top of page

A entrevista sobre o documentário Em Busca da Floresta



Com a permissão de meu amigo e co-autor, o botânico Carlos Nunes, irei, aqui embaixo, publicar a íntegra das respostas que demos ao portal Biota Fapesp a respeito de nosso documentário Em Busca da Floresta. Faço isto porque sinto ser necessário explicar certos elementos para um público que nunca lerá espontaneamente o que se publica no portal mencionado e em seu boletim. A oportunidade que as perguntas nos deram de esclarecer certos elementos foi um momento feliz de dialogarmos com as questões que surgem na cabeça de muita gente a respeito do documentário que fizemos em 2011.


Olá, Carlos e Alberto,

segue em anexo a matéria que escrevi a respeito do vídeo a partir das respostas de vocês. Agradeço o material tão completo e detalhado e peço desculpas de antemão pelas diversas coisas que, no momento da edição, eu acabei deixando de lado. Espero que gostem.Se acharem que alguma alteração é necessária, por favor, me avisem.

Gostaria também que me avisassem dos lançamentos de novas produções e outros trabalhos que estejam envolvidos que tenham relação com biodiversidade (dentro ou fora do Programa Biota), estamos sempre procurando boas experiências para divulgar em nosso boletim.

Obrigada, Érica

Querida Érica,

Te envio as respostas à entrevista que pediste. As respostas foram escritas majoritariamente pelo amigo Alberto, que é o mais gabaritado para falar sobre a criação/produção de documentários e, inclusive, participou em um curso sobre isto no MIS Campinas. Eu faço o meu doutorado com pesquisa básica em polinização e reprodução de orquídeas da Mata Atlântica.

Fique a vontade para usar este texto como quiser. Gostaríamos apenas que nos avisasse e enviasse a publicação.

Obrigado, Carlos

[...]

Prezado Carlos,

Desde a metade de 2013 o Programa Biota/Fapesp está encampando a elaboração de um boletim online bimestral chamado Biota Highlights, cujo público-alvo são os próprios pesquisadores do Programa.O objetivo desta publicação é propiciar a divulgação de experiências positivas e criativas no âmbito do Biota/Fapesp ou fora dele, mas dentro da temática da biodiversidade, que possam inspirar outros pesquisadores.Entro em contato para convidá-lo para uma entrevista a respeito do documentário " "Em Busca da Floresta". A entrevista é breve pode ser feita por skype ou por email (neste caso enviarei as questões por email). Caso uma destas duas formas não seja possível, podemos estudar uma terceira forma de fazê-la. Solicito gentilmente que confirme o interesse em participar desta matéria. Atenciosamente, Dra. Érica Speglich/ Editora do Boletim Biota Highlights/ Programa Biota-Fapesp

Bosque que existe ao lado da Emef Violeta Dória Lins. Foto: Alberto Nasiasene. 2008

Muda de árvore nativa da Mata Atlântica plantada pelo projeto Plantando o Saber, dentro dos espaços internos da Emef Violeta Dória Lins. Foto: Alberto Nasiasene. 2008

1 – Como surgiu a ideia de fazer o vídeo?

Estas fotos demonstram a degradação do bosque que fica ao lado da Emef Violeta Dória Lins.

Foto: Alberto Nasiasene. 2008

A ideia surgiu como desdobramento do desejo do professor de história Alberto Nasiasene de aprofundar uma experiência que ele já havia vivenciado com a temática da educação ambiental, em parceria com o MIS Campinas, produzindo um documentário intitulado de Plantando o Saber. Foi o primeiro documentário realizado por ele, como fruto de seu aprendizado em um curso realizado pelo próprio Museu da Imagem e do Som de Campinas, o curso da pedagogia da imagem, e também um produto que resultou de um projeto de educação ambiental surgido no interior de uma das escolas da rede municipal de ensino de Campinas, no caso, a Emef Violeta Dória Lins, em 2008.

