A geografia sagrada guarani está entranhada em São Paulo mais do que se imagina
Cacique Krai Mirim e Adriana Barão. Foto: Alberto Nasiasene
Esta foi a primeira oportunidade que tive de entrar em uma aldeia indígena. Já conhecia muito da história e cultura dos povos indígenas, mas nunca tive a experiência de entrar em um espaço geográfico propriamente indígena. Portanto, nada há que se compare com a experiência empírica sensorial de entrar em uma aldeia indígena. As sensações e pensamentos que surgem da experiência são difíceis de expressar por meio de palavras escritas. Entretanto, tentarei traduzir esta experiência com palavras escritas aqui.
A localização da Tekoa Pyau no município de São Paulo está assinalada, no mapa da placa, em verde. É um parque com um fragmento importante de Mata Atlântica, ao lado das rodovias Anhanguera e Bandeirantes. Cacique Krai Mirim. Foto: Alberto Nasiasene
Em primeiro lugar, eu já tinha um conhecimento genérico a respeito dos guaranis no estado de São Paulo e, especialmente, sobre a aldeia existente na região do Pico do Jaraguá, na cidade de São Paulo. Sabia das inúmeras dificuldades enfrentadas por esta comunidade, através da própria internet. Entretanto, inúmeros elementos desta realidade concreta da aldeia guarani do Jaraguá só poderiam ser conhecidos através do contato direto com a aldeia. Portanto, somente no dia 15 de dezembro deste ano de 2015 é que, finalmente, conseguimos obter a autorização/convite para ir à aldeia do Jaraguá.
Cacique Krai Mirim. Foto: Alberto Nasiasene
Claro, esta oportunidade só se tornou possível graças à mediação do Museu da Cidade de Campinas, na pessoa de Adriana Barão e por via institucional (com o uso oficial de um carro da frota da Prefeitura de Campinas). Também não podemos deixar de mencionar que nossa visita à aldeia guarani se deu como retribuição à visita que o Museu da Cidade de Campinas recebeu das lideranças guaranis da aldeia do Jaraguá, para um evento temático relativo aos povos indígenas (o museu tem um grande acervo de cultura material indígena em sua reserva técnica e há a intenção de dialogar, cada vez mais, com ele; mas a partir das culturas vivas dos índios brasileiros que não desapareceram da história concreta atual).
Cacique Krai Mirim. Foto: Alberto Nasiasene
Por isto mesmo, motivado pelo envolvimento anterior com a pesquisa e comprometimento com a causa indigenista, em suas múltiplas dimensões sociais, culturais, históricas e geográficas, pedi à Adriana Barão que intercedesse com os guaranis, pelas vias institucionais, para obter a permissão das lideranças da aldeia do Jaraguá de fazer uma visita à aldeia a fim de realizar um documentário com eles. Graças a Nhanderu (como os guaranis chamam Deus), foi possível realizar este sonho desejado há tanto tempo, com a intermediação do Muci Campinas.
O motorista da Prefeitura de Campinas no Muci. Foto: Alberto Nasiasene
Como eu nunca tinha ido a esta aldeia em minha vida, mesmo sabendo da existência dela, é claro que não tinha a menor ideia de como ela era e de onde se localizava concretamente, em meio a esta selva de pedras que é São Paulo (uma realidade sempre assustadora). Portanto, meu documentário sobre a Tekoa Pyau já começa registrando minha chegada a ela, vindo da rodovia que conduz o motorista de Campinas até São Paulo (na verdade, duas rodovias que se entrecruzam, a Anhanguera e a Bandeirantes, nomes bastante sugestivos, não?). Quando lá chegamos, vimos muitos carros da Prefeitura de São Paulo, mais particularmente, da Secretaria de Edução da Prefeitura de São Paulo, que estavam dentro da aldeia para comemorar os dez anos de existência do CECI (Centro de Educação e Cultura Indígena) do Jaraguá. Como não conhecíamos ninguém da Secretaria de Educação de São Paulo, nem sabíamos a quem nos dirigir, ficamos meio desnorteados. Entretanto, isto nem era um problema, já que nossa intenção estava focada em nos encontrar com os guaranis propriamente ditos, não com autoridades municipais de São Paulo, com todo o respeito que devemos a elas (inclusive porque permitiram nossa presença neste momento, junto com eles).
