Os modernos latifúndios: o agronegócio
Na história deste país, o grande empreendimento agrícola monocultor e exportador, desde o princípio, sempre foi um dos negócios principais da classe dominante (exceção feita, no período da mineração do ouro e do diamante, no século XVIII). Ou seja, desde 1530, pelo menos, que se planta cana de açúcar neste país, em grandes extensões de terras agricultáveis (derrubando-se a floresta para que isto se torne possível). Como contraparte deste empreendimento monocultor, devastador para a ecologia local, a mão de obra empregada, em grande quantidade, antes da Revolução Industrial e da mecanização da produção, era a escravizada. Primeiramente, os índios, depois, os africanos. Na verdade, o segundo negócio mais importante (e um dos mais rentáveis para a classe dominante que se ocupava diretamente dele) era o próprio tráfico de escravos que vinha alimentar continuamente a demanda de mão de obra do latifúndio monocultor exportador. Como a média de vida do escravo na lavoura intensiva era baixa, de cinco a oito anos, era necessário sua contínua reposição via tráfico transatlântico; ou seja, o escravo durava, em média, após ser comprado no mercado de escravos, de cinco a oito anos, dependendo da conjuntura econômica; mas isto vale somente para o escravo que era empregado no trato mair grosso e pesado da lavoura, não para os escravos domésticos.
Engenho colonial
Este sistema colonial monocultor baseado no latifúndio escravista foi chamado, na literatura historiográfica internacional especializada, de "plantation," que era um fenômeno bem distinto da agricultura feudal ainda existente, na mesma época, no próprio continente europeu até a Revolução Francesa. Ou seja, havia elementos novos na estruturação internacional do sistema sócio-econômico mercantilista que não havia no sistema feudal anterior e interno ao continente europeu. Por exemplo, embora a mão de obra interna da "plantation" fosse a escravidão (e não a servidão do sistema feudal europeu), o que tornava possível a existência da "plantation" era o capital financeiro externo. Isto quer dizer que a burguesia europeia em ascensão sempre crescente (e em aliança com a coroa), de fora do empreendimento em si mesmo, estimulava tanto a produção (sem dela participar diretamente), quanto a circulação comercial do produto na Europa.
Somente depois da Revolução Industrial, primeiro na Inglaterra, no século XVIII, depois no continente europeu, no século XIX e, finalmente, na América Latina, no século XX, o capital começa a dirigir diretamente, ele mesmo, sem intermediários e sem um sistema sócio-econômico híbrido (capitalismo comercial/escravismo colonial), o sistema da "plantation." Em meados do século XX, este sistema da "plantation" no Brasil (já arcaico para o padrão de industrialização alcançado pelo país a partir do período Vargas) passou a ser chamado de latifúndio (mirando-se apenas o aspecto da posse de grandes extensões de terra em mãos de poucos donos). Falava-se muito em latifúndio improdutivo com relação às grandes fazendas que não utilizavam suas terras para a prática da agricultura e da pecuária, mas que detinham o monopólio jurídico da propriedade, mais como valor monetário de reserva do capital imobiliário do que como meio de produção. Entretanto, é necessário lembrar que a plantation colonial não era só uma questão de latifúndio, mas também de utilização intensiva de mão de obra escrava. Além disso, o latifúndio da "plantation" produzia uma monocultura (que podia ser de cana ou de café, por exemplo) principalmente para alimentar o mercado externo (vem daí sua dependência para com o mercado externo, ou, falando de outra maneira, sua dependência para com os países centrais, europeus, do sistema).