Mudas de árvores nativas da Mata Atlântica plantadas pelo projeto Plantando o Saber, dentro dos espaços internos da Emef Violeta Dória Lins. Foto: Alberto Nasiasene. 2008

A partir de sua pesquisa sobre a história colonial paulista e campineira, o professor Alberto se questionava, já fazia algum tempo, dentro das escolas e da rede municipal de ensino, em debate com seus pares, a respeito do total desconhecimento da Mata Atlântica até por educadores ligados à área de ciências (que dirá dos alunos crianças, adolescentes e adultos) e ficava surpreso com o fato de que se confundia, dentro da área da educação, reflorestamento com o simples plantar qualquer coisa e quaisquer árvores, mesmo que fossem eucaliptos, pinus, ciprestes e todo tipo de árvores exóticas sem nenhuma ligação com o bioma original de Campinas (mas isto não se dava e não se dá, é claro, só com Campinas, porque é uma mentalidade presente em quase todo o território nacional). Portanto, a partir desta experiência de educação ambiental, surgida deste tipo de problematização, num projeto pedagógico escolar (no caso, um projeto elaborado, inicialmente, pela professora de ciências da Emef Violeta Dória Lins, formada em biologia, Ademilde Moreira, que recebeu o patrocínio do Instituto Arcor [é bom esclarecer, para evitar mal entendidos, entretanto, que foi o projeto pedagógico específico desta escola que recebeu um patrocínio, aliás, pífio, não o nosso documentário, que foi feito inteiramente com dinheiro do bolso do professor Alberto]), foi realizado um primeiro documentário sobre um processo de educação ambiental, que tentava incorporar as pesquisas ecológicas de ponta (numa perspectiva histórica), realizadas nestas últimas décadas, dentro do Brasil, aplicando o conhecimento acumulado pelos biólogos e engenheiros florestais em um projeto de formação de crianças, jovens e adultos alunos de uma escola pública de Campinas (no intuito de transformar este estado de coisas em uma realidade autossustentada de pensar a sociedade e o meio ambiente).

Mudas de árvores nativas da Mata Atlântica plantadas pelo projeto Plantando o Saber, dentro dos espaços internos da Emef Violeta Dória Lins. Foto: Alberto Nasiasene. 2008

O eixo temático que estava em foco era o do aquecimento global, mas os educadores envolvidos com a temática ecológica nesta escola em específico, junto com o professor de história, que estava momentaneamente lecionando nesta comunidade (sua sede não era esta escola, mas uma outra), queriam seguir o princípio de que se deve pensar globalmente, mas agir localmente e nada melhor do que questionar a própria realidade interna da escola com uma imensa área interna praticamente sem árvores (mas vizinha de um bosque muito degradado que os educadores queriam incorporar à pesquisa e à prática pedagógica ambiental); levando a um processo de começo de restauração da cobertura vegetal arbórea de Mata Atlântica que havia no lugar, pelos menos há mais de século e meio atrás. Claro, não tinham a ilusão que o processo de restauração e reflorestamento da Mata Atlântica em Campinas se dará unicamente por meio das escolas, mas a convicção que era necessário replantar o saber perdido até dos nomes das espécies de árvores da Mata Atlântica nas novas gerações que irão continuar com o processo de mudança da própria mentalidade ambiental na cidade de Campinas nas próximas décadas (contagiando suas famílias, seus amigos, seus vizinhos etc.).

Cartazes e mudas de árvores nativas da Mata Atlântica a serem plantadas pelo projeto Plantando o Saber, dentro dos espaços internos da Emef Violeta Dória Lins. Foto: Alberto Nasiasene. 2008

Não tínhamos a ilusão de que um simples projeto pedagógico isolado, em uma única escola municipal de Campinas, iria fazer toda uma revolução de mentalidades e causaria algum impacto no processo mais complexo de restauração da Floresta Atlântica (naquele momento, nem o professor Alberto, nem as professoras de ciências, que eram biólogas, conheciam sequer o conceito de restauração da floresta). Não é a escola sozinha, contando apenas com suas próprias forças internas que irá fazer tudo isto.

