top of page

As folhas na calçada são bonitas


A cultura luso-brasileira, ao longo dos séculos, foi criando um pavor atávico da natureza tropical para as donas de casas "civilizadas". O seja, desenvolveu-se em nós um pavor de tudo o que represente a natureza tropical na qual vivemos e uma necessidade artificial de se criar um falso clima e ambiente europeu e norte atlântico em nossas casas, em nossos jardins e em nossos condomínios. Num momento em que tanto se fala em ecologia e "sustentabilidade," numa classe média supostamente "verde", é preciso quebrar este padrão cultural, gerado desde a colônia, neste novo século XXI. Sob este ponto de vista é que dizemos não dá mais para manter a hipocrisia de varrer a calçada com o esguicho da mangueira aberto com a maior naturalidade do mundo e ainda defender o suposto "verde" (algumas delas até votaram na Marina para presidente em 2010).

É também por isto que se manda calçar toda e qualquer parte da casa, do prédio ou do condomínio que esteja a descoberto (ou seja, em que esteja aparecendo a terra ou o solo). Não se pode conviver com o "mato", porque é uma coisa feia e perigosa para as crianças. Que dizer da fauna e dos insetos?... O resultado disto é a impermeabilização crescente do solo urbano e a consequente falta de absorção das águas das chuvas que vão sendo escoadas efusivamente para os córregos, ribeirões e rios com uma rapidez que não dá tempo do ambiente ir moderando os efeitos das enchentes urbanas que podem muito bem ser melhor controladas e evitarem a destruição rápida, se a terra voltar a ser liberada dos calçamentos e se a vegetação tropical, natural e bela por si mesma, que temos for valorizada.


Estas mesmas donas e donos de casas que fazem o que disse acima, são os mesmos que, depois de uma enchente qualquer, vão dizer que a natureza está castigando a sociedade pelo desrespeito ao meio ambiente. Ora, como podem falar estas coisas, com tanta convicção e, ao mesmo tempo, em suas atitudes e atos, desmentirem o que supostamente defendem, o equilíbrio da sociedade com as forças naturais? Sempre disse aos meus amigos professores que mudar comportamentos é muito mais complexo do que fazer supostas campanhas conscientizadoras de respeito pelo meio ambiente (é como ver aqueles pais permissivos fazerem "sermões" inócuos para seus próprios filhos; os filhos nem escutam o que eles dizem). Portanto, para quebrar padrões de comportamento, é preciso estratégia mais elaborada e meios de a cumprir muito mais eficazes do que supostas propagandas verdes que até atrizes globais gostam de ajudar.

Também não se aceita conviver pacificamente com as árvores, no ponto de vista de uma dona de casa muito preocupada com o asseio de sua calçada e de seu quintal. Ou seja, a sibipiruna, por exemplo, não é bem vista porque tem uma folhinha muito miudinha, o que torna difícil a varrição do quintal e da calçada quando vem a estação seca da estiagem tropical. Por isto prefere-se uma espécie importada da Ásia, que nada tem que ver com a ecologia da Mata Atlântica e da América do Sul, só porque ela tem uma folha mais larga (e, portanto, é mais fácil colher as grandes folhas da árvore do que as pequenininhas folhinhas da sibipiruna).

O interessante é que o cidadão comum brasileiro acha belíssima uma paisagem europeia ou norte-americana com o solo coberto por folhas multicoloridas de outono. Ou seja, belo continua sendo o europeu e norte-americano (alienada e colonizadamente), não o brasileiro e tropical. Portanto, é preciso sim começar a quebrar este padrão cultural de desprezo pela nossa beleza tropical, a começar pela valorização das espécies tropicais, como as da Mata Atlântica, que devem ter a primazia na arborização de nossas cidades (especialmente das cidades em que a vegetação original seja a de Mata Atlântica). Além disso, é necessário chegar o dia em que nenhuma dona de casa irá varrer sua calçada com o esguicho da água, ou evitar uma sibipiruna em seu pequeno jardim só por causa do tamanho das suas folhas (belo é ver a calçada coberta por folhinhas secas, na estação da estiagem: não a calçada limpa de folhas).

Nada contra o asseio, mas contra a falta de verdadeira consciência ecológica e contra uma estética urbana colonizada, alienada e brega. Chique é ser brasileiro, no Brasil, com tudo o que isto representa em matéria de tropicalismo. Se é necessário varrer a calçada, com o esguicho é que não deve ser feito, muito menos para tirar as folhas, que são um elemento natural integrante da paisagem urbana e fazem parte da renovação da fertilidade do próprio solo para que a vegetação possa continuar seu ciclo.

Aqui abaixo insiro trecho escrito por José Lins do Rego só para provar que meu evolvimento para com as questões da beleza tropical da paisagem urbana brasileira não vem de agora por causa do modismo ecológico. É muito mais antigo, porque nasceu no final da década de 1970, desde o ensino médio cursado em Brasília.

