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O engenho nosso de cada dia


A economia colonial agro-exportadora e escravista ainda influencia fortemente o presente do país, como já tivemos oportunidade de explicar, principalmente através do chamado "agronegócio (que, na verdade, em essência, é a mesma atividade econômica já desempenhada pelo país desde o século XVI: a monocultura exportadora em mãos de uma classe dominante que não tem a menor preocupação com a preservação do meio ambiente em que as lavouras, em larga escala, vão desarraigando o bioma original em prol de lucros). Entretanto, é preciso lembrar que não se deve ver a herança colonial apenas em seu aspecto negativo. Por exemplo, como já apontamos anteriormente, nosso patrimônio histórico cultural colonial pode e deve ser melhor aproveitado para o desenvolvimento de novas indústrias que tenham uma relação menos predatória para com o meio ambiente e para com a sociedade. Não só o patrimônio imaterial, das festas e das manifestações culturais populares diversas, que foi gerado nestes cinco séculos de história brasileira, mas o próprio patrimônio material, tais como os mecanismos artesanais engenhosos herdados da colônia. Não que devamos ser saudosistas de um passado que se foi e está indo inevitavelmente (que se foi e está indo, sabemos, mas não tanto quanto muitos imaginam, porque a história tem sempre seus mistérios e muito daquilo que se pensava estar em vias de extinção sobrevive de um modo ou de outro). O que defendemos aqui é que podemos fazer novas e modernas interpretações e novas e modernas adaptações de um patrimônio técnico herdado secularmente, mas com vistas a atender novas necessidades sociais de uma sociedade que, evidentemente, não é mais a mesma que havia em tempos coloniais, mas gosta sim de cultivar suas raízes histórico culturais.

Os próprios prédios de antigos engenhos de açúcar, na medida em que seja possível preservá-los, pelo tombamento ou pela conscientização de seus proprietários, são um potencial veio econômico que pode ser melhor explorado pela indústria do turismo. Infelizmente, a mentalidade de muitos destes proprietários, herdeiros diretos dos antigos proprietários da época escravista é tão retrógada que entendem o "tombamento" (que significa apenas que o imóvel foi arrolado no livro do tombo do patrimônio histórico) como obrigação dos poderes públicos de manter o bem que é deles (quando, pela lei, o tombamento é só a proibição de destruição do patrimônio, mas não isenta os proprietários de cuidar dele). Se os poderes públicos teriam a obrigação de cuidar do patrimônio tombado, então, no caso, não se trata de um simples tombamento, mas de um tombamento seguido de desapropriação (e este é o caso de muitos imóveis que hoje são instituições públicas tais como museus) ou de venda e compra entre os antigos proprietários e os poderes públicos.

Bem ou mal que seja, de um jeito ou de outro, pelo tombamento, pela conscientização dos novos proprietários com mentalidade mais moderna e mais generosa ou pela necessidade econômica pura e simples, muitos engenhos de açúcar e rapadura, Brasil afora, estão ainda em atividade e foram inseridos em algum tipo de circuito turístico. Há um público qualificado disposto a pagar para ver, in loco, o patrimônio material e imaterial destes engenhos que sobreviveram a outras formas de avanço tecnológico do capitalismo dominante no país. No nosso entender, o próprio processo de produção da rapadura ou do açúcar deveriam ser tombados como patrimônio imaterial do povo brasileiro pelo IPHAN. São técnicas artesanais que não sobreviverão caso seus trabalhadores morram sem as legarem formalmente para as novas gerações. Parte destas técnicas era operada por escravos africanos e índios, outra parte por portugueses livres que constituíam uma camada intermediária entre a classe dominante e a massa de escravos. Os próprios escravos que eram empregados no engenho, envolvidos diretamente com o fabrico do açúcar, eram melhor preparados tecnicamente do que os escravos que permaneciam diretamente na lavoura da cana e no seu transporte (mas, mesmo aqui, há um patrimônio imemorial e imaterial a ser preservado; desde as técnicas de plantio, de cuidado da cana, até às técnicas de manter uma horta para a própria subsistência dos escravos - vem daí grande parte de nossas tradições culinárias).

Os engenhos de açúcar, ao longo dos séculos, eram não só diferenciados (havia vários tipos de equipamentos e de engenhos convivendo ao mesmo tempo, ao contrário do que muitos imaginam), mas, principalmente a partir do final do século XIX e início do século XX, transformaram-se em usinas mais complexas, em que os avanços técnicos da Revolução Industrial foram incorporados de modo maciço. Na verdade, mesmo no começo do século XXI, a maioria das usinas de açúcar e álcool são, basicamente, as mesmas (com melhorias e aperfeiçoamentos técnicos aqui e ali, mas dentro de uma mesma estrutura). Embora a maioria dos engenhos sobreviventes estejam na região Nordeste (na Zona da Mata), as usinas mais numerosas estão no estado de São Paulo. Campinas, por exemplo, no interior do estado, começou sua atividade econômica, no final do século XVIII, com a lavoura da cana e engenhos de açúcar. O café veio tomar o lugar da maior parte desta lavoura de cana e destes engenhos, mas não os erradicou completamente em nenhum momento da história, tanto que ainda hoje há usinas e amplos canaviais existentes no município.

É muito importante lembrar que a história deve ser entendida de modo dialético de tal maneira que, quando falamos que devemos superar certos aspectos negativos do arcabouço colonial (presentes na alienação de nossas elites dominantes, por exemplo e no agronegócio predador, desmatador e truculento) de nossa sociedade, não estamos falando que devemos passar uma borracha em tudo isto e erradicar este passado "vergonhoso" de nosso presente (mesmo porque, não é possível, nunca, passar uma borracha na história concreta, nem mesmo na historiografia, porque o passado sempre fica lá, mesmo que inconscientemente). O que defendemos é que a história deve superar, num sentido dialético, avançando em espiral (não linearmente), certas mazelas do período colonial ainda presentes em nossa sociedade (como a grande desigualdade social), realizando uma síntese entre nossos sonhos de uma sociedade menos desigual e mais feliz com um arcabouço que herdamos, querendo ou não querendo, a partir do presente em que vivemos agora. O futuro é construído por nós mesmos, a partir das escolhas que fazemos no presente, encarnados em um contexto concreto que herdamos do passado. Não fazemos estas escolhas de modo exclusivamente subjetivo (ou espiritualizante, como pensam os muito devotos), mas dentro de um arcabouço material que não depende somente de nossa vontade. É o jogo dialético entre nossas vontades (que não são, em si mesmas, tão soberanas quanto gostamos de pensar) e a realidade que nos envolve que chamamos de processo histórico coletivo. Nosso país já não é o mesmo de quinhentos anos atrás, mas ainda guardamos deste passado mais remoto muitas das realidades negativas e positivas. Mesmo não tendo ilusões de que podemos chegar a um momento histórico totalmente positivo, podemos sim superar, dialeticamente, certos aspectos negativos de nossa herança, como vemos fazendo ao longo destas décadas todas que nos antecederam.


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 2 de março de 2013


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