Cartazes do projeto Plantando o Saber na Emef Violeta Dória Lins. Foto: Alberto Nasiasene. 2008

Portanto, a ideia da geração deste documentário Em Busca da Floresta surge como desdobramento de uma etapa anterior já vivenciada e já registrada por meio de um outro documentário, o Plantando o Saber. Por incrível que possa parecer, quando o professor Carlos Nunes aparece na Emef Raul Pila (a escola da rede municipal de ensino de Campinas, onde o professor Alberto tem sua sede), no segundo semestre de 2011, para substituir uma professora de ciências que havia se aposentado, já havia um movimento que estava apontando nesta direção de buscar um maior aprofundamento sobre o conhecimento da Mata Atlântica como bioma no qual a região de Campinas estava e está situada desde épocas imemoriais. Ao contrário da Emef Violeta Dória Lins, entretanto, a Emef Raul Pila possuía um arvoredo interno bastante bonito e alguns de seus educadores, em diálogos e projetos pedagógicos em comum, estavam pesquisando quais daquelas árvores eram ou não eram originárias da Mata Atlântica (com o intuito de revalorizar as espécies de Mata Atlântica e ensinar esta atitude aos alunos). A presença do botânico Carlos Nunes entre estes educadores só facilitou e aprofundou esta pesquisa que já estava sendo feita há alguns anos (ele acelerou o processo).

Professor Carlos Nunes em sala de aula na Emef Raul Pila. Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Entretanto, como a formação do professor Alberto não era em biologia, evidentemente que ele não sabia que rumo tomar para o aprofundamento do conhecimento da Mata Atlântica e só com o diálogo informal e formal com o novo professor de ciências é que ele descobriu o que era que o doutorando Carlos Nunes estava pesquisando e perguntou se seria possível que ele fosse ver o campo de pesquisa avançado do botânico. No momento inicial do contato com o professor Carlos, o professor Alberto nem sabia que a pesquisa do novo professor de ciências era no município de São Luís do Paraitinga (que é uma espécie de Meca para historiadores que lidam com a pesquisa da cultura popular paulista de tradição colonial). Portanto, este detalhe da pesquisa botânica, in loco, na Mata Atlântica sobrevivente (ombrófila densa montana nebular), orientado por um botânico que estava fazendo um doutorado na Unicamp, e o fato desta pesquisa de campo se situar no município de São Luís do Paraitinga é que explicam o grande interesse e a grande ansiedade pela descoberta da floresta que estão por trás da motivação existencial que gerou o documentário (são o mote inicial do filme).

Professor Carlos Nunes em sala de aula na Emef Raul Pila. Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Entretanto, é claro que, a partir daí, com o assentimento do professor Carlos de levar o professor Alberto (com convidados que iriam ajudar na produção do documentário e na captação das imagens), começamos a planejar a expedição e a esboçar, no papel, em reuniões periódicas, na escola, o que iríamos fazer, o que iríamos pesquisar, o que queríamos captar em termos de imagens, qual proposta estética seria empregada para a confecção do documentário etc. Ou seja, começamos a fase da pesquisa prévia propriamente dita (que é imprescindível para a produção de qualquer documentário). Deste processo de pesquisa prévia surgiu um argumento que deu uma orientação teórica ao que nos propúnhamos fazer em termos de documentário (este argumento é um livro que será publicado um dia).

Professor Carlos Nunes participando da oficina de horta na Emef Raul Pila.

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Mesmo depois da fase da coleta de imagens em São Luís do Paraitinga, a pesquisa, os diálogos com a botânica e a reflexão sobre a Mata Atlântica continuou, inclusive através da parceria no projeto horta na escola, do programa Mais Educação, no ano seguinte (com a continuidade da parceria do professor Carlos com a Emef Raul Pila, desta vez como um dos oficineiros do projeto horta, junto com o professor Ricardo Testa, dedicado ao projeto de agricultura florestal). Portanto, não foi só o preparo prévio, a escrita de um argumento e a captação de imagens propriamente ditas, mas houve uma continuidade pós captação na reflexão e aprofundamento antes de se chegar ao processo de edição final no final de 2013 (o processo que gerou o documentário durou dois anos inteiros de pesquisas intensas).

Professor Carlos Nunes participando da oficina de horta na Emef Raul Pila.

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

2 – Quais os públicos alvo da iniciativa?

