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Reforma agrária


Eu gravei, em um pequeno gravador analógico, em 1998, na Faculdade onde estava concluindo minha licenciatura de história, esta palestra proferida pelo professor Paulo Martinez, baseada em um livro que ele escreveu (publicado pela editora Moderna), sobre a questão da Reforma Agrária no Brasil. Depois eu iria transcrevê-la ipsis litteris (um trabalho estressante que não faço mais, como já disse), porque o assunto era um desdobramento de meus interesses de investigação historiográfica, quando estive envolvido com a pesquisa sobre a transição do mercado de escravos para o mercado de trabalho no campo paulista. Estávamos bem no meio do reino do príncipe da sociologia brasileira e as políticas neoliberais estavam em seu auge de aplicação. O Plínio Arruda Sampaio ainda era do PT (mas, vejam bem, a avaliação política que o professor Paulo Martinez fazia de sua atuação parlamentar, a pretexto da reforma agrária, não é nada lisonjeira para o Plínio Arruda).

A política conjuntural vai dando suas voltas, enquanto gira inteira a terra, sobre a pátria desigual (como diria um ex-poeta engajado com as causas sociais, ex-comunista, que aderiu descaradamente à campanha fascistizante do Serra em 2010). Isto é, já me acostumei com estes "fenômenos" de viras-casacas e reviravoltas políticas desde muito tempo. Entretanto, ainda sinto vontade de dizer: quem te viu e quem te vê, Plínio Arruda Sampaio não?... Por exemplo, o Plínio Arruda, que era filiado ao PDC do Franco Montoro, no pré-1964, ficou assustado (como ele mesmo demonstra, em depoimento em um documentário veiculado pela TV Câmara), com o Comício da Central, em março de 1964 (quando o João Goulart anunciou, para 100 mil pessoas, na Central do Brasil, no Rio de Janeiro, as Reformas de Base; entre elas, a Reforma Agrária). Segundo ele, no entender deles, o Jango queria dar um golpe (ele ficou alarmado com os tanques presentes no comício). Não sei se ele participou de alguma das passeatas da Família com Deus, promovidas pela Igreja Católica (com apoio da Cia, como hoje se sabe, através de documentos históricos que vieram finalmente à luz), contra o governo Jango, mas é certo que ele não fez parte dos que se opuseram prontamente ao golpe militar de 1 de abril de 1964, muito menos fez parte das forças que deram sustentação ao Jango (mas deu apoio, até 1962, ao governo de Carvalho Pinto, indicado à subchefia da Casa Civil do governador paulista eleito em coligação com a UDN, tendo passado também pela prefeitura na gestão de Prestes Maia, que fora indicado, por sua vez, anteriormente, por Jânio Quadros em aliança com a UDN).

Ironias da história, não?... Em 2010, este senhor, substituindo Heloísa Helena, em 2006, que foi a primeira candidata de um partideco de viés trotisquista como o PSOL, união de pequenas dissidências que saiu de um partido maior, o PT (como já havia saído a Convergência Socialista trotisquista para fundar o PSTU), fez uma campanha para extrema-esquerda nenhuma botar defeito (do jeito que a direita gosta, afinal, era para tirar votos da Dilma). Ele dizia que PT, PSDB e cia eram tudo farinha do mesmo saco (mas não pensava assim no pré-1964, nem quando criou a tal ABRA para se eleger pelo PT, como afirma o professor Paulo, em 1998) e pregava as plataformas políticas mais radicais e revolucionárias (para agradar, quem sabe, um certo público jovem universitário de militância acadêmica que, ao fim e ao cabo da campanha ideológica radicaloide, gerou apenas 0,87% dos votos; mas, espertamente, é claro, criou em torno de sua figura octogenária uma aura de homem coerente de esquerda com a qual quer ir para o além, já que não terá mais cinquenta anos de vida pública para provar que suas ideias radicais de última hora eram realmente o melhor caminho para o país em 2010).

Portanto, de acordo com as conveniências pessoais, certos políticos vão mudando de convicções de acordo com os humores das conjunturas a tal ponto de, anos depois, defenderem exatamente o oposto do que defendiam antes (e depois querem posar de bons mocinhos da ética e da coerência; mas que ética é esta que vai em zigue zague ideológico ao sabor dos ventos conjunturais?...; afinal, o inconsciente coletivo vai aos poucos revelando seus vínculos históricos reprimidos na imagem da propaganda eleitoral e mostrando como a sua postura política se enquadrava bem numa aliança comum com o PSDB do ex-candidato José Serra, que, aliás, também veio da Juventude Universitária Católica). Por isto mesmo é que procuro evitar os extremos e manter um certo distanciamento cidadão face aos partidos em geral, mas sem defender ideias contra-partidárias (porque creio que os partidos são parte essencial da trama democrática, o que não aceito é o oportunismo, o dogmatismo sectário, a incoerência etc.), mesmo porque, não nego que ajudei a fundar o PT e integrei suas primeiras fileiras militantes quando não era moda (ao contrário, era muito perigoso, bem no comecinho da década de 1980) para que o partido pudesse ser fundado (éramos muito poucos, tão pouco, que cabíamos, em Campina Grande, talvez, em uma ou duas combis e a esquerda tradicional clandestina feita de partidos de quadros não acreditava em nossa proposta).

Hoje me pergunto, porque este empenho tão veemente do professor Paulo diante de uma plateia tão "apolítica" como aquela daquela faculdade (será que ele foi lá só porque lhe pagaram para fazer a palestra? ou porque acreditava que estava a fazer a cabeça de jovens de nível superior de uma cidade como Amparo?). A maioria absoluta daqueles estudantes ali nem se lembra mais desta palestra que, para eles, foi absolutamente inútil (se é que realmente prestaram atenção e a entenderam plenamente). Além disso, a maioria deles jamais foi atrás do MST, não votou no PC do B, no PT ou qualquer outro partido de esquerda (e, pelas probabilidades que avento, por conhecer, grosso modo, o perfil político-eleitoral deles, que comigo estavam ali na plateia, como simples estudantes, grande parte deles votou mesmo foi no Serra em 2010). Mas o professor, tão crítico face aos partidos, divulgou, ainda que indiretamente, seu livreto (e, quem sabe, enriqueceu seu currículo, inscrevendo, de um modo ou de outro, esta atividade que praticou ali).

