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Mensagem a Moçambique sobre educação pública


Caro amigo Ricardo Manganhe.


Só quando visitar Moçambique pessoalmente é que poderei ver, in loco, o contexto e as possibilidades. Às vezes, um país com menos experiência do que outro, em certas dimensões, tem uma vantagem adicional inesperada: ele pode evitar erros de trajetória que podem ser corrigidos.

Eu vou escrever mais detalhadamente sobre isto, depois, quando tiver mais tempo. Mas fiquei com meu coração doendo, quando vi as salas debaixo de árvores.

Estou em casa agora. Quero inicialmente explicar alguns posicionamentos que tomo a respeito da educação, aqui mesmo onde moro e onde atuo, no Brasil e Campinas. Primeiramente, penso que é o educador uma peça chave em qualquer política pública para a educação. Ele é o sujeito que conduz, de modo não autoritário, mas firme, o processo de educação em sala de aula (seja lá qual tipo de sala de aula for, porque pode ser em um estudo do meio, ao ar livre). Portanto, a motivação interior de um educador para ser educador é essencial em sua carreira docente. Se ele escolheu livremente ser educador, porque ama lidar com pessoas, com jovens e crianças (ou adultos), tentando ensinar e gosta de ensinar, então ele terá sucesso, mesmo que sua trajetória profissional seja cheia de percalços, obstáculos, sofrimentos mil.

Isto se soma a outro princípio que advogo, o mais importante na relação social que chamamos de ensino-aprendizagem é o vínculo pessoal e direto do educador e os estudantes (não há regras aqui a serem seguidas, como em uma bula de remédio, porque cada educador encontra sua personalidade pedagógica e vai estabelecendo sua relação pedagógica com estudantes diferentes e turmas diferentes, ao longo da vida). Portanto, podem haver as melhores instalações, os melhores equipamentos, todo tipo de recursos didáticos formais e informais e ainda assim a educação ser um fracasso; porque não são estas coisas secundárias que garantem a qualidade do ensino, mas a relação pessoal do educador com os estudantes.

Para que isto aconteça plenamente, é necessário que o educador tenha um senso próprio de que é um ser em processo constante (e se lembre de que, em todas as eras e todos os povos, há os mestres e os discípulos que estabelecem relações milenares, desde a pré história, quando surgiu o homo sapiens, nossa atual espécie). Isto porque educar não é um processo que pode se resumir ao elemento burocrático e frio (embora reconhecemos que muitos educadores se conformam com isto e até preferem reduzir a educação a este dimensão alienante e coisificante). Por isto mesmo penso que, apesar de ser uma relação profissional séria (que deve ser levada com seriedade profissional), educar não é só trabalhar formalmente em uma unidade educacional qualquer. É algo mais do que isto, é gostar de aprender, de ensinar e de refletir sua própria prática de ensino, aprendendo com os estudantes também, continuamente (mas não da maneira que os estudantes imaturos pensam que estão ensinando o educador, porque este aprendizado que o educador obtém dos estudantes vem de sua própria leitura sobre a relação sua com os estudantes). Penso mais ainda, é preciso amar (sem pieguismos) os estudantes (mesmo aqueles que nos dão muito trabalho e, às vezes, passam a impressão que nos odeiam).

A guerra civil pós libertação, que começou logo depois da independência de Moçambique de Portugal, em 1974, é um fenômeno abjeto bem típico de todas as forças re-colonizadoras e imperialistas opressoras (tendo como patrocinadoras não só as potências do Norte Atlântico, mas a racista e segregacionista África do Sul do Apartheid). Como nossa independência brasileira de Portugal antecedeu a de Moçambique desde o início do século XIX, não tivemos uma guerra civil nos mesmos moldes que Moçambique teve através da luta da Renamo contra o governo da Frelimo de Moçambique. Foi esta guerra covarde que impediu que Moçambique mantivesse um mínimo de estabilidade econômica e política para construir as estruturas sociais mínimas de um Estado socialista. Claro que, como tudo o que é humano, o processo histórico capitaneado pela Frelimo, sob a influência da antiga URSS, está cheio de erros, mas também de acertos. Não foi necessariamente a experiência socialista fracassada (num contexto de guerra covarde) que destruiu Moçambique, mas o boicote de uma burguesia colonial branca que fugiu apressadamente da ex colônia portuguesa na África, escondendo-se na antiga Rodésia ou na África do Sul, ou "retornando para Portugal continental", porque sabia que não se tornaria a nova classe dominante de um país africano de maioria negra (como aconteceu na independência do Brasil, em 1822, com a classe dominante escravista tomando o lugar da Metrópole, mas mantendo as mesmas estruturas sociais internas intactas e a mesma subordinação a uma potência europeia como era o caso da Inglaterra de então). Com a fuga em massa desta enorme população branca de origem portuguesa, para trás, em meio a uma guerra civil covarde, ficou a terra arrasada sabotada de todas as maneiras até chegarmos ao presente momento. Portanto, quero destacar aqui o fato de que, se Moçambique ainda é um país muito pobre, isto se dá não porque sejam africanos, nem porque sejam negros, mas porque o processo colonialista sugou tudo o que podia sugar das riquezas moçambicanas, a começar pelo seu próprio povo, desde o início do tráfico de escravos de Moçambique para o Brasil, por exemplo, desde nosso período colonial. Por isto penso que o Brasil tem uma profunda dívida histórica com Moçambique que precisa ser saldada.