Esta questão foi longamente refletida, em diálogos constantes entre o professor Carlos e o professor Alberto. Não queríamos repetir a mesma experiência do documentário Plantando o Saber, desejando evitar todo tipo de burocratismo e formalidades excessivas, internas a uma rede de ensino, que tolhem muito a criatividade e a liberdade de ação a partir de uma proposta de documentário feita à moda do cinema verdade (evitando ao máximo incluir os alunos menores de idade na captação e na produção de imagens para evitar todo tipo de censura prévia). Sabíamos de todos os obstáculos que costumam ser interpostos para aqueles que querem propor um projeto pedagógico questionador e transformador que não se contenta com a rotina pedagógica e com a mentalidade do senso comum existentes dentro do sistema escolar formal brasileiro e paulista. Além disso, não queríamos que encarassem nosso projeto como uma "ameaça" de qualquer tipo, porque, se por um lado, não queríamos imprimir um espírito denuncista militante de movimento ecológico radical (tão comum em documentários sobre meio ambiente), por outro lado, também não queríamos fazer nada que fosse tão superficial que não questionasse nada, de forma equilibrada (mas com otimismo de perspectivas). Também não queríamos gerar algo que fosse partidarizado, estrito senso, nem instrumentalizado para as disputas políticas conjunturais do momento, porque nossa perspectiva era mais profunda e mais ampla (mas também não queríamos imprimir no documentário uma visão apolítica e alienada do contexto social, histórico e econômico maior da história brasileira). Também não nos propusemos realizar uma pesquisa científica nos moldes acadêmicos, mas documentar os bastidores da pesquisa do doutorado do professor Carlos (tanto com o intuito de simples documentação de um importante trabalho de pesquisa, in loco, no campo avançado concreto, quanto com o intuito de dialogar, a partir da perspectiva de um professor de história, que segura a câmera, com o saber biológico e ecológico de um doutorando da Unicamp, que está à frente da câmera).

Isto é, o documentário já foi pensado como forma de documentar um diálogo interdisciplinar entre saberes distintosque buscam se encontrar em torno de uma causa comum: a preservação do que restou da Mata Atlântica no estado de São Paulo e a pesquisa científica séria sobre as espécies botânicas ainda não suficientemente estudadas neste bioma. Entretanto, não nos propusemos um diálogo hermético de especialistas ciosos de seu feudo científico e acadêmico (que nos recusamos ser), mas um diálogo entre educadores e pesquisadores que é realizado em meio a uma floresta real e aberto ao público em geral. Ou seja, um diálogo com a sociedade maior, sem uma preocupação didatista e sem a preocupação militante de movimento ecológico contestador raivoso (pelo menos este não é o espírito do professor Alberto e também do professor Carlos).

Tínhamos clara consciência de que um documentário tem vários níveis de significância e, portanto, elaboramos um primeiro nível de significância a partir de um diálogo social real que havia entre dois educadores e pesquisadores de áreas diferentes do conhecimento científico, o saber historiográfico e o saber botânico; mas tendo a intenção de imprimir, num segundo nível de significância, mesmo que de forma indireta e sutil, toda uma problemática socioambiental que está na agenda da sociedade paulista e brasileira neste início de século XXI, tentando dialogar também com as gerações futuras que irão, porventura, se o que fizermos sobreviver de alguma forma, assistir e analisar criticamente tudo isto que abordamos (desde nosso diálogo, até a problemática que enfatizamos por meio de nosso olhar e nossa vivência concreta de sujeitos históricos que somos todos, com nossas limitações de seres de nosso tempo). Um terceiro nível de significância é a própria discussão estética do fazer documentário sobre o meio ambiente e é aqui que entra a filiação que o professor Alberto quis fazer entre esta proposta que abraçamos (sem saber de antemão qual seria o resultado) e a corrente do cinema verdade de Jean Rouch. Não que pretendêssemos fazer um documentário que tenha a mesma importância estética dos que o Jean Rouch realizou (não somos pretensiosos de querer ser o que não somos, mas temos em comum com a proposta do Jean Rouch o assumirmos quem somos por trás e diante da câmera, captando uma relação social em meio a um determinado contexto histórico e natural claramente datado).