Apesar destas restrições (mas quem é que etá acima do bem e do mal?), gosto de suas colocações (ele era um bom orador e poderia se tornar um bom político se quisesse e tivesse a humildade, e a paciência, de se submeter a um colegiado maior do que seus interesses pessoais personalistas, para além de uma pretensa postura crítica ou de esquerda; porque, no meu entender, os partidos precisam é destes homens); especialmente de seu espírito profético (de justiça social, quando chama atenção dos intelectuais de bancada e políticos mais comprometidos com suas estruturas eleitorais do que com os fins para os quais se elegeram). Diante destas reviravoltas todas desde lá até aqui, nem sei se ele ainda advoga os mesmos princípios que advogava nesta palestra de 1998 (os personalistas pouco se preocupam com a coerência de uma linha ideológica, porque se deixam levar muito facilmente pelos impulsos emocionais de conjuntura). Entretanto, devo confessar que fiquei chocado com a metralhadora giratória que ele empunhou então e fiquei pasmo com as críticas que ele fazia ao Plínio Arruda (mas, anos depois - quando uma colega jovem, doutoranda de geografia pela Unicamp, disse-me que tinha simpatias pela trajetória do Plínio, bem no comecinho da campanha presidencial de 2010; mas esta colega, na reta final, votou mesmo foi na Dilma e não se deixou levar pelo canto da sereia da velha raposa convertida ao radicalismo do PSOL - me lembrei desta palestra que, felizmente, registrei ipsis literis, e percebi que ele já apontava uma dimensão oportunista no Plínio Arruda que eu, na época, em 1998, não conseguia enxergar; portanto, ele, o professor Paulo, naquele momento, é que estava com a razão, não eu). A história prossegue o seu rumo e nem todos se libertaram ainda, como diria um Drummond. Mas a história é um carro alegre, cheia de um povo contente, que atropela indiferente todo aquele que a negue (como nos versos da música de um Pablo Milanés). Alberto Nasiasene Jaguariúna, 18 de maio de 2012

PS. Penso que um homem público, especialmente os ligados aos partidos (quaisquer que sejam eles), tem que ter uma dimensão maior de sua personalidade social que passe longe do emocionalismo impulsivo incoerente de momento. Ou seja, ele não se deve deixar levar só pelo clima emocional das conjunturas (muito do que é emocional na conjuntura, é pura retórica, da boca para fora, de adversários que querem mesmo é empurrar os inimigos de ocasião para esta ou aquela direção, visando, é claro, na guerra psicológica, seus próprios interesses; como num jogo de xadrez, se ele conseguir enganar intelectualmente o adversário, fingindo que vai fazer isto, mas, na verdade, quer fazer outra coisa, ou desestabilizá-lo emocionalmente, deixando-o nervoso, é possível então ganhar o jogo, porque o adversário terá sua capacidade de raciocínio analítico de médio e longo prazo misturada com as emoções do momento e quem souber jogar melhor as armas psicológicas é que terá a vitória), mas ter um mínimo de fôlego para avaliar, de acordo com sua longa trajetória pessoal anterior, quais são as opções e as atitudes certas a tomar em determinados momentos históricos que não duram apenas uma hora, é claro.

A política de um estadista é construída de forma mais pensada e mais planejada, dentro de um programa pessoal e político de governança que esteja bem articulado com uma visão de mundo e de sociedade (não só em seu aspecto diagnóstico, mas em possíveis prognósticos). Claro que, por mais que tal estadista saiba de sua importância como peça fundamental no jogo democrático ou político, ninguém governa sozinho, mas no bojo de um movimento social qualquer (com suas raízes sócio-econômicas, políticas e culturais mais profundas, sob a superfície das aparências conjunturais caóticas). Isto quer dizer que, numa democracia que se vai amadurecendo aos poucos pelo próprio exercício de si mesma, um estadista tem que estar solidamente ligado a um partido qualquer que tenha sim uma trajetória histórica já consolidada, se ele quiser realmente governar para além da administração de conjunturas transitórias, pensando no médio e longo prazos. Isto não quer dizer que estou a falar de partidos únicos, salvadores da pátria (como é comum pensar na extrema-esquerda), mas em partidos consistentes que tenham, ao longo da história recente, ou mais recuada, estabelecido vínculos de alianças políticas coerentes com os objetivos últimos pelos quais se luta.

Dizem que o Brasil não tem tradição de partidos estruturados e fortes, mas a história não comprova isto. Ao contrário, temos sim alguns agrupamentos de opinião política que se manifestam coerentemente, ao longo dos diversos períodos históricos em que vivemos, desde a independência em 1822, em alguns tipos de estruturas burocráticas mais ou menos organizadas (que, é claro, vão se transformando aos poucos formalmente na medida em que os conteúdos sociais vão se alterando também). Portanto, se estudarmos a história política brasileira para além da nomenclatura burocrática estrita dos partidos oficiais que se foram criando e desfazendo (por causa de conjunturas que mudaram, devido a revoluções e golpes de Estado), poderemos ver sim certos movimentos comuns de convergência ideológica na defesa de certas bandeiras políticas que não revelam que o país é tão descomprometido assim com os movimentos partidários. Não quero nem me referir às continuidades, apesar das rupturas, entre o período de 1945 a 1964 e o atual momento político em que vivemos. Gastaria muito tempo com isto.

