O cerrado não vai acabar
"Todo pesquisador que na juventude cometeu a audácia de estudar uma região de seu país - de grande ou pequeno espaço, de longa ou curta história - aspira retornar muitos anos depois, a fim de reexaminar os fatos observados e revisar a nova conjuntura criada por foça da dinâmica social e pela atuação de fatores até certo ponto imponderáveis. Para um geógrafo, voltar a uma região do grande interior brasileiro é um ato de revisão das paisagens e espaços, em nível físico, ecológico e social. Mas também a oportunidade de questionar a si próprio, em termos de mudança de ética de observação e do modo de perceber os sistemas de relações entre grupos humanos e meios geográficos em mudança". Aziz Ab'Sáber (Os domínios de Natureza no Brasil; potencialidades paisagísticas).
Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014.
Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Fui criado em meio ao cerrado, porque as próprias quadras da Asa Norte, onde cresci, em Brasília, ainda eram preenchidas com o cerrado (é preciso lembrar, para quem não sabe, que a Asa Norte demorou a ser construída e, em minha infância, a maior parte das quadras era preenchida pelo cerrado e só havia algumas poucas quadras construídas, como as em que fui criado). Além disso, o campus imenso da UnB era todo coberto pelo cerrado e também não estava construído (a maioria dos prédios da UnB, onde meu pai trabalhava, era de madeira mesmo; a começar pela biblioteca central, pelas OCAs etc.). Portanto, o mero fato de ir à UnB (coisa que fiz desde pequenino, até para estudar na Escolinha de Artes da UnB) significava andar por meio ao cerrado; de modo que andar por ele, para mim, era muito normal e desejável (não era com tristeza que o fazíamos).
Alojamentos de estudantes da UnB em Brasília. 31 de dezembro de 2014.
Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene.
Mesmo que eu não seja católico, como historiador-cientista social, claro que os documentos, de quaisquer natureza (escritos ou não escritos), são importantes fontes às quais guardo um cuidado especial. Não só não os desprezo (quaisquer que sejam eles, mesmo documentos do cotidiano religioso popular como estes que trouxe comigo de Brasília), mas defendo a ideia de que devemos preservá-los com todo o cuidado. Pouco me importa os olhares de incompreensão (e a própria ignorância conceitual de alguns historiadores por demais habituados com um trato historiográfico em demasia tradicionalista, baseado unicamente em documentos escritos e oficiais das instituições públicas; por incrível que possa parecer, depois do marxismo e da escola dos Annales, ainda há aqueles historiadores tradicionalistas que pensam que documento são só os escritos e os "oficiais"). O que me interessa é a pesquisa criteriosa em fontes de origens diversas. Mais ainda, não me interessa somente constatar e descrever documentações, quaisquer que sejam. Interessa-me analisar com critérios conceituais sólidos provindos das ciências sociais. Este é o caso que aponto aqui, por meio destes documentos iconográficos e textuais do catolicismo popular praticado no Brasil que D. Maria de Lourdes Guide Costa me legou (mesmo em vida, ela sempre me dizia que eu poderia ficar com esta documentação cotidiana dela e ficava abismada com meu interesse de historiador por este tipo de coisa tão desprezada por tanta gente, mesmo sabendo que eu era protestante). Ela faleceu e eu nem soube, portanto, sinto uma pena não ter podido ficar com suas fotos (porque ela havia me dito que iria me dar tudo, para que eu guardasse e legasse tudo isto a um museu que pudesse preservar este tipo de documentação, quando eu mesmo morrer). Portanto, aqui faço minha homenagem póstuma a D. Lourdes que estará sempre dentro de mim.