Isto quer dizer que não pensamos em focar em um público escolar de ensino básico propriamente dito (mas não o descartamos), nem em um público universitário (embora ele também esteja incluído). Também não pensamos em nos dirigir a um público de militância ecológica propriamente dita (mas não os desprezamos, nem os descartamos também). Pensamos em nos dirigir à sociedade como um todo, mas sem infantilizar e didatizar e sem rebuscar demais a linguagem científica e estética para falar com um público altamente especializado, de nível superior. Não que acreditemos que exista um público médio, mas que não queremos excluir nenhum grupo social de antemão, isto sim, queremos imprimir um certo tom coloquial como quem fala para as ruas e para os cidadãos comuns (a partir da floresta paulista que sobreviveu a quinhentos anos de história), independentemente do nível de escolaridade e de conscientização sobre os problemas socioambientais. Cada nível de significação pode ser captado mais facilmente por determinado público de tal modo que o documentário pode falar com públicos diferenciados e receber leituras diferenciadas, de acordo com o público ao qual é apresentado.

3 - Eu gostaria de saber mais sobre o processo de construção do vídeo: como a temática foi escolhida, como o roteiro foi construído, as ideias para as filmagens, como os locais, temas e a trilha sonora foram escolhidos... (a trilha sonora me chamou a atenção!).

Em parte, já respondemos esta pergunta, nas respostas que demos acima. Entretanto, esta é uma boa pergunta para esclarecer elementos que ainda não foram mencionados. Por exemplo, o roteiro. Como elaboramos a proposta de um documentário ao modo do cinema verdade, é claro que precisamos explicar como se dá este tipo de construção de "roteiro" que, é claro, nada tem em comum com um documentário de arquivo, ou um documentário jornalístico, ou para fins didáticos. Isto quer dizer que não partimos de um roteiro prévio, planejado nos mínimos detalhes, mesmo porque, em se tratando de um documentário, nunca podemos realmente prever tudo o que irá acontecer (a não ser que trabalhemos em cima de material de arquivo que já aconteceu, mas, mesmo assim, como iremos lidar com o que está documentado nos arquivos, a interpretação final do material já gravado só será uma questão que se resolve plenamente na mesa de edição).

Na proposta que construímos, não há um roteiro prévio do tipo que se faz para um filme de ficção, mas um planejamento prévio de ações e de temas a serem focados sim. Quando saímos a campo, já sabíamos o que iríamos fazer (que rumos tomar, pelo menos em termos de princípios que seriam ou não seguidos, dependendo dos acontecimentos que iríamos enfrentar), mesmo que não soubéssemos o que iríamos encontrar pela frente (e aqui é que está o valor de um documentário como os que são feitos a partir da proposta de cinema verdade, porque o que se vê diante da câmera, mesmo que não seja a "realidade imaculada", é o que realmente está acontecendo na medida em que se está filmando). Além disso, precisamos, evidentemente, previamente planejar cuidadosamente toda a logística da produção que não aparece propriamente nas filmagens (tais como a própria locomoção, combustível, dinheiro para comer, para dormir em pousada, que tipos de objetos e roupas deveríamos levar ou deixar para trás etc.). De certo modo, este planejamento da própria produção do documentário faz parte do próprio roteiro a ser seguido (mas é claro que não sabemos quais serão nossas falas, quais serão nossas perguntas, quais enquadramentos e decupagens concretas, previamente, iremos fazer durante as filmagens). Na medida em que as filmagens vão acontecendo, um roteiro vai se formando mais detalhada e concretamente, mas é um roteiro concreto que se constrói oralmente (muito deste roteiro oral ocorre entre uma captação de imagem e outra, desde o momento em que desligamos a câmera até o momento em que novamente a ligamos). Portanto, é um roteiro oculto (do espectador) mas que está por baixo da tessitura das próprias captações de imagens (como ossatura que dá consistência ao que se está fazendo), de modo que o que se vê na tela é só uma parte do que foi a experiência de filmagem em si mesma. Além disso, só na mesa de edição, com a montagem dos planos e sequências, é que será gerada a estruturação da semântica narrativa do material filmado de modo que quem não participou da filmagem tenha uma ideia do que o documentário está querendo comunicar.