Posso apenas dizer (já que acabo de expor minha pesquisa mais antiga sobre a transição do mercado de escravos para o mercado de trabalho) que isto é possível ver, por exemplo, desde o período parlamentarista restritivo do Império, entre as duas grandes tendências em luta, a conservadora e a "liberal" (nos termos da época, é claro, dentro de seu próprio contexto, porque não podemos pensar que a história tenha uma estrutura linear de avanço rumo ao futuro, mas espiralada e dialética, de modo que o presente que temos hoje não é necessariamente uma simples continuidade lógica face ao passado que tivemos). Na medida em que o "problema servil" foi se agravando (e isto começou, como processo histórico, desde 1850), por mais que houvesse zonas de indefinição, nominal e individual, entre alguns dos políticos destes dois grandes partidos e entre as duas grandes agremiações em disputa eleitoral, no sistema jurídico-político da época (ou seja, o Partido Conservador, que defendia o sistema escravista de modo mais incisivo, e o Partido Liberal, que se opunha a esta defesa direta e incisiva do sistema escravista, com uma variada gama de alternativas possíveis para propor ao Império como se daria a extinção da escravidão), o jogo político foi tornando-se tenso, cada vez mais, dentro das regras do jogo maior da política imperial (com a inclusão de um fenômeno a mais, um movimento político-social urbano, subterrâneo e aberto, de massas, nas ruas, chamado de Abolicionismo, que ia além dos partidos estabelecidos da época e que, ao final do período, já estava penetrando ameaçadoramente, para a classe dominante escravista, no campo); tanto que, ao final do processo, houve uma quebra no tecido social e político que fez desmoronar o sistema monárquico como um todo, por várias razões que desceram da conjuntura à estrutura e desagregaram uma unidade aparente que deixou de haver (e isto sem que houvesse uma Guerra civil violenta e sangrenta como nos EUA).

Pois bem, a República não teria se imposto espontaneamente, neste lusco fusco, se os políticos do Partido Republicando não estivessem já instalados dentro do próprio sistema monárquico parlamentarista como um partido reconhecido e legítimo e se suas principais lideranças não soubessem rapidamente ocuparem seus espaços políticos, com agilidade, competência e legitimidade, sabendo o que estavam fazendo, dentro da profunda brecha que se abriu com a ultrapassagem do ponto de tensionamento a partir do momento em que a princesa Isabel, a regente, casada com um nobre francês que desagradava a todos os lados, assinou afinal, a Lei Áurea (que o neoliberalismo dominante em meados de 1990 não conseguiu revogar). Portanto, se nos atermos apenas aos elementos da conjuntura, diremos que foi o primeiro grande golpe de Estado ocorrido, sob a mão dos militares, na história do país, sem a participação ativa do povo nas ruas (porque a grande massa servil e de ex-escravos, Brasil afora, não morava sequer nas cidades, muito menos no Rio de Janeiro e, portanto, no contexto da época, seria impossível organizar passeatas e marchas para ocuparem as ruas de todas as principais cidades do Império).

Entretanto, é bom lembrar que Deodoro não era republicano, não tinha formação positivista, nem queria dar um golpe, fundando um novo regime. A contra-gosto é que ele foi sendo empurrado nesta direção, mais como persona histórica sendo guiada por forças poderosas que iam além dele, do que como uma estratégia pessoal pensada e planejada previamente.

Não chegaria a dizer que foi a ideologia positivista dos principais republicanos, que desempenhou um papel mais progressista, no contexto da época (nem todos os positivistas eram contra a escravidão, por exemplo, assim como nem todos os militares se deixavam levar pelos ideólogos positivistas presentes no Exército). Entretanto, apesar da tímida presença de um operariado fabril no período e da introdução incipiente das primeiras organizações sindicais, especialmente as que certos imigrantes italianos e espanhóis trouxeram (de tendência socialista ou anarquista), não foram as massas, nem o movimento abolicionista que já havia se desfeito, com a Abolição propriamente dita, que entraram na história naquele momento tão importante para a definição das primeiras instituições republicanas que ainda temos hoje (interessante que, apesar da rápida e desnorteante ruptura institucional, a República manteve, sem solução de continuidade, o Parlamento em funcionamento, sem perder sua legitimidade sócio-política); muito menos os sindicatos e agrupamentos incipientes de anarquistas e socialistas. Foi uma pequena minoria bem organizada, dissidente das velhas oligarquias imperiais, os republicanos, em aliança parcial com os militares do exército (graças à influência de um ideólogo positivista e militar como Benjamin Constant) que impuseram os rumos das transformações sócio-econômicas e políticas a partir de uma aliança, ágil também, com os interesses do setor mais dinâmico da economia da época, o setor cafeeiro no estado de São Paulo (que já estava se imiscuindo, inclusive, nas cidades através da implantação das primeiras indústrias incipientes).


Não por acaso, em 1917, momento de fraqueza na conjuntura interna e externa, por causa da Primeira Guerra Mundial) haverá uma greve geral tão marcante como a de São Paulo, promovida pelos setores operários e de trabalhadores dos serviços (tais como os ferroviários) já organizados em sindicatos e com muitas lideranças que já vieram da Itália, por exemplo, com experiências de lutas sociais, através de correntes socialistas e anarquistas. Pouco tempo depois desta greve, cinco anos, será fundado, através da dissidência de muitos destes anarquistas, o Partido Comunista Brasileiro PCB.

Isto quer dizer que os primeiros esboços da luta ideológica que se desenvolveu durante todo o século XX já estavam se formando desde o raiar da República, com suas raízes no Império. Por outro lado, isto quer dizer que, através destas ou daquelas agremiações políticas formais e informais, em relação direta ou indireta com movimentos sociais maiores, foram se desenvolvendo as principais linhas da história política brasileira que dão sim uma certa coerência estrutural a uma história aparentemente caótica, do ponto de vista das meras conjunturas. Acontece que o ritmo histórico de transformação das estruturas é mais lento do que o das transformações conjunturais (mas é preciso saber discernir as linhas de contato dialético entre ambos e esta é a visão mínima que um estadista qualquer tem que ter, para além do emocionalismo de momento desta ou daquela conjuntura específica).

Mas isto é uma longa história que pretendo continuar a entender numa perspectiva mais ampla a partir do presente em que vivo hoje no interior do São Paulo, na segunda década do século XXI. 19 de maio

Imagens de internet


Leandra: Estamos começando mais uma semana cultural da Faculdade no Departamento de História. O nosso convidado para a abertura da nossa semana cultural é o professor Paulo Martinez que vai falar um pouquinho sobre Reforma Agrária. Os alunos poderão fazer perguntas.

