Temos muito o que aprender com Moçambique
Como escrevi anteriormente, conhecer Moçambique é nos reconectar conosco e com possibilidades que perdemos de ser um país multicultural como Moçambique é (com uma federação de povos que falam diversas línguas e tem diversas culturas, mas estão unidos pela língua comum portuguesa). Aqui temos até mais povos e línguas do que em Moçambique, mas não nas proporções em que estes povos de Moçambique existem. Ou seja, nossos povos originários são imensamente minoritários face à etnia mestiça luso brasileira dominante; enquanto que em Moçambique as etnias não europeias e não mestiças são as predominantes, mantendo com a história colonial a continuidade cultural por meio da língua introduzida pelo colonizador (sou simpático à tese de que as demais línguas também sejam consideradas oficiais em igual medida face à língua do colonizador, como acontece em países como a Índia, por exemplo).
Para nossos povos indígenas brasileiros, a experiência dos povos originários moçambicanos é muito interessante, já que lá eles não só conseguiram chegar ao século XXI, mas mantiveram sua presença maciça (preservando a língua e os costumes) em meio ao Moçambique moderno. Penso que há muitas dimensões a serem apreciadas pelos povos originários brasileiros na convivência das etnias moçambicanas com a herança colonial portuguesa. Isto ocorreu por lá porque a presença colonial portuguesa foi menos intensa e durou menos do que por aqui em terras brasileiras. Por aqui ocorreu um genocídio e um etnocídio de escala devastadora (talvez nunca visto em parte alguma do mundo) para os povos indígenas.
Outro dia estava explicando para o professor Ricardo Manganhe porque falamos em povos indígenas (porque ele havia me perguntado por que acontecia isto, já que os portugueses, em Moçambique utilizavam a mesma terminologia para se referirem às etnias moçambicanas não "assimiladas" ao modo de ser português, confundindo a cultura portuguesa do colonizador com a condição de ser "civilizado"; que é um pré-conceito bem etnocêntrico e evolucionista). Portanto, é preciso compreender que o termo "indígenas" é um dos muitos equívocos cometidos pela colonização europeia nas Américas: Cristóvão Colombo pensava até sua morte que tinha chegado, por meio de viagens marítimas sempre em direção ao ocidente, à Ásia, ou seja, às Índias. Por isto mesmo é que os povos encontrados nas Américas foram chamados de índios. Ele nem imaginava que tinha descoberto um novo continente que sequer suspeitava existir e que não havia chegado às Índias coisa nenhuma.
O próprio nome do novo continente, ao invés de ser chamado de Colômbia, como seria de se esperar, foi mudado para América por causa da confirmação que o navegante italiano Américo Vespúcio fez de que não se tratava da Ásia, mas de um outro continente que ficava entre a Europa e a Ásia, continente sequer suspeito por Colombo (por um erro de cálculo dele a respeito da superfície do planeta). Portanto, nas Américas, os povos originários (confundidos com os indianos) foram chamados de índios (talvez seja por isto mesmo que, em português, foi necessário encontrar outro adjetivo para caracterizar o povo da Índia, ou seja, indianos; para diferenciar de índios).
A complicação maior surge quando os portugueses levam esta terminologia para a África e começam a chamar as etnias africanas de "indígenas" também. Os africanos podiam ter muitos povos tribais, mas seguramente estes povos não tinham nenhuma identidade história e cultural com os povos tribais das Américas (além disso, a terminologia "tribal" sempre é problemática, porque induz em erro, ao sugerir que são povos de pequena escala, "primitivos", que não são suficientemente "civilizados"; o que é um preconceito grave e um erro crasso, porque as Américas e a África tiveram sim grandes civilizações, com cidades complexas, ainda mal conhecidas pela história ocidental).
Portanto, vejam como ainda temos muito o que aprender sobre nossa própria história, na medida em que vamos estudando mais sobre nossos povos originários e sobre os africanos que deram origem a grande parte do atual povo brasileiro.
Aqui embaixo insiro mais uns trechos dos diálogos que venho realizando, via Wahatsapp, com o professor de história que é diretor de uma escola em Moçambique, na província de Gaza, cidade de Chibuto. Alberto Nasiasene
Caro amigo Ricardo Manganhe.
Espero que Moçambique consolide a paz e que desenvolva uma democracia inclusiva, com forte componente social (porque não nos interessa uma democracia meramente formal, no papel, a ambos países). Em muitos aspectos, por incrível que pareça, vejo Moçambique à frente do Brasil (e por isto penso que é o Brasil que precisa aprender com Moçambique, não o contrário). Por exemplo, vocês têm uma diversidade étnica vigorosa (com línguas africanas originais faladas por uma grande massa populacional); coisa que aqui, no Brasil, não temos. Aqui fala-se muito em diversidade cultural (ás vezes, em movimentos sociais ativos, fala-se mais em diversidade sexual do que em diversidade cultural, esquecendo-se que temos mais de 200 povos indígenas, com mais de 170 línguas; é que alguns povos indígenas, depois de séculos de dominação portuguesa, esqueceram seus próprios idiomas e só falam o português).