Pelo menos quanto ao professor Alberto, é possível dizer que, na verdade, grande parte da edição do próprio documentário já acontece na mente dele na medida em que há decupagens mentais que orientam a captação das imagens no próprio cenário concreto da locação em que ocorre as filmagens. Ou seja, há sim uma pré montagem que ocorre durante as próprias filmagens, de modo que as filmagens não são tão aleatórias e espontâneas quanto alguns podem pensar. Mas isto ocorre porque sabemos que a máquina filmadora não é capaz de ver o mundo do mesmo modo que nosso olho o vê, porque os ângulos de visão em que ela está formatada não são os mesmos de nossos olhos e porque, na verdade, sempre nos esquecemos que nosso próprio olho não é o principal responsável pela visão que temos do mundo. Isto é, é no nosso cérebro que acontece as decupagens que fazemos do que vemos à nossa frente sem perceber que as fazemos, porque, evidentemente, nosso cérebro é seletivo e só vê o que quer ver e de modo algum lembra uma objetiva de câmera, ou sensor digital, qualquer que seja. É isto que chamamos de estética (porque não é mera questão mecânica e quantitativa, mas um processo subjetivo seletivo próprio a cada indivíduo, processo que só pode ser plenamente entendido em seu contexto histórico, social e psicológico).

Claro que é preciso, em princípio, evidentemente, ter um certo domínio da própria linguagem audiovisual, porque há uma lógica da imagem que não é a mesma da lógica da escrita, assim como a lógica da escrita fonética não é a mesma lógica da notação matemática, nem a mesma lógica do discurso meramente oral. Há certas regras do jogo visual que precisamos conhecer minimamente, até para poder quebrá-las conscientemente, criando novas semânticas imagéticas e novas gramáticas com os elementos visuais e auditivos (claro que é dificílimo conciliar estas duas dimensões em um documentário, o visual e o auditivo; mas, em se tratando de filmagens, é a imagem que deve predominar, não o auditivo).

Portanto, tudo o que aparece nos enquadramentos, desde o ligar até o desligar da câmera (os planos) e a semântica que os planos criam entre si quando são ligados um ao outro (a montagem), junto com o som (tanto o dos ruídos ambientes, o das falas e o das músicas) que acompanha as imagens deve ser conscientemente pensado tendo-se em vista a criação de um determinado efeito emocional e cognitivo que se quer despertar no espectador. Por isto é que a escolha da trilha sonora é importante, porque ela deve dialogar intimamente com as imagens e porque é ela que faz uma ligação mais profunda e direta com a emoção do espectador (mas não ao ponto de embotar a percepção cognitiva do que se está mostrando visualmente). Isto é o que explica a escolha das músicas que ajudam a compor o documentário. Mas esta escolha tem muito a ver com a subjetividade e com as memórias pessoais de quem está criando esta narrativa audiovisual (no caso, o professor Alberto quis revelar seu sotaque existencial paraibano e revelar sua profunda reverência para com nossas raízes indígenas, como povo mestiço que somos e como indivíduos herdeiros da cultura luso-brasileira; além de indicar sutilmente que precisamos resgatar os saberes indígenas sobre a floresta e incorporá-los ao nosso saber científico ocidental).

4 - Notei que não há narrador, que o entrevistador geralmente está atrás da câmera e algumas vezes é fonte de tanta informação quanto o entrevistado, as cenas são pouco editadas (no sentido de haver poucos cortes e retomadas). É como se seguíssemos um passeio da câmera e do entrevistador pelo Parque Santa Virgínia em companhia de um pesquisador e um guia. É um estilo muito diferente daquele "consagrado" para documentários da natureza. Eu gostaria que você falasse sobre essa escolha.