Paulo Martinez: Muito obrigado. Agradeço muito a generosidade da acolhida e principalmente a gentileza de tantas presenças simpáticas para falarmos de um assunto árido, áspero e às vezes mortal. Mas como nós não estamos aqui para fazer novela, então vamos deixar de lado as tragédias e procurar uma compreensão a respeito do problema agrário brasileiro. Acompanho a muito tempo, desde que eu nasci, porque eu nasci na roça e graças à escola, graças às professoras, eu me libertei da enxada e fiquei escravo da caneta. Bandida!... Mas eu não quero mais matar as professoras... Então desde que eu nasci, eu acompanho este assunto. Não posso dizer que seja um grande especialista, porque não me especializei nisso, mas sou um eterno interessado e acumulei uma quantidade e uma variedade muito grande de aspectos envolvidos na questão agrária. Quero dizer, nós temos tantas implicações dentro deste assunto que seria absolutamente impossível, numa abordagem de alguns minutos pretendermos esgotar o assunto. Por isso eu apenas selecionei alguns tópicos para cada um. Nós podemos ou aprofundar mais alguns destes aspectos ou introduzir outros tópicos na discussão.

Outro ponto que é necessário salientar desde o princípio é que também existem tantas divergências de pontos de vista que jamais a gente pode almejar um consenso sobre o problema. Por mais que nós discutamos o assunto, nós vamos sair daqui hoje com muitas divergências de opiniões. Mas se nós tivermos muitas outras oportunidades, nós poderemos, aos poucos, conhecer uma multiplicidade de opiniões e de abordagens que serão muito úteis, principalmente para os professores. Porque professor também é cidadão. Como cidadão tem o direito de ter as suas opções, de ter as suas preferências, a sua escolha, o seu ponto de vista. Tem o direito de defender um ponto de vista, como cidadão. Mas como professor nós temos a obriga ç~o de conhecer o problema em toda a sua variedade possível de aspectos; porque na nossa vivência de cidadania nós podemos nos engajar em qualquer movimento, em qualquer posição; mas na nossa condição de professor nós temos a obrigação de ajudar os nossos alunos a conhecerem o problema da maneira mais ampla, mais variada possível, para que eles, alunos, possam também fazer sua opção de cidadania.

Então vejam que eu não vou querer doutrinar ninguém no sentido de uma determinada linha de pensamento. Eu vou procurar contribuir de alguma forma para que nós todos terminemos este encontro com uma visão um pouco mais ampla do problema nas suas diferentes implicações.

Eu diria, tentando ser um pouco didático, coisa que eu não sou, por isso levei muito pito das professoras de didática, mas, se eu fosse falar didaticamente eu diria que eu vou abordar a questão agrária em duas direções, ou sob dois ângulos principais.

O primeiro aspecto que nós temos que considerar é que cada pessoa interessada ou envolvida no assunto escolhe um motivo, uma razão para ser a favor ou para ser contra a reforma agrária. E aí nós temos um número tão grande de posições que mesmo as pessoas que defendem a mesma coisa não se entendem. Divergem por picuinhas. E quem perde é o país, no sentido da sua economia agrícola. Quem perde é o trabalhador rural, no sentido de não realizar a melhoria de seu padrão de vida.

Por exemplo, há dez ou doze anos a bandeira da reforma agrária estava nas mãos dos movimentos comunistas. Foi o Partido Comunista, criado em 1922, quem institucionalizou a campanha da reforma agrária. Em 1928, no terceiro congresso do Partido Comunista, já se inscreveu a reforma agrária como um dos grandes objetivos do programa de revolução social.

Depois veio aquele desmantelamento político introduzido pelo governo militar e a bandeira da reforma agrária ficou sem dono. A partir de 1979 (ou 1976?), com a Conferência Episcopal de Puebla no México, a Igreja Católica definiu uma opção pelos pobres e determinou aos ministros da Igreja que se envolvessem diretamente nas grandes questões sociais. Criou a pastoral da terra. E a pastoral da terra empunhou a bandeira da reforma agrária que estava sem dono. Para justificar, para legitimar o seu envolvimento numa questão polêmica e conflitiva como essa, o motivo da Igreja era definido como uma questão de justiça sociaL Quer dizer, faça-se a reforma agrária por uma questão de justiça social, não importava as outras implicações, por exemplo de natureza econômica, de natureza política. Tanto é que a pastoral da terra e especificamente as comunidades eclesiais de base, que eram a vanguarda do movimento, nunca elaboraram um projeto de reforma agrária. Nunca fizeram uma proposta concreta: quantos hectares de terra devem ser comprados ou desapropriados, quantas famílias devem ganhar terra, qual deve ser o tamanho de cada gleba, que outras coisas os trabalhadores rurais devem receber. Não, nunca houve de parte da Igreja nem de seus organismos, qualquer projeto definido neste sentido, porque estes aspectos a Igreja deixava por conta de outros organismos, de outras pessoas, de outros interessados. O que interessava para a Igreja era o fundamentos: justiça social na repartição da terra. Direito de todos terem acesso à terra.

Com este trabalho de reforma agrária, ficou muito facilitado o desenvolvimentos de um outro esquema de organização trabalhista, que já existia, mas era muito fraco, mas graças ao impulso dado pelo movimento de reforma agrária, houve um incremento muito grande na formação de sindicatos de trabalhadores rurais. Diga-se de passagem que atualmente nós temos no Brasil cerca de 3 000 sindicatos de trabalhadores rurais. Ora, com esta multiplicação destas organizações sindicais de trabalhadores rurais, era lícito a gente esperar que o movimento sindical se unisse com o movimento pastoral e a questão agrária, ou a solução da questão agrária ganharia um reforço extraordinário. As comunidades eclesiais de base foram educando as lideranças trabalhistas, foram treinando até que as lideranças de trabalhadores rurais constituíram o movimento MST (movimento dos trabalhadores rurais sem terra) e eles mesmos passaram a dirigir o movimento. A pastoral da terra se afastou, as comunidades eclesiais de base se desligaram do trabalho de campo e passaram a se dedicar ao seu trabalho de evangelização e são os leigos que já há alguns anos que estão na direção do movimento. E o que se observa é que o movimento sindical seguiu numa direção e o movimento de reforma agrária seguiu outro. Não houve a união das forças.