No início do século XXI, a grande propriedade rural já não é chamada mais de latifúndio, de modo geral (a não ser por movimentos políticos que guardaram a terminologia anterior, como o MST), mas de "agronegócio" (que, na verdade, sempre existiu, no Brasil, desde o século XVI). O nosso país já nasceu marcado pelo "agronegócio" e isto está presente até hoje na tradição da lavoura da cana e no moderno agronegócio do etanol (antes chamava-se simplesmente, álcool, mas agora, para "modernizar" e diferenciar, chamam de "etanol"). Desde o início, a agricultura da cana de açúcar era uma agroindústria, por mais estranho que possa parecer isto hoje em dia. O próprio nome "engenho" (que é uma expressão muito mais antiga do que se supõe e remonta desde a Antiguidade Clássica) quer dizer o aparelhamento mecânico (inicialmente feito em madeira) que se usava para prensar a cana e sugar seu suco. O sistema de parafusos e roscas que movimentava mecanicamente (movido ao braço humano, pela força animal ou pelo fluxo da água) o engenho é que deu nome genérico à casa onde se localizava a indústria transformadora da cana em açúcar de "o engenho". Mas esta invenção é tão antiga quanto a Grécia Helenística (e Arquimedes já havia inventado muitos aparelhos mecânicos de polias, alavancas e parafusos que foram empregados no exército e nas lutas contra Roma). Os romanos, incorporando muito das descobertas e invenções gregas, são também conhecidos pelo seu "engenho" (ou seja, inteligência prática) e por serem melhores "engenheiros" do que filósofos, na comparação com os gregos.
Pois bem, quando os portugueses começaram a colonizar o nosso país, trouxeram consigo toda uma longa tradição, já milenar, de engenhosidade técnica que produziu, bem cedo em nossa história, o que chamamos hoje de agronegócio. As modernas usinas de açúcar e etanol de hoje nada mais são do que atualizações e aperfeiçoamento dos antigos engenhos coloniais feitos em madeira, mas os princípios técnicos continuam sendo os mesmos. Foi a longa tradição humanística preservada pela Igreja Católica, especialmente por ordens como a dos jesuítas, que guardou os antigos textos da Antiguidade Clássica (e todo o conhecimento técnico que eles continham) e foi esta tradição, acrescida da contribuição técnica dos bizantinos, da Pérsia, Babilônia e Egito, que foi introduzida em Portugal e Espanha, via ocupação árabe da Península Ibérica, que está na base do primeiro processo colonizador português em nosso país (nada deste antigo arcabouço, em sua estrutura material e imaterial, desapareceu completamente, como pode parecer à primeira vista).
Entretanto, quero chamar atenção para o próprio conceito de "tecnologia". É muito frequente e corriqueiro que se confunda esta terminologia com a eletrônica ou com o maquinário industrial surgido desde a Primeira Revolução Industrial na Inglaterra, no século XVIII. Mas tecnologia, entendida sob o ponto de vista antropológico mais geral, quer dizer, simplesmente, conhecimento aplicado. Ou seja, desde que os primeiros agrupamentos humanos surgiram na face do planeta, tecnologias são criadas. A primeira delas foi o domínio do fogo, pelo menos (talvez possamos recuar mais que isto e incluir o próprio conhecimento do meio ambiente que os primeiros hominídeos tinham e as técnicas de coleta e caça que desenvolveram para sobreviver). Isto quer dizer que, por mais "primitiva" que supostamente seja uma sociedade "selvagem" à volta do mundo, ela tem suas próprias tecnologias que foram inventadas por ela mesma. É um preconceito etnocêntrico grosseiro pensar que as sociedades "primitivas" não tenham tecnologia.
