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As questões éticas e cidadãs implícitas na docência de história


Estudar a história de Moçambique e entrar em contato direto com moçambicanos é como nos reconectar conosco de uma maneira mágica difícil de ser descrita por palavras (tanto porque o Brasil tem muito de sangue moçambicano correndo em suas veias, quanto porque parte do que hoje é o país deste lado do Atlântico é fruto do trabalho de muitos escravizados que vieram de Moçambique). Portanto, é como se entrássemos em contato com uma parte de nós que não conhecemos direito. Não por acaso, é sim uma aventura fascinante começar a desbravar a realidade de Moçambique, através de sua história, do estudo de sua economia, de sua cultura, de sua sociedade, de sua política e de suas muitas línguas.


Isto quer dizer que vejo o intercâmbio que estou realizando com Moçambique, através do professor Ricardo Manganhe, como um estímulo para aprofundar o conhecimento não só das raízes brasileiras africanas (particularmente as que tem ligação com a África banhada pelo Oceano Índico), mas do próprio Império Colonial português do qual, outrora, também fizemos parte. Aliás, o Brasil, depois da união desastrosa, para Portugal, com a Coroa Espanhola de Felipe II, em 1580 até 1640, passou a ser a joia da coroa deste Império Colonial português (para o bem de Moçambique e desgraça dos escravizados neste lado do Atlântico Sul). Ou seja, Portugal não se interessou em penetrar mais profundamente em território moçambicano porque só se interessava mesmo era pelo tráfico, costeiro, de escravos (que eram trazidos para serem vendidos na Ilha de Moçambique, por meio dos mercadores de escravos islamizados falantes do swahili).

Por um lado, este desinteresse dos portugueses pela colonização de Moçambique foi uma desgraça para os que eram escravizados e embarcados para este lado do mundo em que estamos, mas, por outro, preservou muito da cultura, da língua e dos interesses internos dos muitos povos que hoje fazem parte deste país chamado Moçambique. Isto quer dizer que a colonização de Moçambique, pelos portugueses, só começará tardiamente na história de nosso mundo ocidental, comparando-se ao processo colonizador português iniciado em terras brasileiras, que começa, de forma mais sistemática, a partir da década de 1530 (em Moçambique este processo só será sistemático no final do século XIX, especialmente depois do Congresso de Berlim).

Esta é uma das razões que nos fazem ficar surpreendidos ao nos embrenharmos no estudo da história moçambicana e das diversas etnias que compõem este país irmão que temos na África: a colonização portuguesa em Moçambique (processo que ocorreu desde o século XVI em terras brasileiras) é muito mais recente do que a colonização portuguesa no Brasil (o que lança muita luz sobre processos semelhantes ocorridos na colonização portuguesa em terras brasileiras no século XVI, XVII e XVIII; porque certos padrões coloniais foram utilizados pelos portugueses tanto aqui, deste lado do oceano, há mais tempo, quanto lá, do outro lado do continente africano; apenas décadas atrás de nosso tempo, já que a colonização portuguesa em Moçambique não chegou a ter um século).

Não há como não ficar encantado com esta descoberta, a de que fazemos parte de um mesmo processo histórico e mal nos damos conta disto (tanto em relação a nós, brasileiros, quanto em relação a eles, moçambicanos). Somos parte de um mesmo quebra cabeças que só faz sentido pleno quando juntamos as partes de um processo maior que ocorria paralelamente um ao outro, mas também complementarmente.


Aqui inicio a série de postagens futuras em que escreverei muito tanto sobre a história de Moçambique, como parte da história do Império Colonial português de que fizemos parte como brasileiros, quanto sobre o intercâmbio cultural e pedagógico que estou realizando com os moçambicanos.


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 13 de julho de 2016



Aqui vou inserir trechos dos diálogos realizados por meio do Whatsapp com o professor Ricardo Manganhe:



Professor Ricardo, estou agora na sala de aula. [...]


Durante a greve, fiquei deprimido. Evidentemente, porque gosto de lecionar e, durante a greve, fico em casa, angustiado; porque nunca sabemos quando a greve termina e se vamos alcançar nossos objetivos.