Isso também deveria ser previsível, porque sindicato de trabalhadores rurais não está no campo, não está na zona rural, está na cidade. Os dirigentes sindicais não são mais trabalhadores rurais, são burocratas do sindicato. Eles não moram mais na roça, não trabalham mais na roça. Moram na cidade e trabalham no escritório do sindicato. O sindicato sendo uma instituição oficializada, fiscalizada e subordinada ao ministério do trabalho, só pode desenvolver as atividades previstas, as atividades legais que é de representar seus associados em juízo ou nas relações com os empregadores. E o sindicalismo rural virou a mesma droga que sempre foi o sindicalismo urbano. Quero dizer, hoje, sindicato de trabalhadores rurais é igual a qualquer sindicato de operános, de outras categorias. Entra com reclamação na justiça do trabalho, isso e aquilo, negociar com os patrões aumento de salário, a instalação de creche, a distribuição de vale-transporte, não sei o que... e fazer a politiquinha sindical, disputar eleições, porque ser diretor de sindicato é a maior mamata que existe. Tem estabilidade, pode ser reeleito quantas vezes quiser, tem salário garantido e não trabalha. Então, o sindicalismo rural virou a mesma porcaria.

Ao lado do movimento de reforma agrária e do movimento sindical, um movimento político. Com o fim da ditadura militar, abertura política, liberdade de criação de partidos, a coisa começou a se modificar. O primeiro passo foi transformar em partidos políticos as duas organizações que existiam autorizadas pela ditadura, que eram a ARENA e o MDB. Então, a partir do momento que nós temos novamente a vida partidária institucionalizada, é de se esperar que os partidos políticos desenvolvam uma ação construtiva no sentido de resolver o problema agrário. A ARENA virou o PDS, o MDB virou PMDB. O PDS era o partido do governo, da ditadura etc. Mas o PDS quando fez o seu programa, que é obrigatório (todo partido tem que apresentar ao Tribunal Eleitoral o seu programa), constava, talvez conste até hoje ou não, não sei, não existe mais PDS, virou PPB... Mas o PDS inscrevia no seu programa a reforma agrária. E o PMDB, que era o partido de oposição à ditadura, que era o partido que reunia as esquerdas, nem se lembrou de reforma agrária...

Então, os partidos políticos, que deveriam ser os grandes pensadores e os grandes condutores das soluções nacionais, se revelaram absolutamente inúteis. Foram inúteis desde o começo quando só existiam dois, ARENA e MDB, e são inúteis até hoje quando existem mais de quarenta partidos.

Com a multiplicação de partidos, esperava-se que novos partidos representassem nova esperança. E o que aconteceu? Foi criado o PT, Partido dos Trabalhadores. Um dos lideres do PT, um dos fundadores do partido, criou uma entidade chamada ABRA (Associação Brasileira de Reforma Agrária), Sr. Plínio de Arruda Sampaio. A ABRA foi criada exclusivamente para dar suporte eleitoral a ele. Ele presidiu a ABRA enquanto a ABRA foi útil (ele foi eleito deputado etc. Depois foi candidato a governador). A ABRA continua existindo, mas como a finalidade da ABRA era só projetar o nome do seu presidente no processo eleitoral, a ABRA teve o cuidado de elaborar um “projetinho” de reforma agrária, sem fundamentação econômica, política nem coisa nenhuma; sem muita fundamentação. Enfim, um “projetinho” de reforma agrária que defendia a desapropriação dos latifúndios, divisão destes latifúndios em glebas de trinta e cinco hectares, distribuição gratuita destas glebas aos trabalhadores rurais e assim assentar no campo sete milhões de famílias. Este era o projeto da ABRA. Mas a ABRA não era nada. Este projeto só servia para ganhar voto.

Veio a constituinte. O PT não tinha nenhum projeto de reforma agrária, nem sabia o que era isso, mas elegeu quatro ou cinco deputados. Então tinha que enfrentar o problema da reforma agrária na elaboração da constituição. O PT adotou como seu aquele “projetinho” de reforma agrária da ABRA. Tá certo, não deu em nada; mas não era para dar nada mesmo, uma porcaria.

Com este processo de abertura política e formação de partidos foi legalizado o Partido Comunista do Brasil (PC do B) e, para esnobar, foi legalizado o Partido Comunista Brasileiro (PCB). Ambos tinham representantes no congresso constituinte. O Partido Comunista do Brasil elaborou um projeto de reforma agrária, minucioso, amplo, grande, mirabolante, com o objetivo de distribuir terra a dez milhões de famílias. Bem, se o PT fala em sete milhões, nós vamos logo para dez milhões... Era um negócio tão mirabolante que não podia dar em nada, como não deu.

E até hoje nós estamos com trinta ou quarenta partidos políticos e nenhum partido político tem um projeto de economia agrícola para o país. E eu não falo de reforma agrária, falo de política agrícola. Nenhum de todos estes quarenta partidos. Nenhum deles tem sequer coragem de enfrentar o problema, de discutir o problema. Mas o problema existe. A outra direção que eu vou abordar, os problemas sociais, econômicos existem.

Os acadêmicos universitários falam e escrevem sobre economia agrícola e estrutura agrária, sobre reforma agrária mais do que os políticos profissionais. Já que os acadêmicos infelizmente não enfrentam a questão agrária com a responsabilidade de resolvê-la... São estudiosos apenas... Eles não conhecem, nem conhecem o trabalhador rural concreto. O bóia fria, as crianças... Bem nós conhecemos as crianças que trabalham em olarias, em carvoarias que vivem aparecendo na televisão. Crianças de oito, dez doze anos trabalhando dez doze horas por dia sem ganhar nada, Mas as outras crianças, os filhos dos trabalhadores rurais mesmo? Conhecemos um pouco das crianças que trabalham no corte de cana, porque também aparecem na televisão de vez em quando. Crianças que não vão à escola e trabalham cortando cana.

