top of page

Os jovens cientistas são o futuro do Brasil e é preciso cuidar deles

A visão que se tem (qualquer que seja ela) dos filmes documentários que faço é calcada em padrões estéticos que a pessoa interiorizou, mesmo sem perceber. A linguagem cinematográfica é tão rica e flexível quanto a linguagem escrita, mas não a mesma coisa (há diferenças de estruturas lógicas, porque uma está baseada na palavra e a outra na imagem em movimento). Portanto, se uma pessoa espera ver algo "didático" (nas coisas que faço em termos audiovisuais), ficará decepcionada, porque não verá (intencionalmente). Mas isto está dentro da tradição do cinema documentário (que tem aversão ao didatismo) e eu nunca escondi de ninguém que minha referência estética é o cinema documentário, não o documentário televisivo, ou o documentário com fins de entretenimento ou de educação (não que eu seja contra nenhum destes gêneros de documentários, é que não é minha escolha estética).

Foto: Loretta Nasiasene. 2011

Por outro lado, se a pessoa interiorizou, sem perceber, o padrão estético de alguma escola de cinema documentário que não seja a que eu utilizo como referência (ou, por desconhecimento, o padrão que interiorizou é uma mistura eclética de estilos e gêneros diversos), irá se decepcionar também, porque a estética que pratico é menos "clássica" (e não segue uma suposta gramática do cinema que alguns pensam ser a única possível) e pressupõe o desvendamento claro do ponto de vista de quem está filmando (tanto que sou eu mesmo que pego na câmera e minha direção não é só externa ou ao lado, mas de dentro da captação da imagem que é feita por mim mesmo). Isto faz parte da proposta do cinema verdade, não que o Jean Rouch fosse o operador de câmera em todos os seus filmes, mas que ele não escondia do público que não havia neutralidade na escolha dos ângulos e enquadramentos, nem nas relações estabelecidas entre os personagens reais vivendo um momento de suas vidas e a câmera (e o sujeito que está por trás dela).

Loretta Nasiasene. 2011

Há uma escola de documentário americana chamada de cinema direto, que pressupõe um equívoco típico do positivismo científico, o do objetivismo. Esta escola, às vezes, é classificada (em livros teóricos sobre documentários) ao lado do cinema verdade francês, mas nada tem em comum com ele e é por isto mesmo que prefiro falar cinema verdade e não cinema direto (para não ser confundido), porque estou afiliado intelectualmente à proposta do Jean Rouch, antropólogo francês, não à dos americanos (embora o cinema documentário digital que pratico seja um tipo de cinema direto, ou seja, imerso na realidade, não gosto de usar esta expressão para evitar equívocos). Os cineastas do cinema direto americano acreditam numa balela como a de que é possível filmar como se fosse uma mosquinha parada na parede (sem interferir na realidade observada).

Loretta Nasiasene. 2011.