Não é que não haja narrador, o que acontece neste documentário em específico é que a narração é coletiva e inclusae não se coloca acima (ou por trás) da própria estrutura das imagens e sons de tal maneira que estas imagens e sons é que vão formando uma narração implícita, afinal, trata-se de uma documentação, in loco, na medida em que ocorre o trekking na trilha da floresta, dos diálogos sociais que ocorrem entre diversos sujeitos, todos igualmente importantes na feitura da estrutura narrativa do documentário. Mas isto é uma escolha estética que se sabe não convencional, mas está bem ancorada em teorias literárias que foram absorvidas pelo professor Alberto ao longo de sua vida. O professor Alberto talvez tenha pensado em uma leitura juvenil universitária que fez de William Faulkner, em Enquanto Agonizo, onde não há um narrador onisciente que fala em terceira pessoa, ou em primeira pessoa, de fora do romance, mas um coletivo de narradores que falam entre si, cada um a partir de seu próprio ponto de vista, de tal modo que o leitor não fica confuso, mesmo diante da falta de uma narrativa clássica onisciente, em primeira ou terceira pessoa (e linear). Pelo menos esta foi a intenção que pode chocar muita gente que talvez não pare para refletir na variedade enorme de estruturas narrativas possíveis que podem ser empregadas conscientemente na feitura de documentários (pelo menos a história do cine documentário, ao longo de todo o século XX, demonstrou que não há uma fórmula dogmática e linear a ser seguida, como a que há nas normas da escrita científica acadêmica; mesmo estas não são tão dogmáticas e lineares assim).

5 - Existem planos para outras produções?

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Sim, é claro. Isto porque o material que encontramos para ser explorado sobre a riqueza da Mata Atlântica, tanto em São Paulo, quanto no resto do país, é tão rico que não se contenta somente com um filme documentário como este e já havíamos pensado, antes da edição final do filme, que seria interessante pensar em termos de elaboração de uma série (na verdade, incluindo-se o Plantando o Saber e um outro documentário que o professor Alberto fez sobre a Mata de Santa Genebra em Campinas, com seus alunos adolescentes, já temos um começo de uma série que quer se estender mais nos próximos anos). Há ainda um riquíssimo material colhido sobre a proposta de agricultura florestal, em parceria com o professor Ricardo Testa, que ainda não foi editado e só está esperando uma melhor maturação. O projeto inicial era de fazer dialogar estas duas temáticas, a da preservação da floresta e a da agricultura florestal.

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Como parte da estratégia da produção do documentário, na linha do cinema verdade, o diretor do documentário evitou que o professor Ricardo Testa fosse conosco na floresta e que o professor Carlos fosse conosco ver uma experiência de agricultura florestal em Jundiaí (não quis que um fosse contaminado pelas ideias do outro, pelo menos como tentativa, se é que isto tenha sido realmente possível). Havia a intenção de problematizar até que ponto estas duas abordagens poderiam dialogar construtivamente entre si e com a sociedade na tensão política da busca de um desenvolvimento mais sustentável socioambientalmente, de modo que o projeto, como um todo, ainda está em andamento e terá outros desdobramentos. Só não temos concluído a parte relativa à integração da agricultura florestal aos resquícios de Mata Atlântica ainda existentes por todo o estado de São Paulo porque não houve tempo suficiente de maturação do projeto (e porque o material já captado ainda não foi editado) e tempo técnico para sua finalização (mas logo este material também estará pronto e editado, compondo um outro documentário que fará parte da série).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

6 - Quais seriam as sugestões para outros pesquisadores interessados em produzir vídeos a partir de seus projetos de pesquisa?

Não queremos ser pretensiosos de dar lições a ninguém. Cada um de nós cria sua própria história e a cria dentro de seu próprio contexto externo e interno, de modo que não acreditamos em fórmulas e receitas que podem ser seguidas à risca por ninguém, nem por nós mesmos, já que cada projeto tem sua própria lógica que não pode ser repetida por outros. Entretanto, acreditamos sim que há princípios que podem ser norteadores para nós mesmos e para outros. Ou seja, pensamos que é necessário desenvolver a consciência dos próprios pesquisadores (e a nossa) para documentar sua própria vivência de pesquisa (e a nossa), revelando para um público interessado, tanto os especialistas da área, quanto os que são leigos naquela especialidade, tanto os temas quanto a metodologia cotidiana que empregamos e a vivência concreta de pesquisa (além disso, isto ajuda a formar novos cientistas jovens que precisam desta experiência compartilhada dos que saíram na frente, porque são mais velhos e estão no caminho há mais tempo). Acreditamos que é preciso explicitar tudo o que acontece no decorrer da pesquisa, deixando para trás o fetiche positivista que pensa que o conhecimento científico é algo de tão extremamente rigoroso e puramente formal que não há espaço para o registro da subjetividade do próprio pesquisador que atua cientificamente (ou seja, partimos do princípio de que não existe um céu platônico de ideias científicas, porque a ciência se constrói mesmo é na história concreta da humanidade, em meio a contextos históricos e a inúmeras contradições da sociedade que a gera).