Cacique Krai Mirim e Adriana Barão. Foto: Alberto Nasiasene
Portanto, nos momentos iniciais, ficamos apenas a explorar, visualmente, a realidade viva da Tekoa Guarani, observando as inúmeras crianças, adolescentes, mulheres e homens (muitas e muitas crianças e adolescentes de tal maneira que pensamos que elas é que são a maioria do povo e isto nos deixa cheios de alegria, por sabermos que o povo está vivo e continuará vivo através de suas crianças que falam, todas elas, guarani entre si). Somente depois de algum tempo é que fomos conduzidos à presença do Natalício, Karaí, o vigia da CECI (um dos anciãos que compõe a liderança comunitária da aldeia; tio do cacique) e, a partir daí, à presença dos outros líderes comunitários que nos receberam muito atenciosa e generosamente. Mas não podemos deixar de lembrar que todas as crianças e adolescentes nos receberam muito generosa e alegremente desde o momento inicial em que pisamos a aldeia.
Cacique Krai Mirim. Foto: Alberto Nasiasene
Ao nos conduzir para a casa das orações/reza, situada culturalmente no centro da aldeia guarani (Tekoa Pyau), senti que minha invocação para que Nhanderu nos abrisse as portas naquele evento, para o qual não estávamos previamente preparados e em meio à aldeia, meio desnorteados, sem saber o que fazer e a quem nos dirigir e onde encontrá-los, foi atendida. Nosso foco principal não era o de participar de mais um evento oficial, por mais respeitosos que pudéssemos ser às autoridades constituídas da rede municipal de ensino de São Paulo capital. Nosso foco era estabelecer um contato mais pessoal e mais íntimo com os indígenas guaranis daquela aldeia em específico, tanto como retribuição à visita que eles fizeram em Campinas, a convite do Museu da Cidade (Muci), quanto como desejo de criar um vínculo pessoal permanente com eles com a intenção de estabelecer uma aliança cidadã, cultural e pedagógica constante com as causas consideradas por eles as mais relevantes para sua comunidade.
Cacique Krai Mirim e Adriana Barão. Foto: Alberto Nasiasene
Portanto, quando Tupã Mirim (depois seríamos convidados novamente por Krai Mirim, o cacique), uma das lideranças locais, nos convidou para entrarmos na Casa da Reza, sabia que eles estavam nos recebendo de coração aberto e espírito generoso, para que fôssemos ouvidos no lugar mais sagrado da aldeia e, imediatamente, fiquei muito agradecido a Nhanderu por receber esta honra. Sabia sim que estávamos sendo convidados para entrar no Palácio, como embaixadores que éramos do Muci (eu que fui criado em Brasília e presenciei tantas autoridades estrangeiras serem recebidas nos Palácios do Planalto, do Itamaraty e do Congresso Nacional). Minha reverência para com aquele momento de honra já havia me preparado para saber que, naquele espaço sagrado, em reverência à ancestralidade guarani, não seria permitido gravar imagens. Por isto mesmo, muito normal recebi o pedido de não gravar nada ao entrar no solo sagrado e isto, de modo algum, me ofendeu, mas me trouxe uma grande alegria sim de ser recebido daquela maneira por eles.
Foto: Alberto Nasiasene
Somente depois é que fui me dando conta de fenômenos culturais que só entendemos melhor quando paramos para refletir sobre as impressões e emoções que recebemos ao entrar naquele espaço sagrado. Por exemplo, disse para Adriana Barão que, ao nos abaixar para entrar na pequena porta (ornada, em forma de arco, com folhas de palmeira; o que me fez, imediatamente, lembrar dos arcos que são feitos nas folias de reis antes de adentrarmos a residência em que eles vão fazer uma "embaixada"), o primeiro grande impacto que recebemos, ao fazer obrigatoriamente uma reverência com o corpo, para não batermos com a cabeça no topo da porta, era o de sermos imersos numa escuridão ritual que nos faz mudar de atitude automaticamente, face ao lugar sagrado (leva algum tempo para nossos olhos se acostumarem com a escuridão e somente assim é que passamos a enxergar o interior). Ou seja, não entramos no lugar sagrado como quem caminha sobre as ruas de São Paulo num dia comercial qualquer. Entramos no lugar sagrado do mesmo modo que um sacerdote do Templo de Jerusalém entrava no santo lugar, de forma ritual, previamente preparados para a santidade da presença de Nhanderu. Claro, esta foi inicialmente a primeira comparação que fiz, em meu interior, dentro de minha subjetividade mais sagrada, porque já conhecia o significado cultural e simbólico de todo o ritual sagrado para os judeus, mas também porque já conhecia a simbologia do xamanismo estudada por Mircea Eliade (que se refere ao mesmo conceito de "centro do mundo," axis mundi, e de lugar sagrado como o centro da própria habitação dos povos pré históricos, tribais e modernos).