A partir daí, podemos então avançar em nossa reflexão para dizer que o "agronegócio" implantado no Brasil desde o século XVI incorporou muito das tecnologias indígenas. Não só das tecnologias agrícolas, como o plantio da mandioca, mas também da tecnologia da confecção da farinha de mandioca, por exemplo (os povos vencidos, muitas vezes, são os que legam aos vencedores suas tecnologias e seus saberes). Aliás, se não fossem estas tecnologias agrícolas e ambientais indígenas, incorporadas pelos portugueses, a colonização destas terras não teria prosperado de modo algum somente com as tecnologias trazidas pelos portugueses (e por mais avançados que fossem os romanos e gregos na história do mundo clássico). É desta confluência de tecnologias que surgiu o que chamamos hoje não só o agronegócio no Brasil, mas a própria agricultura familiar. Claro que com o desenvolvimento da sociedade brasileira ao longo do século XX, no início do século XXI estamos enfrentando novos desafios e criando novas tecnologias. Entretanto, é bom não esquecer que não partimos nunca do zero e que não estamos a re-inventar a roda; por mais avançadas que sejam as pesquisas promovidas pelas grandes universidades já consolidadas como a Unicamp, a USP as federais e diversas instituições de pesquisa, estamos todos inseridos em uma longa tradição tecnológica que não só continua a nos envolver (consciente e inconscientemente) mas que, infelizmente, para muitos pesquisadores, permanece desconhecida por ignorância, ou por espírito colonizado e alienado de muitos pesquisadores que são dependentes totalmente da ciência que se produz lá fora e somente querem adaptá-la aos trópicos, sem criar, com inventividade inovadora e ousada, nossa própria ciência para difundi-la pelo mundo.
II
Uma das maiores mentiras, na retórica política, que se emprega hoje no país, particularmente no Congresso Nacional, é a de que o agronegócio é que fornece alimentos para a mesa do povo brasileiro. Para desvelarmos esta mentira, é preciso, primeiro, discernir que uma coisa é o agro negócio, outra a agricultura familiar. Não só pelo tamanho das terras agricultáveis, mas também pela estrutura empresarial, o agronegócio nada tem em comum com a agricultura familiar, a não ser o fato de que são, ambos, propriedades particulares da terra. Na verdade, hoje em dia não se fala mais em "latifúndio" (a não ser raramente, aqui e ali), como se falava até os anos 1970, em plena ditadura militar. Fala-se, ao invés de latifúndio, em agronegócio. Ou seja, o verniz modernizante, com uma terminologia nova, cobriu uma antiga estrutura que remonta muito cedo ao processo colonizador, iniciado no século XVI, com as sesmarias distribuídas, pela coroa portuguesa, aos "homens de bem" (ou seja, aos homens de bens, no caso, a quem tivesse capacidade de possuir escravos, que eram mais importantes do que a posse da terra em si mesma; é preciso lembrar que a terra, financeiramente, na época, quase não tinha valor, o que tinha valor era o braço escravo, a mão de obra).
Não que não haja diferenças profundas, é claro, entre o latifúndio escravista, que reinou até o fim do século XIX, e o agronegócio do início do século XXI. Embora não seja totalmente estranho ao moderno agronegócio a própria existência de algum tipo de trabalho escravo (ou, como se diz, oficialmente, trabalho degradante em condições análogas à da escravidão) associado direta ou indiretamente a ele (mas a grande diferença é que o sistema jurídico não apoia mais uma sociedade escravista, porque as relações de produção mudaram radicalmente). É claro que o atual trato da grande propriedade rural agropecurária usa, de um modo ou de outro, um maquinário e uma estrutura e infraestrutura empresarial que não existia antes, na época do velho "latifúndio." Entretanto, grande parte das terras dedicadas ao agronégócio continua praticando a atividade econômica, em larga escala, que iniciou a colonização intensiva deste país, pelas mãos dos portugueses, avançando em terras indígenas e sobre os biomas florestais e de savana: a monocultura (seja da cana, seja do café, seja, agora, da soja) que degrada a fertilidade e a biodiversidade do solo. Neste ponto, nada mudou, porque continuam aplicando a monocultura de produtos que não são destinados ao consumo interno de alimentos no Brasil, mas ao mercado externo exportador (exceção feita ao etanol, hoje em dia e a parte da produção do café; mas a soja é em grande parte destinada ao mercado mundial, especialmente à China, porque o brasileiro não come soja, a não ser em forma de óleo). Ou seja, no começo, era a cana (que continua sendo plantada), agora a soja (que também é exportada) e o gado (com as pastagens que avançam até mesmo sobre a floresta amazônica; com exportação da carne brasileira). Portanto, não é do agronegócio que vem a maioria dos alimentos que a população brasileira consome, mas da agricultura familiar que pratica uma agricultura em menor escala, utilizando uma área agricultável menor.