O que acontece é que os estudiosos, os intelectuais, os acadêmicos, os universitários só conhecem o trabalhador abstrato das estatísticas. Então o que é que faz um acadêmico, que até defende teses? “Nós temos, segundo as estatísticas, um quinto da população brasileira vivendo no campo". Uns falam em trinta milhões de pessoas, outros falam em trinta e cinco milhões de pessoas. Isto deve dar aí uns vinte por cento da população brasileira vivendo no campo. Ora, para o intelectual acadêmico universitário isto é um absurdo; isto é uma prova que a economia brasileira é subdesenvolvida, porque sobram exemplos do mundo inteiro, que toda economia desenvolvida tem um mínimo de população morando no campo, vivendo no campo. Por exemplo, desde a década de 1950 se sabe que os Estados Unidos tem apenas 4% da população vivendo no campo. Então de acordo com todos os estudos técnicos em desenvolvimento e subdesenvolvimento, um indicativo de subdesenvolvimento é ter uma grande população rural. Para o intelectual acadêmico isso é suficiente. Justifica que se faça alguma coisa com a agricultura brasileira para torná-la mais produtiva e empregar menos gente. Então a questão não é dar terra ao trabalhador rural, a questão para o acadêmico é tirar o trabalhador rural do trabalho penoso da terra. Libertá-lo da enxada, nem que seja para ele morrer na favela na cidade. E aí continuamos sem compreender o problema agrário e sem ter solução para ele.

Temos este processo de divergências de opiniões. Vou citar só mais uma que é fundamental. Por que é que homens ricos, capitalistas, burgueses se manifestam a favor da reforma agrária? Por que é que o governo se manifesta a favor da reforma agrária? Acontece que nós estamos falando de duas reformas agrárias. Acontece que nós estamos dentro de uma tremenda confusão porque nós temos aí na pauta das discussões não uma idéia de reforma agrária, mas pelo menos duas.

O Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra e os sindicatos se manifestam a favor da reforma agrária que consiste em desapropriar latifúndios, dividi-los e distribuir terra a quem trabalha. A constituição brasileira de 1988 dá prioridade a um outro tipo de reforma agrária, que éa reforma agrária prevista no estatuto da terra promulgado pelo marechal Castelo Branco, quando ele estava de plantão na presidência da república. Estatuto da terra não fala em reforma agrária nem usa a expressão reforma agrária. O estatuto da terra fala em reformar o sistema de posse e uso do solo. O objetivo do estatuto da terra é fazer a reforma agrária capitalista. Reforma agrária capitalista significa acabar com a propriedade agrária de pessoa fisica, quer dizer acabar com este negócio da fazenda do seu Manoel, a fazenda da dona Gertrudes não sei mais o que... É forçar a estruturar agrária a adotar modelo empresarial, empresa rural, empresa agro-industrial, empresa agropecuária. A terra tem que se unir com a indústria, a terra a indústria tem que se unir com o banco; tem que ter dinheiro, mecanização, eletrificação rural, industrialização de produtos, mecanismos financeiros de financiamento, exportação para a produção agrícola.

O estatuto da terra prevê firme distribuição de terra a trabalhadores rurais, mas não como prioridade, não como principal solução. A principal solução preconizada pelo estatuto da terra éacabar com o latifúndio e acabar com o minifúndio, quer dizer a propriedade muito pequena, antieconômica. Não é priorizar a agricultura de subsistência, quer dizer aquele negócio de fazer rocinha para comer não. E fazer plantações de escala para abastecer a indústria e exportar.

E a constituição de 1988 dá prioridade a este modelo de organização agrícola, tanto é que pela consituição é proibido desapropriar empresa rural para fins de reforma agrária. Uma empresa rural não pode ser desapropriada para repartir a terra com trabalhadores rurais.

Então muita gente se confunde quando lê, quando ouve ou quando debate as questões agrárias porque se misturam aí projetos e objetivos. Quem tem objetivo de repartir a terra com trabalhador rural está pretendendo criar um determinado modelo de economia agrícola. A economia agrícola baseada na pequena propriedade, baseada na agricultura de subsistência para atender o abastecimento interno do país. Agora existe a outra tendência de reformar a nossa estrutura agrária para que a nossa agricultura se torne produtiva, para que a nossa agricultura possa competir internacionalmente, principalmente agora que estamos em fase de globalização. E a nosso agricultura é absolutamente antieconômica.

Há dois meses, o ministro da agricultura anunciou que a safra 95-96 teve uma quebra, teve uma redução, de 7 milhões de toneladas de grãos. A colheita anterior tinha sido de 80 milhões de toneladas de grãos e a que se encerrou em agosto deve ter ficado pelos 73 milhões.

Ora, uma economia agrícola que de um ano para outro perde 7 milhões de toneladas de grãos, é uma economia falida, sobretudo num país que tem tantos famintos. Sete milhões de toneladas de grãos dá para matar a fome de muita gente. Agora já estão dizendo que a próxima colheita vai dar 89 milhões de toneladas. Mas até quando nós vamos ficar neste estica encolhe? A mais de dez anos técnicos da FAO, organismo das Nações Unidas que trata dos problemas de alimentação, vêm dizendo que a agricultura brasileira deveria estar produzindo mais de cento e quarenta toneladas de grãos e nós ainda estamos só na metade... Agora, os que gostam de comparar com outros países, e nem sempre a comparação é válida...

Eu sou a favor, se nós temos trinta e cinco milhões de pessoas vivendo no campo, eu sou a favor de que continue assim, não imitar o modelo americano. Por que fazer essa gente toda ir pra cidade? Eu sou a favor de levar os recursos da cidade lá para o campo. Por que não leva luz elétrica? Por que não leva tratamento de água, lá para o campo? Por que o sujeito não pode morar no campo e ter geladeira, televisão, o diabo a quatro? Não é melhor do que ele vir morar numa favela?