Eu não só não me proponho ser uma "mosca na parede", como desvendo claramente, para o público, que as filmagens são feitas por quem está atrás da câmera (no caso, eu mesmo) e que não há um ponto de vista "neutro", nem um enquadramento objetivista (mas escolhas, recortes, que são claramente assumidas como escolhas e recortes do real, não o real) que tenta simular uma neutralidade que não existe (afinal quem olha é o olho humano e sempre de um determinado sujeito que observa a partir de sua posição social, geográfica, existencial e histórica; no caso, eu mesmo, que estava perdendo a própria visão, por causa da catarata ao captar as imagens para o documentário Em Busca da Floresta, no Núcleo de Santa Virgínia do Parque Estadual da Serra do Mar, em São Luís do Paraitinga). Mesmo que a maioria das pessoas tendam a confundir o que veem na tela como se estivessem postadas a partir de um ponto de vista divino onisciente (como no tipo de narrativa literária em que o narrador está externo à trama, fala em terceira pessoa e é onisciente; ou como no texto científico demasiadamente objetivista e positivista que esconde todo o processo metodológico que está nos bastidores da construção daquelas conclusões apresentadas por escrito no artigo ou livro), é preciso quebrar esta falsa percepção, porque não há este "ponto de vista onisciente e onipresente" de fora da realidade (mas isto está de acordo com a metodologia da antropologia e da sociologia, no conceito de observação participante, por exemplo). O sujeito que observa e pesquisa não está de fora da realidade, está imerso nela (mesmo que a pesquisa dele seja na floresta e é por isto que fiz o documentário do modo que o fiz, porque estava querendo captar como o Carlos fazia a pesquisa botânica dele, não a sua pesquisa, que nem sei, em detalhes, como era, com o mesmo enfoque que ele, biólogo, realiza; aliás, eu morria de medo de atrapalhar o ineditismo da pesquisa dele, afinal, trata-se de um doutorado, um conhecimento novo que deve ser apresentado perante uma banca examinadora que ainda não aconteceu).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Portanto, vejam bem, a estética do cinema verdade parte de um ponto de vista ético de relação com os sujeitos que serão filmados e com eles mantém um diálogo explícito que não se esconde numa suposta neutralidade. Neste ponto de vista, desde o início, posso dizer que já havia proposto tudo isto ao Carlos, mesmo antes dele me levar lá (e mesmo muito antes dele ter uma ideia mais clara do que é esta proposta estética). Por isto mesmo é que o considero co-autor e co-roteirista, porque no cinema verdade não há um roteiro prévio a ser seguido (mas um planejamento do que se vai fazer que não pode antecipar acontecimentos fortuitos que irão acontecer somente enquanto a câmera estiver ligada), mas um roteiro combinado com os sujeitos no calor dos acontecimentos (embora planejado antecipadamente, como fizemos, desde os diálogos informais que praticamos, até o detalhamento dos procedimentos e necessidades materiais, no papel, que iríamos ter lá em São Luís do Paraitinga).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Eu já sabia que o Carlos não conhecia esta proposta (a esmagadora maioria das pessoas não a conhece)[mas agora ele já a conhece suficientemente bem], mas não me incomodava em deixar claro, desde o início, o que era que eu estava propondo (mesmo que a pessoa nem entenda o palavreado e a metodologia, ela vai se dando conta do significado dele na medida em que o processo vai acontecendo e vai aprendendo mesmo é com o próprio processo acontecendo). Por exemplo, sempre digo que o que faço não enriquecerá ninguém (e que abro mão de supostos direitos autorais que não quero), nem tornará uma pessoa qualquer "famosa." Não quero que as pessoas se iludam, nem quero alimentar ilusões, só aquelas que a magia da linguagem cinematográfica causa (porque também não escondo que é um mistério fascinante tentar capturar o tempo através da câmera fotográfica e da filmadora). Por isto mesmo é que eu dizia que precisava fazer tudo aquilo enquanto minha filha tivesse aquela idade (ela tinha acabado de completar 17 anos, antes de chegar à vida universitária) e o Carlos ainda estivesse em seu começo de doutorado, com 25 anos (nunca mais ele será o mesmo, não estará mais com 25, nem no início de seu doutorado). Eu mesmo, o que seguro a câmera, já não tenho mais os meus 51 anos (estou agora com 54), nem sou tão ignorante, existencialmente, a respeito do que é uma floresta por dentro, como era ao entrar nela pela primeira vez (se voltar por lá, já não será mais a primeira vez e o que resultará disto será um outro filme que quero fazer em parceria com o Carlos sim).