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A lei é para ser cumprida sim


É opinião corrente, entre certas camadas de classe média, que as leis foram feitas para serem burladas (mas esta mesma classe média ficaria altamente incomodada ao ouvir esta frase pronunciada por um cidadão negro morador de uma favela). Fico pasmo com tais convicções ainda presentes até em amplas parcelas do professorado, porque elas revelam a cultura antidemocrática subjacente às mentalidades predominantes no mundo da escola pública, a despeito de mais de trinta anos da redemocratização da sociedade brasileira. Há, entranhado no cotidiano docente, a convicção de que os "combinados internos" podem se dar à revelia das normas legais (desde que favoreçam interesses individuais e individualistas). Mas imaginem se isto se der em relação aos cidadãos negros favelados, dirão, imediatamente, que é formação de quadrilha para a prática de crimes (mas, em tese, seria isto mesmo o que aconteceria se "combinados internos" em uma escola pública desrespeitassem frontalmente a lei, qualquer que seja ela).

Portanto, o conceito ético político subjacente a esta mentalidade, o de burlar a lei, é deveras preocupante, porque vem ao encontro de velhos hábitos, velhas práticas, velhas concepções políticas, raciais etc. de uma classe dominante gerada no colonialismo português que conquistou, dominou, explorou, matou, exterminou povos e deixou esta herança maldita de pensar o país como alheado de si mesmo, em prol de uma pequena camada dominante e de elites estrangeiras no norte Atlântico. Esta herança colonizada tradicionalista, que comumente chamamos de conservadora, é a que mais reage contra uma legislação mais progressista que defenda os interesses nacionais face à exploração externa e face à opressão das camadas de trabalhadores internos (até mesmo dentro dos sistemas escolares).

Por aqui, por meio da mentalidade pedagógica no cotidiano, é possível ver a luta ideológica dentro das escolas e seus referenciais político existenciais maiores no seio da sociedade. Estes educadores fazem coro com a orquestra de organizações, instituições, veículos de comunicação e partidos que defendem a conservação do velho status quo e, cotidianamente boicotam todo tipo de avanço social, jurídico, pedagógico, político, econômico etc.

Há também a visão arraigada de que é pelo arbítrio individual do professor que se parte para a ação profissional, não a partir das normas legais, do projeto político pedagógico da escola em vigor, muito menos das diretrizes curriculares municipais e nacionais (dentro do mote de que as leis, decretos, resoluções, portarias e ordens de serviço são feitas para serem burladas). Isto quer dizer que o projeto político pedagógico real que se pratica no chão da escola, no cotidiano escolar, não está relacionado, direta ou indiretamente, com o projeto pedagógico da escola formalmente reconhecido e aprovado pelas instâncias legais (pior ainda, na maioria dos casos, este projeto oficial fica trancafiado em gavetas, ou em arquivos digitais, sem que os professores tenham acesso individual e cotidiano a ele, muito menos como parte pessoal de seus arquivos digitais em casa); muito menos com as leis tais como a 10.649 e a 11.645 que falam que artes, português e história devem incluir no currículo formal a valorização da cultura e da história da África e povos indígenas brasileiros (se foi preciso criar tais leis isto se deu porque a sociedade brasileira, em pleno século XXI ainda não atribui a estas matrizes formadoras de nossa nacionalidade igual medida face à matriz portuguesa que representa apenas menos da metade do contingente populacional brasileiro). Embora as leis citadas falem explicitamente nestas três disciplinas escolares, fala também que esta temática dever perpassar por todo o currículo escolar, de forma interdisciplinar.

Portanto, vejam bem, quando se fala em valorizar, isto significa dar o devido valor, em igualdade de condições (tudo o que a mentalidade colonizada eurocêntrica predominante não faz, porque, em sua escala de valores, tudo o que é de origem européia e branca está acima do que é de origem negra e indígena). Ou seja, não se trata apenas de ensinar a história e a cultura dos povos indígenas e africanos, dentro do currículo formal de história, por exemplo (coisa que os bons professores de história, engajados social e politicamente com as boas causas históricas, estão se esforçando em realizar). Trata-se de uma postura, de uma atitude interior que só é possível, realmente, na medida em que a sociedade brasileira vá tomando consciência de si mesma de forma afirmativa (de que é uma sociedade pluri étnica e mestiça, com uma boa consciência de si mesma, uma auto estima bem resolvida) e que as novas gerações já incorporem, desde criancinhas, esta identidade afirmativa de ser brasileira (com todas as conotações que isto traz à tona, como a de que somos, com orgulho de o ser, negros, mestiços, pardos, indígenas, afro, luso-brasileiros, nipo-brasileiros, ítalo-brasileiros etc.). Claro que sabemos que isto não se dará espontaneamente somente por decreto, porque é um processo social profundo que apenas está começando (mas é preciso ter a coragem de começar e isto só se dá através dos educadores mais corajosos que vão na frente abrindo caminhos e descortinando novos horizontes).

Isto quer dizer que o conceito de identidade que está posto na legislação educacional em vigor vai muito além do mero conceito formal de identidade individualista, descontextualizada, abstrata, sem cor, sem sotaque, sem língua, sem história social que existe em muitas mentes e bocas em reuniões pedagógicas. Por isto mesmo é que a identidade brasileira não cabe na cartilha tradicional que a escola pública, excludente da imensa maioria, adotava e está extrapolando, em muito, os estreitos parâmetros didáticos de uma pedagogia alienada e alienante, autoritária, mecanicista, descontextualizada, a-histórica, sem cor, sem cheiro, sem vida, sem sabor. Que os professores muito acostumados a não questionar tais parâmetros estão ficando desnorteados, é salutar para a sociedade brasileira, porque ela não aceita mais ser ignorada pela escola e permanecer invisível no próprio currículo que ensinam a suas crianças e adolescentes.