Humberto Luís, artista moçambicano. O Brasil precisa convidar estes artistas moçambicanos para virem fazer seus shows em nossas cidades, para nos aproximarmos como povos irmãos.


O contacto pessoal com os estudantes adolescentes me dá muito prazer. Mas, às vezes, nem sempre é assim. Há alguns que dão muito trabalho (ofendem o professor, não param quietos, não gostam de estudar etc.) e consomem muito de nossa energia psicológica (às vezes chegamos em casa esgotados física e emocionalmente).


Ano passado, por causa da própria campanha política midiática contra o governo Dilma e contra as esquerdas, de modo geral (com o apoio ativo de várias lideranças evangélicas e suas comunidades), fui muito agredido por estudantes (supostamente evangélicos), por realizar minha docência de história, de acordo com o currículo que nós mesmos, enquanto educadores, ajudamos a elaborar em nossa rede de ensino: um ensino de história que tem vários objetivos, entre eles, o de desenvolver o senso crítico dos estudantes, na perspectiva cidadã. Entretanto, quando dizemos senso crítico, queremos afirmar, prioritariamente, pensamento analítico elaborado através de critérios conceituais que deem uma racionalidade mínima ao pensamento do sujeito educando.


Isto é, como aprendemos em Paulo Freire, por exemplo, ter senso crítico não é simplesmente "descer a lenha" em tudo, ou, "meter o pau em tudo". É analisar as coisas, as situações e a si mesmo, com critérios conceituais definidos e sólidos.


No caso em questão, o conteúdo das aulas de história, principalmente no ano passado, a ênfase era (nadando contra a correnteza), em discernir que uma democracia não pode ser fundamentada na confusão entre fé e cidadania, entre religião e secularidade cívica. Ou seja, certos fundamentalistas evangélicos estavam movendo uma forte campanha política contra o governo Dilma difundindo inverdades e atiçando (paradoxalmente, para quem se diz evangélico) o ódio ideológico não só contra a presidenta, mas contra o PT (ódio ideológico que beirava a atitude fascista).

Artistas moçambicanos

Por isto mesmo, enquanto educador de história (secular) que sou, não poderia deixar de exercer meu papel ativo de resistência àquele clima fascistizante (mas devo confessar que, especialmente no primeiro semestre de 2015, sentia muito medo de ser assassinado, por causa do clima político intolerante em Campinas e no estado de São Paulo; onde as forças neoliberais fascistizantes estão mais ativas).

Tratava-se de lutar pela manutenção da democracia tão duramente conquistada, por via de lutas políticas anteriores (tão sofridas e tão reprimidas pela ditadura militar).


Quando eu nasci, vivíamos o período final da fase democrática de 1945 a 1964. Nasci em 3 de fevereiro de 1960. Portanto, tenho 56 anos e estou a caminho de ingressar no Estatuto do Idoso (que define que idoso é todo aquele que tem 60 ou mais anos). Ao contrário de meus alunos, que estão sob a proteção do Estatuto da Criança e do adolescentes, digo para eles que logo terei a proteção de meu próprio estatuto.


Há vantagens em ser idoso: por exemplo, não se fica em filas, a passagem de ônibus dentro da cidade é gratuita (e o idoso tem preferência para sentar) etc.


Ora, com um golpe antidemocrático como o que atualmente ainda estamos vivendo, todas as conquistas sociais, estabelecidas em lei, estão sob risco de serem revogadas. Isto porque, depois do último golpe que vivenciamos, o de 1964, o arbítrio deste ou daquele (no caso de 1964, eram os generais que tomaram o governo e ditavam o que queriam estabelecer como leis) foi fazendo e desfazendo leis ao bel prazer e de acordo com os interesses de quem estava no poder. Por isto é que chamamos ditadura militar. Ditadura, porque não era um regime democrático (surgido das urnas, mas das armas e de um golpe de Estado violento que derrubou um presidente legitimamente eleito) e militar, porque foram os generais que tomaram o poder e somente eles é que poderiam suceder uns aos outros (em uma escolha interna entre eles). Simulavam um regime aparentemente democrático na aparência, para manter a hipocrisia de que derrubaram um presidente sob a alegação de que queriam salvar o país do "comunismo" e da subversão (quando na verdade, em nome da liberdade e da democracia, acabaram com a liberdade e a democracia; típico cinismo da Guerra Fria).