Não que as relações de trabalho tenham que ser necessariamente degradantes no agronegócio (porque há empresas agrícolas que são respeitadoras dos direitos trabalhistas, é claro). Entretanto, com a mecanização intensiva, o agronegócio já não é a principal fonte de empregos para uma ampla camada populacional como a agricultura familiar continua sendo. Portanto, nem sempre o que é bom para o agronegócio é necessariamente bom para a população de um município em particular (e para o país, como um todo). Isto pode significar que um município pode estra muito bem em matéria de produção realizada pelo agronegócio, mas sua população ganhar muito pouco com isto, mesmo através dos impostos que são pagos e chegam aos cofres da prefeitura municipal local. Muitas vezes, os donos do agronegócio, em um município qualquer, nem moram neste município, mas na capital e, portanto, em última instância, terminam investindo seus lucros ou na capital, onde moram (comprando imóveis onde vivem e investindo em outros negócios), ou em outras partes do país e do mundo.
Os modernos efeitos colaterais do agronegócio vão muito além das relações de trabalho e do impacto primário que acontece no meio ambiente através do desmatamento. Inclui-se agora o elemento da indústria química da Segunda Revolução Industrial que não havia em época colonial. Ou seja, o agronegócio utiliza intensivamente venenos específicos para eliminar insetos e para eliminar plantas daninhas. Eufemisticamente, estes elementos químicos são chamados de "defensivos agrícolas" (mas, na verdade, são venenos mesmo). O impacto ambiental que este tipo de utilização nova de elementos que não eram empregados antes é devastador, não só para o próprio meio ambiente, mas diretamente para os seres humanos. Ou seja, com a utilização intensiva de produtos químicos artificialmente produzidos pela indústria química, tanto como fertilizantes, quanto como venenos diversos, vários tipos de doença começaram a acometer os seres humanos, especialmente certos tipos de cânceres e intoxicações de efeitos danosos para o sistema nervoso. Claro que os defensores do agronegócio, os mesmos que alegam ser ele a grande fonte de alimentos para o povo brasileiro, não gostam de falar abertamente dos efeitos colaterais danosos, não só ao meio ambiente (aliás, fizeram de tudo para alterar o código florestal em seu favor, em detrimento da preservação dos biomas sobreviventes a estes cinco séculos de colonização), mas à saúde do ser humano. Na verdade, poderosos interesses multinacionais externos estão por trás de grandes empreendimentos agrícolas, não só através do fornecimento de sementes transgênicas, mas também através do fornecimento dos tais "defensivos agrícolas." Neste ponto, nada de novo no front, em relação ao sistema da plantation colonial anterior.
Por isto mesmo é que a luta política socioambiental não pode ficar alheia à conjuntura política se deixando manipular pelo jogo de interesses do grande capital, orquestrado internacionalmente (mas com seus aliados internos), para enfraquecer a soberania das políticas públicas do Estado brasileiro (inclusive, para enfraquecer o próprio Estado brasileiro, como fizeram nos anos 1990, através da ideologia importada do neoliberalismo). Por mais que tenham tentado despolitizar a luta ambiental de Chico Mendes, ninguém poderá passar uma borracha na história política dele, militante fundador do PT (ele morreu dentro do PT, e por causa do PT, na luta ambiental vinculada intimamente ao partido do Lula). Além disso, não se pode esquecer que se a Marina chegou onde chegou, chegou graças ao PT e sua história. Se não fosse o Chico Mendes e o PT, a Marina nunca teria desempenhado papel relevante algum fora do Acre e jamais teria sido senadora, muito menos ministra do meio ambiente (como foi no governo Lula). Alberto Nasiasene Jaguariúna, 20 de fevereiro de 2013
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