Não penso que a democracia concreta que temos, com conteúdo social, numa sociedade estratificada (mesmo que socialista, porque estratificação social não é exatamente a mesma coisa que classes sociais, num critério marxista de análise que ainda adoto), possa deixar de conviver com certa tensão política (somente os cemitérios não têm mais tensões políticas e isto não é uma virtude). Entretanto, o critério que diz que estamos vivendo em paz, numa democracia consolidada (com o verdadeiro significado da palavra democracia, que é o governo do povo), é que há uma estabilidade social, política e econômica mínima que permite ao cidadão comum viver sua vida, em seu cotidiano, sem sobressaltos e sem pensar, o tempo todo, em política em sentido estrito (um certo grau de alienação da conjuntura é saudável até para mim, que, no momento, não estou podendo ter, por causa dos acontecimentos instáveis e ameaçadores da conjuntura política estrito sensu). Somente aqueles que têm vocação política estrito sensu é que devem dedicar todas as horas de seu dia e todos os seus dias para se dedicar à política estrito sensu. A maioria de nós não tem que ter esta obrigação, nem esta preocupação, em tese; a não ser de modo indireto e não cotidiano e sistemático, como entre os políticos profissionais (não há nada de errado em haver políticos profissionais, que vivem honestamente de sua atividade profissional política; penso eu).
Mesmo que o Brasil tenha quase duzentos anos de independência enquanto país, não temos tanto tempo assim de consolidação de uma democracia em nosso povo e nunca experimentamos ainda uma independência mais profunda das forças colonizadoras provindas do norte do Atlântico. Pode parecer difícil de entender isto, mas penso até que Moçambique, neste quesito, tem mais experiência de liberdade diante das forças colonizadoras e de autogoverno do que o Brasil, porque ainda me lembro que, quando eu tinha 15 anos e vivíamos sob uma pavorosa ditadura, Moçambique já se tornava independente não só de Portugal, mas de uma ditadura fascista como a salazarista.
Bem ou mal que tenha sido a experiência socialista (ao modo stalinista de Moscou), é uma experiência que sempre terá seus pontos positivos a serem analisados (a despeito de seus inúmeros pontos negativos, especialmente analisados num contexto de guerra civil e interferência de potências regionais e internacionais que não queriam que Moçambique se consolidasse como país socialista na África). Ou seja, nunca vi com hostilidade o fato de Moçambique ter ficado independente, sob a liderança da Frelimo, em aliança com os Russos (quem diria, na década de 1980, que os próprios russos iriam mudar tanto assim, como mudaram?).
É admirável como Moçambique conseguiu sobreviver enquanto nação independente e unificada em seu território. Isto é um dos aspectos positivos que se deve exaltar na memória histórica local, valorizando-o. Talvez seja mais fácil, para vocês, fazer isto, do que para nós brasileiros (que ainda temos um forte componente ideológico colonizado presente em nossas classes dominantes, brancas, e parcelas ponderáveis das classes médias, também, geralmente, brancas).
Em alguns vídeos que vi no YouTube, vi a alegria de ser moçambicanos no povo de Moçambique que talvez não tenhamos tão generalizadamente aqui no Brasil. Partes ponderáveis de nossa classe média supostamente branca (porque nem sempre é assim tão branca quanto se julga) deixa transparecer claramente que tem vergonha de ser brasileira (aliás, é frequente ouvir esta expressão da boca de brasileiros). Os governos Lula e Dilma, com as políticas sociais e de desenvolvimento que implantaram, desde 2003, gradualmente, é que começaram a fortalecer a autoestima de ser brasileiro e esta autoestima de ser brasileiro é que está sendo duramente atacada agora, com o golpe e com o avanço econômico capitalista neoliberal sobre o pouco que havíamos conquistado anteriormente. Para a consolidação desta autonomia tão sonhada desde o período colonial, por inúmeros movimentos históricos de libertação que nós historiadores gostamos de pesquisar e valorizar, enquanto intelectuais brasileiros que somos, os planos estratégicos relativos ao fortalecimento da educação pública brasileira são essenciais (exatamente um dos grandes focos do ataque golpista; já começaram a desmontar todas as políticas de fortalecimento do sistema público de ensino; interesses internos e externos não os querem, contra os interesses maiores do povo brasileiro).