Agora, quem gosta de fazer comparação, com outras economias e outros países, é bom lembrar que a agricultura dos Estados Unidos só de exportação são cento e quarenta milhões de toneladas de grãos por ano, sem prejuízo do abastecimento interno. Portanto, quem quiser se interessar pelo assunto eu faço apenas uma sugestão. Em primeiro lugar se defina, se quer ser a favor da reforma agrária camponesa ou da reforma agrária capitalista; mas não misture as coisas, porque eu já cansei de ver dirigentes sindicais, absolutamente ignorantes, exigir que o governo faça executar o estatuto da terra pra melhorar a situação do trabalhador do campo. Precisa lembrar a estes dirigentes sindicais da cidade que o estatuto da terra é a reforma agrária capitalista, coisa que eles não sabem. Por quê? Porque está lá na própria cartilha de reforma agrária, o projetinho de reforma agrária da ABRA. Está escrito lá que a reforma agrária é necessária, que os sindicatos urbanos defendem a reforma agrária pra tirar o trabalhador rural da cidade, porque na cidade o trabalhador rural disputa empregos e aceita empregos por salário mais baixo; porque na cidade o trabalhador rural se submete a morar em favela, em cortiço, aqui e ali; ocupa espaços; porque quando um trabalhador da indústria vai num posto de saúde, tem dez trabalhadores rurais na fila. E isso que ele não quer. ~ isso que estes burocratas e pelegos do sindicalismo getulista, que ainda existe no Brasil, querem: expulsar da cidade os trabalhadores rurais; não pra melhorar a vida do trabalhador rural, mas pra melhorar a folga do trabalhador urbano. Está certo, também é uma posição. Se quer defender esta posição defenda. Tem todo o direito, mas despindo a hipocrisia. Vamos assumir abertamente as nossas posições.

Eu também sou favorável à reforma agrária, sou favorável a manter no campo os trinta e cinco milhões de brasileiros, mas não é pra evitar que eles venham disputar espaço comigo, nem disputar emprego; porque o trabalhador rural não vem tomar emprego da professora; o trabalhador rural não vem tomar meu emprego. Eu não tenho medo da concorrência dele. Eu sou a favor de que estes trinta e cinco milhões possam viver dignamente.

Mas precisamos corrigir uma outra coisa da mentalidade. Quando a gente se interessa por um tema tão apaixonante como este a gente corre o risco de tomar a seguinte tendência: de querer decidir o que é melhor para eles. Eu não vou decidir o que é melhor para o trabalhador rural. Ele é quem tem que decidir o que é melhor pra ele. Eu tenho que respeitar o seu direito de cidadania, de escolher o seu destino. O que eu posso fazer, e tenho feito, a sessenta e três anos, é dar a ele a minha solidariedade. Ele que escolha os seus caminhos. Ele que decida o que é melhor pra ele. Pode contar com a minha solidariedade. Eu não vou decidir por ele e não vou dizer a ele como ele deve lutar a sua luta. Eu não aceito esta veleidade de muitos políticos (que eu já ouvi de muitos deles) de querer comandar a massa. População não é pra ser comandada assim igual gado. Eu não quero comandar ninguém, não quero ser líder, não quero ser chefe de ninguém. Eu quero participar das lutas sociais, das transformações, das mudanças, das melhorias, em benefício de todo o país e de toda a população. Estou solidário com a luta com os trabalhadores rurais, mas também defendo reformas econômicas na agricultura que permitam ao país ter uma agricultura decente.

Eu não acredito que dez milhões de sitiozinhos vão resolver o problema. Não sou a favor de pegar trezentos milhões de hectares de terra, dividir em dez milhões de sitiozinhos e dar um sitiozinho pra cada família. Não. Nós vamos ficar sem feijão e sem arroz, coisa que já estamos; já saiu no noticiário ontem,. Só por causa da entressafra de feijão, em muitos lugares, o preço do feijão já subiu até sessenta por cento... porque o Brasil teve uma queda de sete milhões de toneladas de grãos e tem que importar feijão pra nós comermos, porque a nossa agricultura não foi capaz de fazer isso e agora chegou a fase de entressafra e não tem feijão. Até importar leva dois três meses. Enquanto isso, o especulador aumenta cinqüenta, sessenta por cento no preço.. E o governo fala em inflação de 0,02%.

Ë este tipo de problema que a gente tem que resolver. Tem que ter uma agricultura que produza feijão pra gente comer. Tem que ter plantação em grande escala sim. Tem que ter plantação de feijão, assim de alqueires e alqueires, com trator, colhedeira e o diabo a quatro... Não é o coitado labutar com uma enxadinha que vai botar feijão na cidade. Então tem que ter a produção em grande escala. Tem que ter a produção de subsistência. Tem que ter garantia de estabilidade, de vida, de trabalho, de ganho pra estes milhões de trabalhadores que vivem por aí soltos.

Agora, nós temos que enfrentar o problema e aí eu entro na segunda direção de abordagem. Já ouvi muitas vezes, como o assunto reforma agrária está todos os dias na televisão, eu já ouvi as opiniões mais disparatadas. A opinião mais ilustrativa é daquele jornalista Boris Casoy, do jornal do SBT. Sempre que ele lê uma notícia sobre reforma agrária ele dá o palpite dele: “A reforma agrária precisa ser feita sim, porque é uma questão social; reforma agrária não é problema econômico; é uma questão social.” Vejam como os meios de comunicação procuram influenciar as pessoas a terem uma compreensão restrita, limitada, do problema. Como que a questão agrária não é uma questão econômica? Questão agrária envolve milhões de hectares de terra, envolve milhões de trabalhadores, envolve milhões de reais dos cofres públicos que vivem dançando por aí. Envolve produção de cinqüenta, sessenta ou setenta milhões de toneladas de grãos. Envolve o fato de ter ou não ter feijão. Então não é um problema econômico? E problema econômico de primeira grandeza.

Então a nossa estrutura agrária precisa ser reformada sim pelo motivo econômico e pelo motivo social também. Se nós temos trinta milhões de pessoas vivendo no campo, isso significa dez vezes a população do Uruguai. São milhões de crianças que não têm nem escola. São milhões de mulheres, que até são esterilizadas por aí porque acham que pobre tem filhos de mais e querem resolver o problema da pobreza matando os pobres. Está certo que resolve, mato os pobres e pronto. Então ela é um problema social também, sim, não tenho dúvida. Também é um problema político, porque eu estava comentando com o professor Nelson antes da palestra, quando o senhor José Sarney começou o exercício daquele mandato presidencial que ele não ganhou... quer dizer, ganhou sim, ganhou de presente... ele criou o prêmio nacional de reforma agrária. Foram feitos os estudos, o problema foi dimensionado e ele apresentou o seu plano de governo. Não sei quantos milhões de famílias seriam assentadas e o problema ficaria resolvido no espaço de quinze anos. Depois de dois anos no governo, ele não tinha feito nada. Então ele diminuiu pra um milhão e quatrocentos mil famílias em quatro anos.

