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A geografia da cultura caipira como resultado do processo histórico bandeirista



Só aos poucos é que fui me dando conta de que a cultura caipira (que não é a mesma cultura chamada de matuta no Nordeste brasileiro) é o resultado de um longo processo histórico capitaneado pelos bandeirantes situados no Planalto Paulista, na Vila de São Paulo e adjacências. Na verdade, no século XVI e início do século XVII, o povoamento do atual território paulista por europeus portugueses se dava somente nas imediações do que hoje é a grande São Paulo, baixada santista, litoral norte e sul e Vale do Paraíba (ou seja, perto do mar). Campinas, por exemplo, só será fundada no século XVIII e a ocupação do atual oeste paulista somente se dará no século XX (a linha do Tratado de Tordesilhas dividia o atual estado de São Paulo quase ao meio, de modo que a fronteira dele não ia até o rio Paraná, a oeste). São Paulo era o lugar mais remoto e mais pobre da colônia portuguesa, por mais estranho que possa parecer hoje em dia (mas já muito estratégico para a geopolítica da coroa portuguesa). A prosperidade que foi erguendo São Paulo da mediocridade e periferia até ele se tornar o estado mais rico da federação somente começa, para valer, quando o café vem chegando pelo Vale do Paraíba nas primeiras décadas do século XIX e a riqueza assombrosa de São Paulo só se dará mesmo no século XX, com o aprofundamento crescente da industrialização, arrastando o país como um todo (não porque fosse uma locomotiva, símbolo anacrônico, mas porque foi se tornando, querendo ou não querendo, pouco importa, o maior mercado produtor e consumidor interno, como a China hoje é para o mundo).

Ao final do período de preação e mineração, foi a agricultura de subsistência e a plantação, em larga escala, com escravo africano, que começou a se implantar, gradualmente, na região (o que chamaríamos de agronegócio hoje em dia).Tentou-se a cana antes do café, na área onde hoje está situada Campinas. O café só irá chegar depois, tomando força lá pela década de 1840, mas nunca substituiu completamente a cana, os engenhos (e, posteriormente, as usinas) na região. Tanto é assim que o estado de São Paulo é hoje o maior produtor de etanol (que agora é um estratégico combustível renovável e verde). O tropeiro e guia de carro de boi do início do século XIX (é bom não esquecer que, como disse, Campinas plantou cana até o café aparecer, por volta da década de 1830 e começar a substituir a maioria das plantações de cana e engenhos da região, mas nunca os substituiu completamente; até hoje planta-se cana e existem usinas na região) só irá perdendo a importância à medida em que a ferrovia ia se implantando na segunda metade do século XIX. A Mogiana só será inaugurada, ligando Campinas às fazendas de café do oeste paulista que ia se distanciando cada vez mais, em 1875. As ferrovias, por sua vez, irão perdendo importância diante da indústria automobilística que se implantou em meados do século XX e só agora estão sendo retomadas como meio estratégico de transporte (não por acaso, o chamado trem bala saíra de Campinas até o Rio de Janeiro - hoje toda esta região, na verdade, já forma um conglomerado muito próximo a uma megalópole que une Rio de Janeiro, São Paulo e Campinas como se fosse uma imensa urbe; de modo que, quando o TAV estiver pronto e em funcionamento, será possível ir visitar uma exposição no MAM do Rio, saindo de manhã, e voltar, no fim da tarde para Campinas, sem ter que ficar hospedado no Rio de Janeiro; até será possível pegar uma praia e voltar).


Apesar desta tímida presença portuguesa perto do litoral e da Serra do Mar, nos dois séculos iniciais da colonização, os paulistas tinham uma das maiores mobilidades geográficas entre os colonos portugueses (os paulistas eram os portugueses que estavam mais ao sul na colônia, mas eram chamados também para ajudarem militarmente as capitanias do norte). Claro que não foi só aqui que havia o fenômeno bandeirante (com entradas oficiais e particulares, pelos sertões adentro). Havia também um sertanismo no Nordeste, por exemplo. O próprio termo sertão, na época colonial, não tinha as conotações que lhes são atribuídas hoje em dia. No período colonial esta expressão queria indicar todo o lugar afastado das cidades, vilas e povoados (seja nas florestas, seja nas caatingas, pouco importava; de modo que havia sertão em toda parte da colônia, não só, como se pensa hoje, em uma determinada região semiárida do Nordeste). Entretanto, em abrangência territorial e em importância histórica, tanto para a constituição do território português expandido na América (para além do acanhado limite do Tratado de Tordesilhas), quanto para a constituição de um território cultural luso-tupi-guarani (caipira), foram os bandeirantes paulistas que tomaram a primazia. É importante que se entenda que os territórios abertos à colonização, via interior e para além do Tratado de Tordesilhas, pelos bandeirantes paulistas (no período colonial, praticamente, estas duas palavras, bandeirante e paulista, são sinônimos uma da outra), ficaram sob administração direta da Vila de São Paulo até a coroa portuguesa ir desmembrando-os um a um, tornando-os capitanias independentes da capitania paulista (especialmente depois da descoberta do ouro). Portanto, por mais estranho que possa parecer hoje, Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso e Paraná, por exemplo, pertenciam à capitania de São Paulo (e, portanto, na base da história destes territórios temos os paulistas, com seus costumes coloniais específicos). O território do Rio Grande do Sul só será oficialmente incorporado ao Brasil depois do Tratado de Madri de 1750 (até então, era parte da coroa espanhola e o Paraná somente se desmembrará de São Paulo em meados do século XIX). Vejam os mapas abaixo:

Compare-se o tamanho do território destinado originalmente aos portugueses pelo Tratado de Tordesilhas (vejam também que o próprio território atual de São Paulo seria a metade do que é), com o tamanho atual do território brasileiro e vejam as linhas de entrada das bandeiras em todas as direções.


Foram eles, por um lado, os autores de um amplo genocídio e de um amplo processo de despovoamento territorial que trouxe massas de povos indígenas escravizados para serem vendidos nos empreendimentos não só paulistas, mas nordestinos também (é bom que se lembre que, embora o Nordeste já importasse os caros escravos africanos desde o século XVI, não deixou também de os importar de dentro da colônia, como forma complementar de escravidão; além disso, porque o preço do escravo índio era bem mais barato do que o preço do escravo africano). Entretanto, por outro lado, foram também o elemento aglutinador que deu liga à fusão de elementos culturais indígenas e portugueses. Claro que o bandeirante não se indianizou (como um João Ramalho o fez, antes do processo colonizador começar sistematicamente), mas absorveu (ou, como diríamos hoje, fez tanto a bio-pirataria do conhecimento milenar dos indígenas, quanto a pirataria do próprio conhecimento geográfico dos povos que subjugaram, como já afirmei anteriormente), como dominador estrangeiro, a cultura indígena naquilo que ela o favorecia, sem abandonar completamente, no essencial, seus modos de ser e de fazer portugueses.

Mapas do livro comemorativo aos 500 anos de colonização portuguesa da Revista Isto É


Neste processo histórico de amalgamamento de culturas, sob a égide, violenta é claro, portuguesa, nosso idioma português falado no Brasil, até hoje, tem um imenso vocabulário de origem indígena (até o século XVIII, os próprios bandeirantes também falavam o idioma geral tupi-guarani, o nhenhengatu). Por isto mesmo é que a própria palavra caipira, dizem alguns autores, significa, aquele que fica à beira d'água (ou, literalmente, peixe que fica no mato da margem do rio). Isto é, na medida em que os bandeirantes paulistas estabeleciam suas vias de comunicação via rios que descem até o Paraná e sobem o Paraguai até o interior do Mato Grosso, iam deixando, espaçadamente, alguns mamelucos para cuidar das roças de milho e feijão necessárias ao abastecimento periódico das monções que seguiam até Cuiabá, por exemplo (vem daí também os primeiros núcleos populacionais que deram origem às primeiras cidades que ainda hoje existem).

Esta influência bandeirista paulista primordial ainda está intimamente presente na ampla área cultural caipira (sertaneja, como a própria música popular que existe, na indústria de massas, se autodenomina desde meados do século XX). Vejam, no mapa, como a área de influência dos sertanejos, por exemplo, coincide com a área de influência primordial bandeirista. Não é só na música que podemos ver claramente esta influência remanescente, na comida também. Por exemplo, o tutu de feijão e o feijão tropeiro são contribuições da comida bandeirista à culinária mineira e goiana (em São Paulo é chamado de virado à paulista).

Imagens de internet

É muito comum ouvirmos, na boca de historiadores, museólogos e intelectuais mineiros, goianos e mato-grossenses, que suas terras foram colonizadas originalmente por bandeirantes, mas, geralmente, não se faz a ligação destes bandeirantes abstratos com suas origens históricas concretas para aquém do século XVIII, nem se percebe que eles tinham claramente uma origem geográfica em torno da Vila de São Paulo, de onde saíam as bandeiras paulistas desde o século XVI, mas, principalmente, no século XVII. Portanto, obscurece-se (por desconhecimento ou intencionalmente, por um tipo de bairrismo tacanho) o papel paulista estratégico, para a coroa portuguesa, como revela um historiador do porte de um Jaime Cortesão, na formação tanto do território atual do país, como na história que em cima dele se desenvolveu.