Entretanto, por dizer estes princípios básicos, não estou aqui a defender que não seja necessário investimentos em equipamentos arquitetônicos mais adequados e mais confortáveis. Ao contrário, sou um dos que defendem que haja muito investimento em construções físicas de qualidade arquitetônica e que as escolas do século XXI sejam equipadas com tudo o que há de mais avançado em termos de uso de tecnologias eletrônicas e digitais. Mas claro que não penso que a mera garantia destas coisas, sem que o educador seja colocado no foco das políticas públicas sejam garantia de melhorias significativas da educação.

Por isto é que defendo um programa de educação continuada de qualidade que não seja apenas o oferecimento de cursos de estilo tradicional, autoritário, mecanicista (aqui em Campinas há cursos, promovidos por supostos doutores que me deixam muito irritado, porque eles nos tratam como se fôssemos débeis mentais e querem que fiquemos fazendo leituras lineares de textos, geralmente, textos bem rasos de conteúdo). É por esta razão que penso que a educação continuada deve ser pensada de forma criteriosa e seja elencada como prioritária na formação inicial e na jornada dos professores que estão atuando profissionalmente. Nosso atual Plano de Educação Nacional prevê metas para elevar a formação continuada dos professores oferecendo mestrado e doutorado para o corpo docente (se não me engano, dentro de dez anos, no mínimo 80% dos professores devem possuir nível de pós graduação). Se estas metas vão ser implementadas não sei, por causa do golpe e toda a tentativa de desconstrução de todos os avanços que já alcançamos até pelo menos 2015.

Ainda faltam oito anos para me aposentar, mas, como já lhe disse, estou doando minha vida de aposentado para ajudar Moçambique na área da educação, que é minha área de atuação profissional. Quero levar minha filha, que será engenheira agrônoma, também para ajudar Moçambique, da maneira que for possível (minha esposa é formada em biblioteconomia e poderá me ajudar também em Moçambique). Talvez eu vá para seu país morar algum tempo, ou ir para ficar por temporadas e voltar ao Brasil. É o melhor que posso fazer e isto já representa um plano de vida que quero construir para meus anos finais de vida. Quero trabalhar com a educação da imagem em Moçambique, ajudando aos jovens moçambicanos a gerarem vídeos e arte digital neste novo século que será todo deles, do mesmo modo que estou fazendo aqui onde moro. A era digital tornou esta tarefa mais possível do que era no século XX.

Penso que, à medida em que vamos criando e aprofundando nossos vínculos de amizade, novos amigos poderão ser incluídos para ajudarem Moçambique de mil maneiras, numa relação de povos irmãos que somos. Sei que as pessoas aqui com quem falo desta possibilidade ficam muito animadas e desejosas de encontrar um modo de ir a Moçambique e realizar intercâmbios culturais e científicos com vocês. O povo brasileiro é um povo generoso (nossa elite dominante é que não é), muito mais do que as empresas brasileiras. Há todo tipo de profissionais liberais que poderiam prestar um trabalho de assessoria voluntária em Moçambique, por curtos, médios ou longos períodos (como disse uma vez, é o nosso dever fazer isto, porque o nosso país Brasil foi construído em grande parte com o trabalho dos escravizados de Moçambique e nós somos desafiados pela história a devolver para vocês o que de vocês recebemos).

Ando aprofundando minha pesquisa bibliográfica sobre Moçambique e até pensei que a arquitetura étnica dos povos originários de Moçambique pode ser empregada na construção de escolas, mesmo numa leitura mais erudita contemporânea (como tenho visto em Maputo). Há arquitetos brasileiros que poderiam colaborar com isto, de forma voluntária. Isto diminuiria a carência de salas de aulas minimamente adequadas. Nossas aldeias indígenas constroem suas escolas usando seus materiais étnicos de construção e técnicas tradicionais, mas equipando estas escolas com energia elétrica e internet, por exemplo. Este detalhe revela que defendo sim que a educação de um povo não pode ser concebida por cima das próprias tradições ancestrais de educação que todos os povos humanos têm desde tempos imemoriais.

É preciso ouvir as lideranças locais, dialogar com elas, respeitando suas autonomias, e ir criando novas sínteses de viver e educar que estejam profundamente enraizadas na cultura local, regional e nacional. É o que tentamos fazer aqui no Brasil.


Volto a falar sobre isto depois.


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 8 de setembro de 2016


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