Portanto, a constatação empírica que se faz é a de que, muitas vezes, a formação inicial do professor (que pode ter sido feita há trinta anos) e os hábitos pessoais desenvolvidos ao longo da carreira é que norteiam a prática docente cotidiana em sala de aula. Sem falar que são os preconceitos típicos da sociedade brasileira, racista, homofóbica, machista, excludente em relação às classes populares etc. que compõem o currículo oculto ainda fortemente hegemônico no interior da escola pública (à revelia da lei). Não por acaso, é frequente que independentemente de projetos pedagógicos em vigor, de diretrizes curriculares, quaisquer que sejam, ou de decretos, portarias, ordens de serviço, resoluções, programas oficiais, quaisquer que sejam, a rotina didática da sala de aula continua a mesma, sem grandes variações (não só em relação a velhos hábitos herdados de uma educação centrada no professor, tradicionalista, decoreba, mecanicista; mas em relação ao uso de velhos instrumentos didáticos, como lousa e giz, já tão defasados face às periferias sociais que é até ridículo constatar que os alunos, mesmo os que moram em favelas, já trazem para sala de aula seus Smartfones enquanto seus professores ainda insistem que aprender só é possível por meio de lousa e giz, com fileiras e mapas de sala).


Ou seja, a formação inicial tradicionalista, mecanicista, fragmentada, autoritária, que os professores tinham, no século passado, bem ou mal que tenha sido, é ainda a base sólida em que eles, muitas vezes, ainda se apoiam hoje, em pleno século XXI (já na segunda metade da segunda década deste novo século; como se o século XX ainda continuasse em vigor), adaptando-a à sua experiência empírica e a sua rotina que não se questiona a si mesma, pelo menos a cada ano que se passa. Por isto mesmo é que a educação brasileira, especialmente a pública, precisa sim passar por um safanão profundo, impulsionada pelos movimentos sociais diversos, para se adequar às demandas sociais populares mais profundas que estão postas, especialmente depois das jornadas de junho de 2013.

Pior ainda, concebe-se a educação apenas em seu nível cognitivo, linearmente, desprezando-se os seus aspectos procedimentais e atitudinais como se educar fosse apenas uma questão supostamente possível de "transmitir conhecimentos" (cognitivos, mecânicos, decorebas etc.). Isto é, não se quer que as emoções das crianças e dos adolescentes se expressem na sala de aula, muito menos seu vigor físico corporal (na fase em que eles, explodindo de hormônios, começam a se preparar para a vida adulta); muito menos dialogar e educar levanto em consideração estas dimensões do ser humano que está inserido na escola como estudante (de modo que a escola mais parece uma fábrica de transformar gente em bonecos de madeira, como na fábula do Pinóquio ao avesso). Por incrível que pareça, ainda vigora, em muitas escolas, o velho conceito de que professor bom é o que deixa pelo menos metade da classe com notas vermelhas (porque é muito exigente e, ao fim do ano ou do semestre, ele pode dizer, eu ensinei, sem baixar o nível, os alunos é que não aprenderam) e é muito firme com os alunos (com cara de bravo e extremamente controlador, intolerante, disciplinador etc).

Se falamos dos aspectos cognitivos de um ensino tradicional, que não leva em conta os sujeitos chamados de a-lunos (ou seja, aqueles que não têm a luz, que somente o mestre supostamente teria) e, portanto, não incorporou conceitos de uma pedagogia construtivista pelo menos à la Piaget (muito menos uma pedagogia sócio crítica e transformadora, dialógica, como a de Paulo Freire), não devemos estranhar que , no chão da escola concreta que temos, nos sistemas escolares públicos, ainda estamos a anos luz de incorporar o que a legislação brasileira relativa à educação exige: o currículo em que a África (e os milhões de descendentes africanos que são mais da metade da população brasileira atual) e os povos indígenas estejam presentes como partes importantíssimas de nossa herança civilizacional.

Aqueles educadores que querem apenas cumprir a lei, sem agressividade e sem forçar a barra, avançando sobre esta realidade com maior ousadia (mas apenas para cumprir a lei) são acusados, o tempo todo, de inconvenientes, de "metidos", de "arrogantes", de quererem aparecer e ser melhores do que os outros... Ou, pior ainda, em tempos em que professores defendem a volta da ditadura militar, de "subversivos" (palavra equivalente a "hereges", durante a Idade Média, altamente significativa, em sua conotação, dentro de um contexto autoritário em que a vida dos inimigos internos era ameaçada, em sua semântica de criminalização às avessas; já que o crime aqui é o de obedecer a lei), que devem ser não só presos, silenciados, censurados, mas mortos (como afirmam em passeatas, vestidos de verde a amarelo). Não querem nem que se cite Paulo Freire, muito menos que se ensine e se valorize a cultura e a história dos povos africanos e indígenas brasileiros.

Entretanto, bem ou mal que seja, é preferível sofrer todo tipo de acusações porque estamos tentando cumprir a lei, do que ser criticado por não estar cumprindo a lei. Melhor ainda, é preferível tombar na luta pela afirmação das leis justas, do que tombar lutando contra leis injustas e a tirania (a Declaração Universal dos Direitos da Humanidade já apontava isto desde a Revolução Francesa). Alberto Nasiasene Jaguariúna, 28 de fevereiro de 2016


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