Temos muito o que aprender com nossos próprios povos indígenas (tão massacrados e tão desprezados ainda hoje). Por exemplo, não somente o imenso cabedal de conhecimento tecnológico que eles ainda mantém, a despeito de tudo e todos de fora da cultura deles (da etnia maior luso brasileira que os envolve de modo opressivo) e, por tecnológico estou aqui a me referir a um conceito antropológico que o traduz de uma maneira bem simples: tecnologia é, simplesmente, saber aplicado (ou conhecimento aplicado). Também falo dos valores presentes na cultura resistente deles que sobreviveram a séculos de opressão (valores completamente avessos à mentalidade capitalista e à ideologia da sociedade industrial, seja a sociedade industrial capitalista, seja a sociedade industrial socialista ao modo stalinista). Por exemplo, a maneira simples de viver, em alegria, o cotidiano (sem grandes necessidades consumistas artificiais adquiridas pela propaganda intensa de venda que o atual período da sociedade industrial capitalista gerou, pelo menos desde o final da Segunda Guerra). Não penso que seja um erro pensar no aumento do consumo, mas é preciso definir conceitualmente primeiro que tipo de consumo; resistindo ao "fetiche da mercadoria" como apontava Marx (que deve sim ser lido e re lido de modo não dogmático e em diálogo com as correntes humanistas que lhe foram paralelas e posteriores), no século XIX. Por outro lado, é preciso que os intelectuais moçambicanos se apropriem das correntes posteriores do marxismo muito para além do stalinismo e do leninismo. Por exemplo, penso que Antonio Gramsci deveria ser melhor conhecido em Moçambique, também os autores marxistas da Escola de Frankfurt (e Lukács). Há autores marxistas que deram contribuições importantes para as ciências sociais de modo geral, fora da Europa (o Brasil gerou muitos deles, com obras importantes disponíveis em português).
Outro tópico que gostaria de escrever aqui é que, como no Brasil, Moçambique precisa valorizar também um pensamento propriamente antropológico para enriquecer tanto sua experiência de país multiétnico, quanto sua riqueza cultural e histórica (e como modo de contribuição eficaz em políticas públicas de vários matizes). Aqui no Brasil, já estamos vendo, felizmente, que muitos índios estão se tornando, eles mesmos, antropólogos, libertando-se da tutela intelectual dos antropólogos brancos e norte atlânticos.
A antropologia tem muito o que contribuir com a experiência educacional e é por isto que tenho me dedicado ao aprofundamento tanto da contribuição teórica da antropologia, quanto ao aprofundamento do domínio da metodologia de pesquisa de campo da antropologia; porque estou aplicando de forma ousada estes conhecimentos, que vêm desde minha adolescência, em minha atividade docente. É por isto que, não por acaso, batizei a série de documentários que tenho feito, na parceria pedagógico-cultural com você (e através de você, como o povo moçambicano), de Minha Escola é Minha Aldeia (também tenho aprendido muito com o diálogo com os povos indígenas brasileiros). Pelo menos até o fim de minha vida, gostaria de poder falar duas línguas a mais: guarani e shangana. Não sei se vou conseguir, mas esta meta me motiva a viver e a continuar pesquisando (com um norteamento claro).
Como já lhe disse, aprender várias línguas ajuda no desenvolvimento de estruturas cognitivas (pelo menos penso assim referindo-me aos escritos do psicólogo russo, que escreveu a maior parte de sua obra na década de 1930, na antiga URSS, de Vigotiski, tão popular no Brasil, desde a década de 1990, por paradoxal que possa parecer, porque a influência dele, no Brasil, vai muito além da esquerda propriamente dita). A teoria das inteligências múltiplas também é muito interessante (para além da contribuição da antropologia e dos pedagogos de que já falei anteriormente, como, por exemplo, Paulo Freire).
Por isto mesmo, apesar do sofrimento, tento me manter motivado interiormente (e realizando minha obra, que, segundo penso, tem que ser mais importante do que minha pessoa). Aliás, foi isto que aprendi dos grandes artistas e cientistas, desde a adolescência (muitas vezes, realizei grandes coisas, sob as piores situações possíveis, porque é a construção de uma obra de valor que sobreviva a mim, pelo menos para ser vista com orgulho por meus futuros netinhos, que me motiva a prosseguir vivendo).
Muito obrigado por suas palavras amigas. Kanimambo. Um dia vamos conviver pessoalmente, muito para além deste meio limitado que é o Whatsapp. Nosso diálogo está me estimulando muito (estou aprendendo muito sobre Moçambique, direta e indiretamente, através de você, meu amigo). Através dele quero saldar minha dívida social com Moçambique e com a África (depois você entenderá porque falo assim). Até logo (estou em casa agora, depois de um dia de trabalho).
Alberto Nasiasene
Campinas, 28 de junho de 2016
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