Foto: Alberto Nasiasene
Por isto mesmo é que comparei a mesma experiência prévia que já tinha de entrar, inúmeras vezes, tanto na Catedral da Sé, em São Paulo (onde está enterrado o cacique Tibiriçá, aquele que autorizou o padre Manoel da Nóbrega a subir a Serra do Mar, pelo caminho do Peabiru, e a construir um colégio para os curumins tupis-guaranis naquela que era apenas uma das aldeias de Piratiniga e hoje é o centro de São Paulo capital), quanto na Catedral de Campinas (ambas nos centros geográficos das aldeias urbanas que são São Paulo e Campinas). Ao adentrarmos tais locais sagrados, mudamos de atitude e de experiências sensoriais imediatamente, porque são locais com menos barulhos ambientes, menos exposição aos fortes raios solares, ao calor etc. (e porque há este fenômeno em que nossa visão fica imersa em uma escuridão momentânea antes de se acostumar com a penumbra ambiente). Sabia que estas comparações antropológicas de realidades religiosas tão distintas, na superfície fenomênica imediata, eram uma maneira de perceber elementos em comum de culturas e sociedades tão distintas uma da outra, como a nossa sociedade e a sociedade guarani. Portanto, como não perceber o terreno comum de experiência fenomênica face ao sagrado, quando entramos tanto em um templo como a Sé e a Catedral de Campinas ou a Casa da Reza da Tekoa Pyau? Percebi claramente que, ao adentrarmos estes locais centrais onde os rituais sagrados são realizados, nas duas sociedades que se relacionam, na mesma geografia (a que chamamos de Brasil e estado e cidade de São Paulo), de modo conflituoso, somos compelidos a deixar o mundo fenomênico do cotidiano profano para adentrarmos na geografia do sagrado. Ou seja, é como se estivéssemos saindo do mundo da percepção profana, o mundo concreto em que vivemos historicamente, para entramos no mundo da percepção do sagrado, o mundo do Espírito, com sua outra temporalidade cultural bem distinta da temporalidade cronológica de nosso calendário profano (e é aqui mesmo, nesta temporalidade comum, que nos encontramos como seres humanos que somos, apesar de nossas diferenças culturais e sociais).
Foto: Alberto Nasiasene
Entretanto, é preciso chamar atenção para este fato: se fomos levados a atravessar o limite cultural entre o profano e o sagrado, para sermos recebidos no espaço sagrado propriamente dito, pelas lideranças guaranis locais, isto queria dizer claramente que fomos aceitos, pela intervenção de Nhanderu, que conduzia as lideranças, em sua percepção cultural-espiritual da vida e do mundo, como embaixadores de alguma missão importante, para os guaranis da Tekoa Guarani, a ser anunciada para nossa sociedade externa. Não por acaso eles queriam nos ouvir e nos falar ali, no lugar sagrado, na presença da ancestralidade mais sagrada do povo guarani: estávamos recebendo deles as demandas mais sagradas do povo em face de nossa sociedade envolvente, para que, lá fora, na nossa sociedade, pudéssemos defender os interesses mais sagrados dos guaranis da Tekoa Pyau.
Cacique Krai Mirim e Adriana Barão. Foto: Alberto Nasiasene
Este foi o teor das conversas que tivemos no espaço sagrado. Em primeiro lugar: a dignidade ancestral do povo guarani precisa ser melhor compreendida e respeitada pela sociedade luso brasileira maior envolvente. Em segundo: eles não buscam os mesmos valores monetaristas de nossa sociedade dependente de dinheiro e trocas comerciais (não querem viver unicamente em função da produção e da venda de artesanato, porque a vida comunitária deles não pode se resumir unicamente a isto, à produção de valores de troca). Terceiro: eles querem que entendamos que o modo de ser guarani (nhandereko) é muito diferente do modo de ser capitalista brasileiro atualmente (já era bem diferente do modo de ser português, na época colonial escravista) e que precisam, acima de tudo, da terra que sempre foi deles como elemento concreto em cima do qual a cultura guarani não pode se manter plenamente, de forma autônoma, face à nossa sociedade (seus valores culturais predominantes não se reduzem a valores de troca, mas predominantemente em valores de uso cultural e social cotidiano, que, evidentemente, não têm preço).