Quando Fernando Henrique diz: “Vou assentar quarenta mil famíliasl Mas não sabe nem mentir, pô’ Quarenta mil famílias!... Se é pra mentir faz igual ao Sarney!... O Sarney falava em assentar em um milhão e quatrocentas mil... Seja atrevido até pra mentir!... Bom, à coisa de três ou quatro meses, deu esta rebordosa toda aí no INCRA... O superintendente do INCRA foi demitido e tal... Foi nomeado outro, Jungman, não é isso?... como ministro da reforma agrária. Depois de duas semanas no ministério, veio seu Jungman, numa entrevista na televisão, dar as primeiras informações dos projetos , dos planos etc. Não sei quantas mil famílias seriam assentadas... seria feito isso, seria feito aquilo, pá, pá, pá, pá... O problema ficaria resolvido em quinze anos.

Eu já ouvi esta história de quinze anos... Vão começar a contar de novo? Ou isso tudo é uma invencionice mentirosa? Esse projeto, esses planos, esta expectativa de quinze anos... Ou isso tudo é mentira? E estão contando a mesma mentira pela segunda vez? Ou então, se esta alternativa é verdadeira, por que é que já passados quinze anos não se fez absolutamente nada? Ou tem muita gente mentirosa ou tem muita gente incompetente. Porque se a solução do problema já está dimensionada, porque ela não é incrementada? Bom aí inventaram uma desculpa. Falta vontade política. Falta vontade política quer dizer: é essencialmente um problema político também.

Então a reforma agrária é problema econômico, é problema social e é problema político sim. Porque politicamente todos se dizem a favor, todos têm projetos, têm idéias etc. Principalmente em época de eleição. Agora, infelizmente, todos (eu citei fatos e dados dos chamados partidos de esquerda) PT, PC do B etc... na melhor oportunidade da vida, na elaboração da constituição, trataram esta questão com a maior leviandade, com a maior irresponsabilidade e com a maior incompetência. E por isso que eu prefiro confiar nestes trabalhadores rurais. Eles sabem o que eles querem, eles têm organização, eles são atrevidos (às vezes eu acho que eles fazem algumas besteiras, mas eu prefiro confiar neles do que nestes partidos políticos e principalmente nesses políticos profissionais do carreirismo eleitoral).

Bem, mas a questão agrária ou a questão da reforma agrária como preferirem também é um problema cultural, também é um problema ideológico, também é um problema geográfico, também é um problema demográfico e por aí a fora... E um problema geográfico em primeiro lugar porque não se pode pensar numa reforma agrária única pro Brasil inteiro. Não se pode pensar num modelo único de economia agrícola pro Brasil inteiro. O Brasil não é inteiro igual. Nós temos que pensar em alternativas de organização da economia agrícola. Alternativas adequadas pra cada região. Os tipos de cultura mais convenientes para as características da população. Inclusive, temos que respeitar os hábitos alimentares das populações regionais.

Eu viajei muito no Nordeste, comi muito feijão verde, manteiga de garrafa, jerimum, carne-de-sol, siri, tartaruga, jacaré... Não comi sarapatel de bode não, quem come isso é candidato à presidência... esses palhaços, bobos, que caem nessa... Vai caçar voto no Nordeste, nordestino toca-lhe um sarapatel de bode... acaba com o sujeito. Então nós temos inclusive que respeitar os hábitos alimentares, pôxa!... Por que é que nós vamos forçar, por exemplo, ao amazonense a comer a maça argentina, se ele se dá tão bem com o açaí, que é a fruta mais deliciosa do mundo?... tem mil utilidades?... Por que não vamos estimular a produção dos produtos típicos da região?

Às vezes nós temos que pensar em termos de geografia, em termos de demografia também. Por que estimular o superpovoamento de certas regiões e o esvaziamento demográfico de outras? Por que criar todas as facilidades para as indústrias multinacionais virem se instalar aqui na Região Sudeste e não se dar um incentivo sequer a um coitado que fabrica tecido de juta lá no Norte? Então a Rhodia fabrica aí nylon, raiom à beça... e por que o coitado que poderia fornecer tecidos, sacos de embalagem de juta, não tem incentivo nenhum? Esse é um outro aspecto que tem que ser levado em consideração. O Brasil é regíonalmente diferente e a economia agrícola tem que ser pensada diferente. Demograficamente a reforma agrária tem que ser pensada também em função da redistribuição demográfica da população. Reassentamento demográfico. Toda essa população que vive sendo expulsa das suas regiões. O nordestino é expulso pela seca, expulso pela doença... O amazonense é expulso pela malária, pela esquistossomose, não sei mais o quê... Então nós temos que pensar numa política também de redistribuição demográfica, reassentamento demográfico.

E outra coisa pra concluir. Temos que resolver logo a questão da reforma agrária para já começarmos a pensar na reforma urbana. Nós estamos absolutamente atrasados neste aspecto. A ONU já realizou duas conferências internacionais, a última foi recente, a poucos meses, a Habitat II. O Brasil sempre participa desse negócio todo, assina tudo quanto é acordo, tudo quanto é compromisso. E nunca cumpre coisa nenhuma. Também, não é?... E qualidade de vida, de habitação, de moradia, de urbanização... Já pela segunda vez foi discutido em nível internacional e aqui ainda nem começamos a falar em reforma urbana.

Bem, mas hoje nós viemos aqui para falar de reforma agrária. Primeiro vamos resolver uma coisa para depois entrar na outra. Eu não vou me esticar mais, para não cansar vocês e também para dar tempo para vocês fazerem perguntas ou darem as suas opiniões sobre o que não concordarem, ou sobre outros aspectos que eu não abordei e que vocês acham que deva ser discutido. Por enquanto o meu muito obrigado pela sua atenção.

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