Imagens de domínio público

Sim, as bandeiras eram constituídas predominantemente por índios, por mamelucos e os portugueses ou colonos brancos eram uma minoria no meio delas (podiam chegar a mais de 2 mil pessoas, mas os brancos não ultrapassavam os 100 indivíduos). Entretanto, eram os portugueses e seus descendentes quem as lideravam. Além disso, os bandeirantes não eram tão limpidamente almofadinhas como aparecem nas figuras e imagens criadas no início do século XX (tinham um aspecto muito mais rústico e sujo, é claro, especialmente quando estavam no sertão, do que aparecem nas tais imagens). Entretanto, claro que um erro não justifica outro. Ou seja, não é porque as elites cafeeiras (elites que não existem mais a não ser na memória histórica), beirando o centenário da independência (o símbolo máximo desta independência situa-se, hoje em dia, em plena cidade de São Paulo, no atual Museu Paulista, também conhecido como Museu do Ipiranga), em 1922, construíram artificialmente um bandeirante mítico que nada corresponde ao bandeirante real e histórico do século XVII, em quadros de um Benedito Calixto e em esculturas que adornam o Museu e as praças paulistas, que devemos considerar, como Jaime Cortesão já alertava, o bandeirante como um simples bandido esfarrapado ou nu preador de índios (que ele era preador de índios, era, mas, como Jaime tentou demonstrar em seu livro dedicado a Raposo Tavares, precisamos nos distanciar criticamente do ponto de vista exclusivamente jesuítico para enxergar nele a importância geo-estratégica que a coroa portuguesa queria, como elemento de integração e exploração de um vasto território colonial).

Por incrível que possa parecer, apesar de todo o movimento destruidor do patrimônio histórico, ainda existem casas bandeiristas do século XVII (vejam bem, cem anos antes do casario mineiro de Ouro Preto). As casas do Butantã, do Padre Inácio, por exemplo, estão aí, tombadas pelo patrimônio histórico, omo belíssimos exemplares de uma arquitetura colonial bandeirista que era caracterizada pelo emprego da técnica da taipa de pilão. Na verdade, todo o casario de São Paulo, até meados do século XIX, era constituído de taipa de pilão e ele foi quase todo demolido na segunda metade do século XIX para dar lugar ao tijolo e, posteriormente, ao concreto armado e concreto protendido.

Pe Anchieta

Ainda prevalece em mentes e corações, Brasil afora, por outro lado, o mito do separatismo paulista (divulgado taticamente pelas forças varguistas, na contra-propaganda ideológica, no movimento de 1932, para induzir o país a pensar que São Paulo queria se separar do país e cortar, pela raiz, a simpatia de outros estados que já estavam comprometidos com os paulistas pelo movimento anti-governo provisório de Vargas, sem uma nova constituição), quando o que vemos, numa perspectiva histórica mais detalhada, mais profunda e mais larga, menos provinciana, desde a história colonial, foi o papel integrador e autonomista (face à coroa portuguesa) dos paulistas no território colonial (em detrimento de movimentos separatistas que aconteceram no norte, no Grão Pará e Maranhão, em Pernambuco, no Quilombo dos Palmares, em Ouro Preto etc.). Portanto, é balela atribuir aos paulistas um separatismo que sempre houve, mas em cada região do país (a Balaiada, aConfederação do Equador, a própria Inconfidência Mineira, a Revolução dos Farroupilhas etc.). Feliz ou infelizmente, o que predominou, foi a unidade do país durante todo o século XIX e durante o século XX. Entretanto, surgiram novos separatismos racistas que não são paulistas (mas os paulistas é que são acusados deste tipo de fenômeno, injustamente), como os de alguns setores paranaenses, catarinenses e gaúchos, que começaram, desde a década de 1980, imitando o que acontecia na ex-Iugoslávia e dentro da Itália, a falar em se separar do país, por uma questão racial, inclusive (mesmo que não gostem que se fale assim, quando apontam para o Nordeste mestiço como causa do atraso do país, estão a se autorreferirem como melhores racialmente). Mas vejam bem, estes separatismos racistas vêm de outros estados em que houve outro tipo de imigração diferente da imigração paulista, por exemplo. Em São Paulo, os italianos, por exemplo, a principal corrente imigratória, foram deculturados e, aos poucos, foram esquecendo seu idioma e suas tradições, porque se misturaram com os demais luso-brasileiros, nas fazendas de café e nas cidades para onde foram posteriormente (ao contrário das comunidades italianas gaúchas e catarinenses, que preservaram, nos guetos que criaram para si mesmas, para não se misturarem, a língua e os costumes; porque constituem outro tipo de imigração de pequenos camponeses com algum capital; bem diferente da imigração em massa de camponeses proletários, que ocorreu em São Paulo, que vieram substituir a mão de obra escrava africana).