Martius

Sentimos que é preciso resgatar os velhos e saudáveis hábitos de manter os diários de campos entre os jovens pesquisadores que estão fazendo suas pesquisas neste início de século XXI, como os naturalistas faziam desde o século XVIII (não só o Martius, o Saint-Hilaire, por exemplo, mas o próprio Darwin, entre tantos outros, tinham este hábito). No mundo dos Currículos Lattes e das publicações científicas acadêmicas padronizados em que vivemos agora, ainda é importante o registro do cotidiano do pesquisador, não só por causa de supostos pendores literários esnobes que desejam ser expostos em academias literárias ou de ciências, mas porque estes registros são a documentação das ocorrências cotidianas, dos problemas intelectuais presentes na difícil labuta da pesquisa teórica inovadora ou meramente prospectiva de realidades empíricas. Neste mundo digital em que vivemos, é claro que a fotografia e a filmagem podem vir complementar os velhos e saudáveis hábitos do registro documental, sobre o papel, dos problemas intelecto-existenciais de cientistas que são, antes de tudo, seres humanos. Pode parecer desnecessário, diante do resultado final do trabalho de pesquisa, publicado formalmente em artigos, dissertações, teses e livros; mas não é não. Tanto os historiadores e demais cientistas sociais irão aproveitar muito desta produção dos bastidores das pesquisas, no presente e no futuro, quanto os próprios cientistas da mesma área do pesquisador irão apreciar as informações metodológicas e intelecto-existenciais de seus pares (até para rever procedimentos e metodologias, confrontando com novas teorias que inevitavelmente vão surgindo na história da ciência).

E eu gostaria das informações da "ficha 'técnica": os profissionais envolvidos, eu vi que tem 59 minutos, etc. Vi que disponível na internet e em mais em algum local? Por exemplo, se alguém quiser um DVD.

A ficha técnica é bem simples, porque todo o documentário foi feito, intencionalmente, de forma artesanal (que nada tem em comum com grandes produções industriais de cinema). Portanto, é a seguinte:

· Direção: Alberto Nasiasene

· Roteiro: Alberto Nasiasene

Carlos Nunes

· Câmera: Alberto Nasiasene

· Still: Loretta Nasiasene

· Participação especial:

o Heitor Munaretti

o Juliano Almeida

o Loretta Nasiasene

o Luciano Silva

· Duração: 59 minutos

· Produtora Rota Mogiana

Sinopse: O documentário apresenta, ao modo de uma caminhada, a trilha do Pirapitanga, na floresta atlântica existente no Núcleo Santa Virgínia, Parque Estadual da Serra do Mar, em São Luís do Paraitinga SP. É construído com forma de diálogo entre o botânico Carlos Nunes, que pesquisa especificamente as orquídeas na Mata Atlântica, o diretor do filme e os demais convidados, inclusive o monitor do Núcleo que os acompanha. O foco principal é o da documentação da pesquisa de um jovem botânico, em seu local de pesquisa de campo, muito mais do que o que está sendo pesquisado por ele. Há algo de comum entre a pesquisa de um botânico, na floresta, com a pesquisa de um antropólogo e este também é outro foco a ser observado.

Disponibilidade: Está publicado no YouTube (pode ser baixado livremente), mas também pode ser doado entrando-se em contato com o diretor e o botânico Carlos Nunes (co-roteirista). Licenciado sob o Creative Commons

E-mails para contato: albertonasiasene@uol.com.br e cepnunes@gmail.com

Este conteúdo veiculado no vídeo fez parte, indireta (como motivação em produzir um audiovisual com conteúdo de educação ambiental), do projeto Mais Educação na escola (do MEC) em 2011.

Emef Raul Pila

Diretora em exercídio em 2011:

Maria Iara Prado.

Orientador Pedagógico: Robson Alexandre Moraes.

Coordenador do Mais Educação em 2011

Leônidas Pellegrini

Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

Based on a work at www.rotamogiana.com.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page