... até porque radicalizei cada vez mais, na luta anti fascista, sem romper drasticamente com meu passado de religioso, afinal, sempre fui um religioso à maneira da teologia da libertação e totalmente fora de qualquer figurino pré estabelecido).
São fases da vida que vão se passando e eu o conheci depois que já havia saído da fase de vida religiosa por tempo integral (foram dez anos de minha vida, que tanto tem aspectos negativos, quanto positivos, afinal, ganhei muita experiência, refleti muito, aprendi bastante, até coreando, já que era para ter sido enviado para fazer o mestrado em educação em Seul, na Coreia do Sul). Portanto, a fase em que fomos parceiros de pesquisa convivendo numa mesma rede de ensino e atuando nas mesmas batalhas também já se passou. Estou em outra fase agora (mas todas as fases anteriores permanecem dentro de mim para sempre e vou reelaborando-as na medida em que vou avançando para outras fases), mas me preparando intensamente para a fase que virá daqui a pouco menos de dez anos, quando me aposentarei e começarei outra fase de vida, a fase da velhice (pretendo acompanhar minha filha, mesmo que ela decida mesmo ficar por lá, no Rio de Janeiro, como ela diz que irá ficar).
A luta por um mundo melhor, que começou desde minha infância, é o que dá sentido (e significado) a minha vida e espero continuar a fazer algumas coisas, pelo menos, para contribuir com a melhoria da vida de meu povo e dos povos indígenas brasileiros (talvez pesquisando e escrevendo mais sobre eles e com eles). Por isto é que digo que o que me motiva mesmo não é obter titulação alguma (embora não a despreze), nem dinheiro, nem fama ou seja lá o que for. O que me motiva é este desejo de continuar lutando em companhia dos que já estão na luta por continuar a existir com dignidade neste país e neste planeta.
A postagem que fiz é esta: http://www.rotamogiana.com/2015/09/e-preciso-discernir-criticamente-qual-e.html
Estou escrevendo isto de minha escola (que bom termos esta possibilidade técnica agora que não havia em minha militância estudantil na UFPB no início dos anos 1980).
Obrigado pelo retorno.
Alberto Nasiasene
9 de Setembro de 2015


Olá Alberto,
Desde que passei a dar aulas na UFPB, uma questão me inquieta profundamente. Na verdade, acho que é algo que vem desde o tempo da Graduação, quando fiz uma monografia sobre o Integralismo.
É o pensamento e as práticas autoritárias no nosso país. Parece que temos um grande lastro de autoritarismo embutido no âmago de nossa cultura, que dá base para esse verdadeiro show pornográfico que vemos nos dias de hoje. Esse fascismozinho não é algo de ontem, é mais entranhado que pensamos.
Como tenho ministrado com frequência a disciplina de Historiografia Brasileira, estou podendo ler com alunos uma série de autores que dão lastro ao pensamento historiográfico e que têm uma grande dose de autoritarismo nas suas formulações. Gente mais explícita como Oliveira Vianna, Azevedo Amaral ou Alberto Torres, ou ainda os que possuem um autoritarismo paternalista do quilate de Gilberto Freyre. Na verdade, esse lastro autoritário suporta e é suportado pelo formato muito peculiar como o capitalismo se manifesta em nosso país. Darcy Ribeiro, num livro chamado "O Mulo", consegue pintar com riqueza literária essa formação de nossa elite bruta.
Os alunos mais interessados estão um pouco atônitos com a leitura de tais autores e muitos estão identificando esses traços em comportamentos do dia a dia e até em alguns de seus digníssimos Mestres... Parece que a maioria dos nossos queridos intelectuais possuem uma alongada linhagem autoritária e muitos deles querem apenas ser cooptados para "correr para o abraço". Alguns comportamentos, além de disfarçarem muita mediocridade, são abjetos.
Uma surpresa, para mim, foi conhecer melhor Manoel Bomfim. Até 2012/13, eu o conhecia apenas de nome, era uma referência de intelectual do início do século XX. Quando li "América Latina: males de origem" tomei um susto, porque o cidadão tinha elaborado uma espécie de teoria do imperialismo 10 anos antes de Lênin. Considero uma leitura muito atual à luz do que acontece hoje no nosso país. Li boa parte de sua obra desde então.
Estou elaborando um trabalho de caráter meio didático sobre fontes para a historiografia brasileira. Isso me motiva a produzir algo além daquelas exigências quantitativas para os organismos tecnoburocráticos e, ao mesmo tempo, tem ajudado a refinar a leitura de alguns alunos (infelizmente não a maioria), o que, ao meu parecer, deveria ser uma obrigação da Graduação.
Fico feliz em saber que seus projetos estão em andamento. O negócio é manter-se acima dessa escumalha...
Abraço.
Ângelo Emílio


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