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Tudo o que escrevemos, fazemos ou filmamos, é, na verdade, uma representação da realidade, não a realidade mesma acontecendo. Isto é um princípio metodológico básico e fundante tanto na arte, quanto na ciência (embora muitos cientistas não tenham clara consciência disto, por causa das ilusões positivistas enganadoras, que tendem a induzir que haja o tal ponto de vista "neutro", externo ao observado que não interfere, nem minimamente, no ser observado; a física quântica está aí para mostrar que isto não é possível nem na física). Sendo assim, como representação da realidade, qualquer obra terá sua própria dinâmica interna e sua própria lógica; como se ela tivesse vida própria que já não se confunde mais com nossa subjetividade e é por isto mesmo que temos esta sensação de estranhamento ao nos ver ali naquela representação de nós mesmos, como o Carlos já demonstrou que sentiu ao se ver falando e atuando (mas não se esqueçam que meu foco era exatamente este, era o de documentar a atuação de um botânico em seu local de pesquisa e por isto fico muito grato a ele por me permitir fazer isto, sem nenhum constrangimento e sem falsos pudores acadêmicos quanto à sua autoria privativa de produção de ciência muito ciosamente preservada como uma propriedade capitalista).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Ele demonstra, mesmo atrás de sua timidez, que está melhor preparado do que muitos biólogos (o fato de ser biólogo não é garantia de nada) para lidar com as questões ecológicas relativas à Mata Atlântica (conheço muitos biólogos que dizem muita besteira, num tom doutoral típico de quem se coloca em um ponto de vista pretensamente superior aos pobres mortais que não possuem um título de mestrado ou doutorado em biologia, nem são formados em biologia). Ora, o documentário também aborda esta questão, embora de forma ética e sutil (que nem todos irão captar, evidentemente). O que estou propondo ali é a problematização crítica do conhecimento biológico numa dimensão própria das ciências sociais, por causa de quem sou, evidentemente. O saber apresentado por alguns biólogos é um saber abstrato, excessivamente teórico e pouco contextualizado histórica e socioeconomicamente, como "O saber do especialista." O exato oposto do saber que o Carlos apresenta, mesmo que nem todos percebam claramente isto (não por acaso é que digo, no próprio filme, no finalzinho da caminhada, em diálogo com o guia do parque, o Luciano, que fiquei admirado ao constatar como é que o Carlos fazia sua pesquisa importantíssima do modo contextualizado e ecológico que eu esperava encontrar mas não tinha certeza se iria encontrar nele; porque nunca o tinha visto em seu campo de trabalho e pesquisa).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Não por acaso, o Carlos estava realizando uma pesquisa no mais alto nível do doutorado (embora tão jovem ainda) e não por acaso eu estava ali para documentar este milagre aos meus olhos. Ou seja, aos olhos de um professor de história com 51 anos de idade que tem sim um desprezo explícito para com os esnobes intelectuais (da classe média brasileira que consegue penetrar nos espaços excludentes das intituições universitárias brasileiras reservadas a uma suposta elite socioeconômica) que pensam que é o título que traz o conhecimento, não o contrário. Por isto é que gosto de dizer que há muitos "doutores de merda" (mas que não estou falando de patologistas não...) que não estão à altura de analfabetos doutos em sabedoria popular (ou no conhecimento etnobotânico dos povos indígenas).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Ou seja, por mais que nosso documentário tenha suas limitações (impossível não tê-las), ele tem também suas virtudes únicas, porque, afinal, é um documentário de um momento na vida de um jovem cientista, inteligentíssimo, calmo, humilde e muito generoso, que está lutando pelo conhecimento mais aprofundado da riqueza que ainda há no pouco da Floresta Atlântica que sobrou da devastação (na velha tradição de um Martius, também jovem, em 1817) para que nós possamos, finalmente, cumprir a meta de restaurar a Floresta Atlântica pelo menos em 30% do que ela era originalmente (e, neste início de século, estamos demonstrando ali que esta meta é perfeitamente possível, para pessoas que não acreditam que isto possa ser alcançado um dia).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Se não parar por aqui, esta conversa vai longe, porque, vejam, nosso documentário dá muito pano para manga ainda (mas manga de camisa, ou seja, nada contra a fruta indiana, mas o que quero defender como bandeira ali é a luta pela preservação da Mata Atlântica e sua restauração e de modo algum estou preocupado com formalidades acadêmicas, ao contrário, quero mostrar os bastidores da produção acadêmica de qualidade que é feita por seres humanos reais).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Meu filme foi uma tentativa, além de tudo, de valorizar o biólogo jovem e seu trabalho (e o de sua orientadora), diante de nossa sociedade que não entende a importância das orquídeas na Mata Atlântica e não entende a própria importância da Mata Atlântica (estão mais interessados em detonar o governo federal do PT do que em ver que consciência ecológica começa mesmo é no quintal de casa, no caso, no quintal tucano, partido ao qual está ligado um suposto partido verde brasileiro em São Paulo).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Quero realizar um documentário totalmente diferente daquele, agora, porque será entrevistando o Carlos e captando seu discurso dois anos depois (aí o documentário será outro e irá mostrar um Carlos Nunes que já não é mais aquele de 25 anos que estava iniciando o seu doutorado). Nossa série precisa continuar.