Pe. Antônio Vieira

Sim, os paulistas bandeirantes não tinham lá muita simpatia dos jesuítas e eram vistos com muitas desconfianças pela coroa portuguesa, mas isto se dava por razões distintas. Os jesuítas os hostilizavam por causa da caça aos índios que escravizavam (mas é bom lembrar que os jesuítas não eram contra a escravização do africano) e a coroa portuguesa não tinha confiança em sua lealdade à Metrópole europeia (por causa de sua altivez excessiva e de seu profundo espírito de luta revelado na disposição para a briga fácil, por qualquer motivo; as atas da Câmara da Vila de São Paulo estão repletas de lutas intestinas entre famílias que frequentemente iam às vias de fato). Por outro lado, o paulista luso-colonial típico desenvolveu um espírito taciturno e desconfiado (por isto mesmo, tanto porque eram hostilizados por uns e por outros, quanto porque seu principal empreendimento, caçar índios e buscar ouro era uma atividade altamente arriscada e traiçoeira). Algo deste temperamento ainda há em São Paulo, mas é bom sempre relativizar este mito bobo (como se o paulista típico fosse o desta caricatura), porque levas e levas de imigrantes das mais variadas procedências trouxeram seus modos de ser e de estar para a cidade de São Paulo, por exemplo (especialmente depois da segunda metade do século XIX). Além disso, o interior tão povoado e tão complexo do estado, hoje em dia (mas que veio se desenvolvendo desde a segunda metade do século XIX), tem outras características que não se confundem com as colonais da capital (afinal, hoje em dia, o estado possui uma população igual à da Argentina, mais de 40 milhões de pessoas). A própria São Paulo colonial (em sua estrutura urbana e arquitetônica, infelizmente, quase que desapareceu inteiramente; especialmente a partir do desenvolvimento advindo com a lavoura do café, no século XIX, mas com maior vastidão horizontal a partir da segunda metade do século XX).


É uma tristeza que tenha surgido, especialmente na década de 1990, esta importação de um padrão texano de ser que nada tem que ver com a verdadeira personalidade sertaneja de origem sertanista. Está na hora começar a desconstruir estes falsos chapéus de cowbois que nada tem que ver conosco e fazer novas leituras, contextualizadas ao século XXI, de nossas tradições populares mais antigas. A música popular brasileira sempre foi capaz de fazer isto. Não tenho preconceito contra o mundo "sertanejo;" o que gostaria de ver, ao contrário, é um sertanejo mais autêntico e menos americanizado (e não porque sou contra as coisas americanas só porque são americanas, mas porque penso que temos nossa própria personalidade e nosso próprio sotaque e não temos porque nos envergonhar disto).

Outra balela bem difundida malevolamente (por um político como Ciro Gomes, por exemplo, por incrível que possa parecer, que nasceu em São Paulo mas nada entende de paulística; balela que é bem comum no nível do senso comum) é a de que a desconfiança de outros estados face a São Paulo vem por causa da industrialização e do capitalismo que se desenvolveu aqui (como se não houvesse capitalismo nos outros estados, ou, quem sabe, como se a burguesia de outros estados fosse muito mais boazinha do que a paulista). É risível tamanho acacianismo à la Merval Pereira. São Paulo só passou a superar o Rio de Janeiro em nível de industrialização na primeira metade do século XX e somente se tornou a maior cidade do país (e o estado mais populoso também) a partir de meados do século XX. Portanto, até então, o Rio de Janeiro, que também era a capital federal do país, detinha a condição de cidade e estado mais industrializado e mais populoso, só perdendo esta condição gradualmente para São Paulo. Quando Brasília foi inaugurada pelo mineiro JK, em 1960, o processo de aprofundamento da industrialização paulista e interiorização do povoamento e desenvolvimento para as regiões mais centrais do país somente se acirrou mais (talvez seja por isto mesmo que certos lacerdistas cariocas até hoje não perdoem Brasília e tenham lá seus recalques face a São Paulo; Freud talvez explique a gênese deste complexo, porque a história não consegue explicar, ao contrário, o que mostra é o papel central dos paulistas, desde as mais remotas eras coloniais, para a própria formação e integração territorial deste imenso território que é um dos quatro ou cinco países maiores do mundo, falando uma só língua, de norte a sul e de leste a oeste; embora existam pelo menos 170 línguas indígenas ainda).


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 10 de agosto de 2012



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