Abaixo, o texto:

A História das Relações da Casa com a Paisagem no Brasil

Casa E o Homem

José Lins do Rego

(...) A árvore era o inimigo mais próximo a aniquilar. Dela podia sair a morte. Um tapuia espreitava lá de cima o homem desprevenido para a flechada mortífera. Das ramagens, insetos partiriam em enxames, de casas de marimbondos, e pássaros de rapina armariam bicadas contra as criações domésticas. E as águas dos rios cresceriam em enchentes devastadoras. Era preciso fugir do rio como se fugia dos índios traiçoeiros. De súbito, o homem acordaria com a sua casa afundada nas águas barrentas das cheias que desciam em avalanche. E como não se podia destruir o rio como se destruíra a floresta, fugia-se para os altos. Batiam casas nos cocorutos das serras, nas lombadas dos morros. Os mestres-de-obras procuravam as alturas para dicar a cavaleiro dos inimigos inclementes. Quando não era o índio que irrompia das brenhas, eram os navios corsários com as suas bocas de fogo devastadoras. E para tanto a casa carecia de horizontes limpos para que se pudesse olhar tudo. Barras a descoberto e fendas de capoeiras batidas. Nada de árvores que tapassem a vista. A tal "casa branca da serra" tinha que ser mais uma fortaleza de paredes largas, de vigias abertas às surpresas da terra e dos homens, como olhos escancarados. Assim teríamos que viver contra a paisagem, a paisagem nos aterrava. A casa brasileira a princípio não foi uma mansão, mas espécie de trincheira batida com pedras e óleo de baleia. Os padres jesuítas construíram as suas reduções em quadrados de formação militar. As nossas primeiras aldeias eram como moradas de castores, casas grudadas umas às outras, em paredes-meias, tudo feito para a hora do perigo. Os portugueses que vieram das quintas patriarcais da "terrinha", com as suas castanheiras, com as doces sombras de suas árvores, teriam que ser nos trópicos uns derrubadores impenitentes, homens de machado em punho, de fachos nas mãos para as queimadas. Tratariam a natureza a ferro e fogo para poderem fincar o pé na terra nova. Só lhes serviam as árvores que eles plantassem, a que lhes dessem os frutos, as que fossem de sua serventia imediata. Árvores domésticas como os bichos, árvores para serem coradouros de roupas, galinheiros, cercas humildes, à altura do braço. Quando precisavam de madeira de lei, sabiam aventurar-se à mata virgem e arrancar de lá os paus linheiros, madeirame com que cobrissem as casas, forrassem as salas, levantassem púlpitos, construíssem os seus barcos. Nada de carinho com a terra. Nada de amolecer o coração duro para o selvagem que irrompia da floresta para matar. E quando a floresta foi dominada ficaria no homem que a vencera um certo sentimento de hostilidade atávica. Os avós dormiram com o pavor das incursões tapuias, o pavor das onças, das cobras, de todos os rumores das noites tropicais. E quando o homem, senhor de tudo, pôde viver como gente, após séculos de lutas cruentas, a casa que escolheria para morada não seria íntima da paisagem. As casas-grandes dos engenhos e das fazendas e os sobradões da cidade não procuraram nunca uma intimidade fraterna com o mundo em derredor.

(...)

As lições dos franciscanos não se difundiram como deviam, entre os nossos mestres-de-obras coloniais. O horror à paisagem continuou a predominar em suas casas, nos seus sobrados, nas suas igrejas. E quando D. João VI fundou o nosso Jardim Botânico, trouxe das Antilhas uma espécie vegetal que seria como a marca solene e sobranceira, se propagaria pelos quatro cantos do país. Era assim a paisagem que o homem impunha, à sua maneira. Nada de paus-d'arco, de arneira, de jacarandás. Os mestres paisagistas que a corte de Lisboa trouxera ao Brasil plantavam nas praças públicas, nas entradas de fazendas, nas proximidades dos edifícios, aleias de palmeiras, querendo assim dominar pela disciplina marcial às nossas exuberâncias tropicais. Mas já era uma natureza. As cidades brasileiras faziam praças, campos, jardins, os quintais se enchiam de variedades vegetais nobres, as cerâmicas do Porto espalhavam deusas por cima dos portões e escadarias.

(...) As casas brasileiras das fazendas e engenhos cercavam-se de árvores exóticas importadas. (...) O nosso Segundo reinado se requintou de jardins, mas quase sempre pôs de lado o que era realmente original na nossa paisagem. (...)

É quando surge a nossa escola de arquitetura brasileira. Le Corbisier tinha feito discípulos no país do sol. (...) A casa para ele não era um isolamento, um refúgio contra a natureza, tal qual um lazareto. Ao contrário, ele pretendia uma solução mais ecológica para a arquitetura. E, sendo assim, mais humana, mais prática, mais profunda. (...) Como na música de Vila-Lobos, a força de um Lúcio Costa, de um Niemeyer, de um Mindlin, proveio da nossa vida, de nossas próprias entranhas. (...) O arquiteto novo foi atrás do que havia de vivo nas casas antigas, do que havia de funcional nas soluções de mestres-de-obras que se orientavam como os navegadores primitivos, pelos dados da natureza. (...) Aconteceria então uma coisa extraordinária: as caatingas sertanejas, a floresta amazônica, as montanhas mineiras, os pampas gaúchos entram cidades adentro, sobem para as arranha-céus e vão ajudar o homem moderno a ser mais humano, a ser mais da sua terra, a ser mais gente do que somente uma pobre máquina de viver. (...) Os europeus que se assombram com a selva, imaginam que tudo é perigo de morte na selva. No brasileiro que a dominou ficaram restos de rancor contra ela. Não queríamos saber das nossas maravilhas vegetais. Mas todo este terrível mal-entendido se acabou. As pazes já não se hostilizam. Os nossos pintores já não têm vergonha das nossas cores cruas e da nossa luz brilhante. (...) Burle Marx, o grande artista dos nossos jardins, não faz outra coisa que procurar a terra para ser original e humano. Por isto, embrenhou-se pelas matas e trouxe de lá os seus jardins, manchas das caatingas, das plantas das praias. (...) A civilização que era a nossa força estava justamente no que desprezávamos. Os modernos artistas querem salvar a nossa paisagem. O homem para bem viver não pode ser conduzido contra a paisagem. (...)

Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

Based on a work at www.rotamogiana.com.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page