II

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

A intenção do Em Busca da Floresta está em mostrar um botânico como sujeito normal e, como a situação ali é a de uma pesquisa ao vivo, na medida em que estávamos caminhando, sem que ele soubesse previamente quais eram as perguntas que eu iria fazer (portanto, não estava preparado psicologicamente para responder o que não saberia que seria perguntado), não se pode exigir dele a perfeição acadêmica de um texto publicado em alguma revista científica. Aquilo ali não é uma publicação científica, muito menos acadêmica, mas tem o seu valor científico que os historiadores gostam muito (por isto mesmo é que falo tanto dos diários de campo). É um documentário nos moldes do cinema verdade e, mesmo que tenham sentido que há um descompasso entre o que se imaginava ver (como botânicos focados nas orquídeas) face ao que saiu concretamente como audiovisual, isto em nada desmerece o que fizemos (porque eu mesmo já me acostumei a este descompasso ao ponto de nunca saber como realmente vai ficar a não ser depois de finalizado o documentário, aí, preciso partir para outro projeto ao invés de ficar retocando o projeto já finalizado). Além disso, só mostrando, para quem não conhece, concretamente, no programa de edição que usei, como seria preservar a fala, mas acrescentar a imagem sobre a qual se está falando (mas isto é questão de estilo e não um pré requisito necessário; dependendo do que aponta o foco do documentário, no caso, eu estava focando no Carlos falando, não no que estava sendo falado). Isto não impede que façamos outro documentário, com outro foco e o Carlos sugerindo, como botânico, na mesa de edição, o que quer incluir e tirar. Mas, para isto, ele precisa estar junto comigo (mas nem sempre é possível, porque ele tem uma agenda lotada de pesquisa e compromissos).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Ele é meu co-roteirista não porque escreveu um roteiro prévio que não havia, nem porque escreveu um roteiro de edição a posteriori (embora tenha muita gente que trabalhe assim, aprendi com meu mestre Vladimir Carvalho que não é preciso fazer isto, porque esta formalidade de roteiro de edição existe mesmo é em nossa cabeça; o mundo digital só facilitou ainda mais esta maneira de fazer). Ele é meu co-roteirista porque planejou comigo a expedição e o tipo de tomadas que iríamos fazer, além de ter mantido comigo um diálogo permanente durante as filmagens (sem contar com o fato de que nós estávamos todos na área de atuação dele, a seu convite, sendo ele o anfitrião). Nem eu mesmo sabia como é que sairia o filme em sua versão final, mas não gosto do formalismo de muita gente esnobe (com seus documentários enfadonhos e pretensiosos) que fica dourando tecnicamente demais a sua produção documentária, porque, afinal, aprendi com Vladimir (o cineasta que fundou o moderno cine documentário brasileiro em Aruanda, em 1959) que o mais importante acontece em nossa cabeça e, na ilha de edição, precisamos manter o estilo de um artista plástico sem deixar que nenhum tipo de burocratismo tolhedor da criatividade seja um obstáculo que nos impede (como penso que o tal roteiro de edição muito formalista e baseado em modelos burocratizantes é).

Foto: Alberto Nasiasene. 2011

Alguns podem confundir esta abordagem com "improviso", mas só por puro preconceito, porque é tão "improvisado" quanto um artista de circo que, ao errar um movimento, cuida para que o público não perceba e sai tão bem sucedido, com sua criatividade (que só os mestres vividos têm) que o público aplaude ao final (porque o que importa é o resultado). Como dizem os artistas do palco (no circo ou no teatro), podemos improvisar sim, mas só na medida em que sabemos o que vamos fazer (ou que tenhamos ensaiado muitas e muitas vezes), de modo que o que faço só pode parecer totalmente improvisado para quem é preconceituoso e superficial na avaliação, porque é muito difícil "improvisar" com competência de quem sabe o que está fazendo e enfrenta os desafios que aparecem no momento em que estão aparecendo. Ora, este é o espírito desta escola de documentaristas e não consigo fazer algo diferente, mas, quem sabe, sei lá, poderei fazer, porque nunca se sabe do futuro.

Alberto Nasiasene

Foto: Loretta Nasiasene

Heitor Munaretti

Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

Based on a work at www.rotamogiana.com.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page