Quando entrei na adolescência, em 1972, ainda havia muito cerrado na Asa Norte e na UnB, de modo que acompanhei muito D. Lourdes, nossa vizinha amiga, que ia frequentemente ao cerrado acender velas para as almas do purgatório (uma devoção pessoal dela que só depois, como historiador, iria descobrir que era uma prática bem antiga remontando ao período colonial). Claro que, crianças, em meio ao cerrado (nossa principal motivação não era acender velas, como a de D. Lourdes, mas descortinar o cerrado, como caçadores de delícias, tais como guariroba, cagaita, pêssego do cerrado, ou simplesmente passear etc.), temíamos sim que aquelas velas sob o forte vento (dependendo da época) podiam ser focos de incêndios (mas o cerrado era e ainda é uma vegetação que se adaptou ao fogo de forma que a floresta não o consegue; nós saíamos de perto das velas ouvindo a afirmação de D. Lourdes de que o que valia era a intenção de quem acendia e não importava se as velas apagassem com o forte vento).
Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014.
Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Mas, além das idas ao cerrado próximo ao nosso apartamento, para acender velas brancas para as almas do purgatório (sempre me questionava como é que aquelas velas poderiam "iluminar" as almas do outro mundo; sendo que D. Lourdes sempre as acendia durante o dia, e não conseguia nunca entender como uma luz material poderia se transformar em luz espiritual...), logo também passei a ir ver os despachos de umbanda que também usavam velas coloridas (dependendo do orixá, cores de velas diferentes). Os despachos de umbanda, tão em voga em tempos de ditadura Médici e Geisel, eram caros e mais variados, incluindo alguidares (vasos de cerâmica), cigarros, charutos, cachaça ou champanhe etc. (às vezes, roupas vermelhas e outros apetrechos mais industrializados). Eram feitos de baixo de árvores do cerrado, ou em encruzilhadas nos caminhos do cerrado (as encruzilhadas de exu eram diferentes, na forma, das encruzilhadas de pomba gira). Mas o efeito das velas coloridas acesas podiam ser ainda mais devastadores, porque eram em maior quantidade.
O pequizeiro é uma árvore de cerrado que produz um fruto muito apreciado na culinária goiana e do Centro Oeste. É um legado dos povos indígenas, especialmente dos cayapós e xavantes que já o conheciam e legaram aos colonos portugueses este conhecimento culinário (há muito ainda do conhecimento culinário indígena, na área de cerrado, a ser pesquisado e inserido em nossa pauta agrícola e culinária, na medida em que estes jovens pesquisadores vão aprofundando suas pesquisas). Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014. Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Nestes tempos, andávamos quilômetros dentro do cerrado em que hoje é o campus da UnB. Portanto, para mim, minha ligação com este cerrado (em que se vê nas fotos que fiz agora no final de dezembro passado) está muito arraigada em minhas memórias afetivas que brotam desde minha infância (o cerrado que conheci mais de perto era o próprio cerrado da área geográfica da Asa Norte e da UnB, por incrível que possa parecer hoje aos jovens brasilienses; porque, naquela época, esta área ainda era cerrado sem ter sofrido o processo de urbanização que veio posteriormente, especialmente depois da segunda metade dos anos 1970). Aliás, a avenida L2 norte não tinha duas pistas, nem ia até o fim da Asa Norte, como é hoje. Ela parava perto do que hoje é a SQN 407 e adiante era só cerrado (para quem não sabe, a numeração das super quadras vai até o número 16, portanto, dá para ter uma ideia de como o traçado da Asa Norte, visto de cima, nem estava completo, ficando pela metade do que seria seu tamanho). Olhando fotos antigas, de final dos anos 1950, quando a cidade ainda nem tinha sido inaugurada e estava em construção (mas quando é que Brasília não está em construção?...), dá para entender também o que vivenciei muito depois que a cidade foi inaugurada (depois de JK, o ritmo de construção da cidade arrefeceu, por várias razões, entre elas porque o seu principal adversário, o Jânio Quadros, apoiado pela UDN, que era inimiga visceral de Brasília, fez uma forte contenção que hoje é conhecida como "ajuste econômico," de corte liberal monetarista ortodoxo, sob o argumento de que era preciso brecar a "inflação galopante" (mal se sabia que inflação galopante viria depois, no final dos anos 1980, sob o governo Sarney e Collor) e a corrupção desenfreada; argumentos não muito diferentes do que a oposição neoliberal usa hoje; aliás, ela é filha e neta daqueles udenistas de antanho (os mesmos que acobertaram a corrupção da braba que ocorreu durante da ditadura militar, quando eles foram parceiros do regime, dentro do partido governista chamado de ARENA).
Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014. Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene. O estudante de engenharia florestal, Diego Ruas, mostra-me o cerrado da UnB (com base em sua experiência, mas também na orientação de seu professor, através de um livro sobre as espécies arbóreas de cerrado que ele segura na mão como guia).
Na verdade, esta oposição udenista queria mesmo era fazer voltar atrás a transferência da capital federal para Brasília (embora esta intenção estivesse formalmente expressa desde a primeira Constituição Republicana de 1891 e não fosse uma simples invencionice de JK como faziam parecer ser). Para eles, a construção de Brasília era um grande "descalabro" a ser combatido (mas isto também escondia velhos interesses oligárquicos da antiga Guanabara, já que se tratava de manter impostos federais fluindo para a Cidade Maravilhosa, base do poder político do Carlos Lacerda, principal líder da UDN, mas também de jornais udenistas como O Globo). Bem ou mal que tenha sido, quando os militares golpistas tomaram o poder, em 1964, acabaram, premidos pelas circunstâncias históricas, decidindo (ainda que titubeassem em indecisões de comando até o final dos anos 1960), permanecer em Brasília (afinal, os motivos geoestratégicos, táticos e defensivos de ter uma capital no centro do país prevaleceram sobre a tentativa de retornar a capital para o litoral vulnerável militarmente - num mundo com submarinos e porta aviões nucleares que podiam facilmente intimidar, humilhando, o governo brasileiro, meramente entrando na Baía de Guanabara e até bombardeando, através de navios, diretamente a cidade Maravilhosa, como aconteceu, no fim do século XIX, no incidente diplomático com a Inglaterra; os submarinos nucleares e porta aviões podem fazer isto melhor do que os velhos navios da marinha britânica do final do século XIX).
Por incrível que pareça, a engenharia florestal da UnB não se interessa por pesquisar o cerrado e está mais interessada em lidar com eucaliptos (estranho fenômeno que precisa ser analisado). Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014. Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene.
Demorou muito, mas este processo de interiorização da ocupação lusitana do território brasileiro não começou com a construção de Brasília não. Ao contrário, começou desde o fim da união da coroa portuguesa com a espanhola (depois que o último rei da dinastia dos Avis, D. Sebatião, morreu sem deixar herdeiros legítimos portugueses, sendo que o parente mais próximo a reivindicar o trono era exatamente o rei espanhol, Felipe II), em 1640. Portugal saiu empobrecido da União Ibérica (por muitas razões, entre elas porque os reis espanhóis gastavam toda a riqueza que vinha das Américas nas guerras de religião contra os holandeses, franceses, alemães etc.), mas havia alargado, como compensação, o território de sua colônia na América para muito além da divisa do Tratado de Tordesilhas (que passava, grosso modo, onde hoje se localiza a região de Brasília DF).
Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014.
Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Este processo foi muito bem analisado pelo historiador português Jaime Cortesão e já me referi a ele neste site. Ou seja, não foi por mero acaso ou descuido que isto aconteceu, porque mesmo antes do rompimento da União Ibérica, a nobreza portuguesa, através do Conselho Ultramarino, incentivava as entradas e bandeiras dos paulistas com vistas a se apoderar de um maior território do que o que foi reservado aos portugueses pelo Tratado de Tordesilhas (inclusive porque, durante a União Ibérica, Portugal havia perdido grande parte de suas possessões coloniais na Ásia, para os holandeses, franceses e ingleses).
Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014.
Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Foi neste processo histórico, que começa desde o século XVII, que os portugueses começam a tomar posse de uma região que não lhes estava destinada: a região amazônica (por mais que se considere esta região, hoje, um território brasileiro desde sempre, é bom lembrar que esta área estava para além do Tratado de Tordesilhas e pertenceria, em tese, aos espanhóis, não aos portugueses). Portanto, o empenho geoestratégico do Marquês de Pombal em fixar, finalmente, os limites demarcatórios geográficos entre as duas coroas ibéricas, a portuguesa e a espanhola, na América do Sul, em meados do século XVIII, foi o que garantiu que a Amazônia passasse a ser território luso brasileiro (num momento em que as demais potências europeias estavam muito ocupadas com seus negócios locais e disputas políticas, territoriais e econômicas internas na Europa; especialmente depois no processo que veio desembocar na própria Revolução Francesa). Isto é, não foi algo que ocorreu ao acaso, sem estratégia e sem movimentos táticos de negociação, num processo de longo prazo. Ao contrário, foi uma estratégia inteligente da classe dominante portuguesa que se sabia parte de um país europeu periférico e frágil (diante de uma Espanha mais forte), que havia perdido sua joia colonial na Índia para outras potências durante a União Ibérica, e isto desmente todas as anedotas que contam ainda hoje sobre a "burrice dos portugueses" e sobre um suposto atraso de nossa colonização lusitana face à colonização inglesa e holandesa (talvez, como revide, possamos dizer que nossa atual e decadente elite dominante e uma velha classe média brasileira, também decadente, de raiz udenista, é que tem a mentalidade muito colonizada, dependente e burra; não a nobreza portuguesa e o Marquês de Pombal, que, aliás, não era nada admirador de ideias ultra liberais em economia e defendia sim um papel estratégico, planejador e indutor, do Estado face à economia portuguesa fragilizada, que ele sabia ser bem diferente da economia inglesa de sua época que estava tomando corpo com a Revolução Industrial e captando todos os recursos, em ouro, que podia captar de Portugal, vindos do Brasil).
Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014.
Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Parte deste território que estava para além do Tratado de Tordesilhas, é preciso lembrar, era constituída pelo que chamamos hoje de bioma cerrado. Além disso, não custa lembrar que pelo menos mais da metade do atual estado de São Paulo não seria parte do Brasil, pertencendo como pertencia, oficialmente, à luz do Tratado de Tordesilhas, aos espanhóis (isto também quer dizer que grande parte do que hoje é o Paraná, Santa Catarina e todo o Rio Grande do Sul, não seriam Brasil, mas, provavelmente, pertenceriam ao Paraguai, à Argentina e ao Uruguai). Por outro lado, é bom não esquecer que o Pará, Amapá, Roraima, Amazonas, Acre, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul não seriam território brasileiro (nosso país, se não fosse o Tratado de Madri e o Tratado de Santo Ildefonso, seria mais ou menos um terço do que é hoje).
Cerrado da UnB, em Brasília. 31 de dezembro de 2014.
Fotos: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Para quem não conhece o bioma cerrado, é bom esclarecer que este tipo de vegetação facilitava a penetração das bandeiras dos paulistas até atingir o bioma amazônico propriamente dito. Ou seja, é fácil andar por meio ao cerrado, como andei em minha infância e adolescência. Mas o cerrado não era um bioma valorizado então, ao contrário, era espezinhado, ridicularizado e amaldiçoado (o agronegócio ainda não havia descoberto as técnicas modernas de torná-lo fértil e não se imaginava que isto fosse possível um dia).
"Em nosso país, no decorrer de três décadas, algumas regiões mudaram em quase tudo, incorporando padrões modernos que, muitas vezes, abafaram por substituição velhas e arcaicas estruturas sociais e econômicas. Tais mudanças se ligaram, sobretudo, a implantações de novas infraestruturas viárias e energéticas e à descoberta de impensadas vocações dos solos regionais para atividades agrárias rentáveis. Pensamos, explicitamente, no caso do centro-sul e sudoeste de Goiás e no exemplo da porção ocidental dos planaltos do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. [...] No conjunto desses processos, certamente foi muito importante a série de modificações na rede urbana do Brasil Central, forçadas pela implantação de Brasília". Aziz Ab'Sáber (Os domínios de Natureza no Brasil; potencialidades paisagísticas).
Alberto Nasiasene
Jaguariúna, 29 de janeiro de 2015
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