Foto: Alberto Nasiasene
Eles são parte da família dos povos originários que nos receberam, há quinhentos e quinze anos, da forma mais generosa que podiam e não estão querendo nos expulsar todos da mesma terra em que habitamos juntos (de modo conflituoso desde séculos). Querem apenas que respeitemos um mínimo de dignidade honrosa face ao território mínimo que era e continua sendo deles (nós é que fomos, cada vez mais, tomando-lhes a liberdade de circular pela própria terra que era toda deles, porque fomos construindo nossas habitações sempre e sempre em cima dos territórios das aldeias deles; como é o caso de São Paulo, que foi construindo seus principais bairros em cima de antigas aldeias tupis-guaranis). É muito pouco o que temos para lhes oferecer, mesmo assim, muitos de nossa sociedade nem reconhecem este mínimo irrisório e a ancestralidade guarani de São Paulo (quem sabe, com a intercessão das grandes almas do padre Manoel da Nóbrega e do padre José de Anchieta esta resistência será, cada vez mais, reduzida a nada); mas eles não estão nos implorando, como mendigos que não são. Estão demonstrando, com muita dignidade, ao contrário, seus direitos naturais que eram reconhecidos até por sua Alteza, el Rey de Portugal, nos tempos coloniais. Mais ainda, estão demonstrando que também são cidadãos da moderna República Federativa do Brasil, do estado de São Paulo e município paulistano, com os mesmos direitos das demais colônias estrangeiras que vieram habitar esta grande aldeia urbana que chamamos de São Paulo (antes chamada de Piratininga por tantos colonos luso brasileiros, que, aliás, também falavam o nhenhengatu, como tantos tupinambás, tupiniquins e guaranis...).
Cacique Krai Mirim. Foto: Alberto Nasiasene
Todas as colônias estrangeiras recebidas por São Paulo foram bem tratadas e honradas (os italianos, os espanhóis, os alemães, os judeus, os árabes, os armênios, os gregos, os japoneses, os coreanos, os chineses etc.) pela grande nação brasileira e têm até bairros inteiros organizados por elas, em que se falam as línguas originais destas colônias (esta grande nação nunca fez genocídio algum com estes povos que vieram de longe habitar esta Terra das Palmeiras, Pindorama). Por que não os povos originários que nunca deixaram de habitar esta mesma terra? Por que somente eles não podem continuar a preservar seu próprio modo de vida, sua cultura, sua língua, sua religiosidade? Por que ainda são vítimas de um processo genocida que não ocorreu em relação a estes outros povos que nem eram originários desta terra como eles?...
Cacique Krai Mirim. Foto: Alberto Nasiasene
Para mim, que sou educador de história, comprometido desde décadas com as causas indígenas brasileiras (afinal, uma de minhas dezesseis tataravós era uma índia potiguara, da grade família Tupi-guarani, batizada de Florência Guimarães de Aquino; aldeada no aldeamento Bultrim, na Paraíba do século XIX), foi muito sagrado e uma grande honra ter recebido esta missão diretamente das lideranças guaranis atuais da Tekoa Pyau, no dia 15 de dezembro de 2015, na embaixada (refiro-me, simbolicamente, à tradição popular da Folia de Reis) que fizemos, com Adriana Barão, do Museu da Cidade, e o motorista da Prefeitura Municipal de Campinas, Luís (também descendente de índios paulistas, na divisa com Mato Grosso do Sul). Portanto, não poderia deixar de chamar atenção para o fato de que os guaranis, em sua geografia cultural, localizam estas duas instituições no centro da aldeia: a Casa da Reza e o CECI (Centro de Ensino e Cultura Indígena, da rede municipal de ensino de São Paulo). Claro, estamos falando não no centro geográfico, entendido de modo cartesiano, mas no centro cultural de sua comunidade (as coordenadas geográficas não coincidem exatamente com o centro da mente de geógrafos positivistas).
Foto: Alberto Nasiasene
Isto é, para os guaranis, seu modo de vida não pode ser dissociado de seus valores culturais mais sagrados, de modo que terra, educação, religião, rituais, modo de viver, com suas diversas tecnologias e tradições etc. são realidades indissociáveis de sua dignidade comunitária e fazem parte de sua própria identidade étnica face às demais etnias vizinhas da grande aldeia Juruá (este é, "juruá", o termo que eles, os guaranis, usam para dizer sobre os não-índios, nós). Por isto mesmo é que estas duas instituições estão no centro da comunidade: a Casa de Reza e a Escola.
O CECI Tekoa Pyau
Alberto Nasiasene Jaguariúna, 23 de dezembro de 2015
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