Portanto, quando fui para Brasília, com quatro anos, já estávamos sob uma ditadura. Isto quer dizer que fui criado sob esta pavorosa ditadura, em Brasília (a capital da república). Ditadura esta que queriam que retornassem, em passeatas direitistas, com fortes conotações fascistas, no ano passado.

Mia Couto, escritor nascido em Moçambique mais conhecido no Brasil (aqui ele está em Paraty, cidade colonial do estado do Rio de Janeiro).

Como sei muito bem o que é viver sob uma ditadura, na minha pele, não posso ocultar, ainda mais como educador de história que sou, que não é algo bom e um objetivo que devemos alcançar por meio de nossa luta.; para mim é evidente (embora tenha muita gente defendendo isto hoje em dia). Portanto, ser educador de história pressupõe sim, no meu entender, ter convicções éticas e políticas (no sentido aristotélico, ou seja, de todos somos "animais políticos").


Estas questões fazem parte, direta e indiretamente, do currículo de história.

Artistas moçambicanos


Os fascistas estão defendendo agora, em parlamentos Brasil afora, uma posição política completamente equivocada como a de que é possível implantar no ensino o que eles chamam de "escola sem partido".


Quando eles falam em "escola sem partido", na verdade, eles estão defendendo é a ideologia positivista, autoritária, capitalista, racista etc. Ou seja, no caso da história, estão defendendo uma determinada concepção de história há muito superada nos cursos de história, aquela que costumamos chamar, no Brasil, de história tradicional (a que apresenta somente os grandes feitos dos governantes, no caso, sempre os brancos; em que não há espaço para os escravizados e os povos originários, mas apenas para os europeus, representados nas classes dominantes).


Nada mais partidário do que esta concepção de "escola sem partido".


Na verdade, a maneira predominante de ensinar história, por exemplo, hoje em dia (pelo menos até o momento em que conseguirmos preservar os avanços que já alcançamos) é a de conceber a dimensão política muito para além deste ou daquele partido em específico. Entretanto, há uma base comum de identidade política, supra partidária, mas em íntima conformação com um certo ideário político democrático, tolerante, objetivo em relação à análise dos fatos sociais, econômicos e políticos, mas nunca na forma falsamente "neutra" (porque nenhum texto é neutro, nenhum ponto de vista historiográfico é neutro; já que os sujeitos historiadores são seres sociais que vivem e escrevem a partir de certos contextos sociais, econômicos, políticos, culturais e históricos).


Quando nos atacam porque não defendemos um ensino de história positivista como o que defendia a ditadura militar (que ocultava mais do que revelava, inclusive os personagens históricos populares, negros e índios), querem que sejamos apenas doutrinadores ideológicos de uma sociedade autoritária, racista, eurocêntrica, baseada na visão das classes dominantes (com desprezo pelas classes dominadas) etc.

Artistas moçambicanos


Por esta e outras razões é que tenho dito, por exemplo, à minha orientadora pedagógica, que ser educador de história, hoje em dia, em meio a todo este contexto político conturbado em que atualmente estamos mergulhados, é muito difícil. Sempre foi e será difícil, por causa da própria natureza do conteúdo desta disciplina (afinal, são milênios de história da humanidade); mas há especificidades éticas-políticas cidadãs no momento que torna a tarefa de ser educador de história muito mais difícil ainda.


Não é por acaso que isto contribui com meu estado depressivo (uso medicamentos anti depressivos, porque não é fácil continuar vivendo sob este tipo de pressão).


Até logo. Escrevi muito. É meu desabafo humano, de educador de história que é cidadão, marido e pai.


Alberto Nasiasene


Campinas, 28 de junho de 2016


Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

Based on a work at www.rotamogiana.com.


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