A semântica oculta do modernismo urbanístico de Brasília
Pátio do Museu Nacional Honestino Guimarães, com a exposição A Utopia da Modernidade. Foto: Loretta Nasiasene Julho de 2008
A primeira coisa que quero dizer é que toda cidade pode ser feia e bonita ao mesmo tempo, depende do olhar de quem vê. Por exemplo, Campinas, no estado de São Paulo, é uma cidade que pode ser muito feia, se estivermos olhando apenas o seu centro cheio de pichações, com os seus casarões neoclássicos do século XIX descuidados (alguns caindo aos pedaços), sujos e com suas ruas apinhadas de carros (com a poluição sonora, visual e a fuligem enegrecedora que se entranha até nas árvores) etc. Por outro lado, se o olhar de quem vê Campinas conseguir ultrapassar esta primeira aparência fácil e superficial da cidade, pode-se ver, por detrás desta fachada deteriorada, um cenário urbano muito bonito que devia ser mais bem cuidado pela própria população da cidade (por isto é que ajudei a escrever um livro sobre a cidade, Conhecer Campinas numa Perspectiva Histórica, na intenção de divulgar melhor a história desta cidade entre a própria população escolar; objetivando uma melhor preservação do patrimônio histórico a partir da educação).
O Congresso Nacional e o Supremo Tribunal Federal na Praça dos Três Poderes. Foto: a primeira, Alberto Nasiasene; a segunda, Loretta Nasiasene. Julho de 2008
Sobre Brasília, muitas vezes, as pessoas desconhecem o simples fato geográfico preliminar que precisa ser conhecido, o de que Brasília fica exatamente em cima do Planalto Central do Brasil e está situada entre 1.100 metros e 1 200 metros acima do mar (dependendo do lugar, no horizonte leste da cidade, depois do lago Paranoá, a altitude é bem maior do que 1.200 metros e o ponto mais alto do DF é 1 349 metros acima do nível do mar). Ora, Pedreira e Amparo, cidades vizinhas a Jaguariúna, onde moro, estão numa altitude menor do que Brasília (o ponto culminante de Amparo, cidade que está em plena Serra da Mantiqueira, está a pouco mais de 1.000 metros, portanto, Brasília é mais alta do que Amparo na Serra da Mantiqueira).
Planalto central. Foto de domínio público
Muitas pessoas, sem conhecer Brasília, fazem uma afirmativa equivocada como esta: a de que "a visão se perde no horizonte." Ao afirmarem isto, revelam que não conhecem suficientemente a cidade de Brasília (porque para a visão se perder no horizonte, isto só ocorreria se Brasília estivesse numa planície, o que não é o caso). Ao contrário, a partir da superquadra onde fui criado, na Asa Norte, olhando na direção leste, no lado do nascente, vemos sim duas estruturas montanhosas que ficam no horizonte da cidade (o centro da cidade, onde ficam os ministérios, a Praça dos Três Poderes e a rodoviária, está mais ou menos a 1.150 metros de altitude).
A definição da geografia do DF, constante na Wikipédia, é a seguinte:
"Áreas planas e elevadas, colinas arredondadas e chapadas intercaladas por escarpas, assim é caracterizado o relevo dominante do Distrito Federal. Ao norte e ao sul, pequenas diferenças podem ser percebidas na paisagem . Norte: relevo acidentado, com vales profundos chamados ¨vãos¨. Sul: são comuns os vales abertos e as encostas pouco íngremes. Altitudes. 1.100m é a média, tendo como ponto mais elevado a Chapada da Vendinha, localizada a noroeste com 1.349 metros. Situada em uma vertente está a cidade de Brasília; quanto mais próxima do rio Paranoá menor será sua altitude, chegando a 1.152 metros no centro de Brasília.".
O Planalto Central. Julho de 2008 Foto: Alberto Nasiasene
O Planalto Central. Julho de 2008 Foto: Alberto Nasiasene
O Planalto Central. Julho de 2008 Foto: Alberto Nasiasene
Portanto, o relevo de Brasília não é tão liso, plano e monótono quanto algumas pessoas pensam que é, mas variado e acidentado também, como o da maioria das cidades brasileiras. Além disso, as casas do Lago Norte e do Lago Sul, por exemplo, que estão construídas nas duas penínsulas que entram no Lago do Paranoá, estão muito mais altas do que o nível da água do lago (o que permite a visualização longínqua de todo aquele setor, com aquelas casas de alto padrão emolduradas, atrás, pelas montanhas que abraçam Brasília e que estão a mais de 1.200 metros de altitude). O lago de Brasília é um lago artificial, surgido de um represamento do rio Paranoá e este represamento só se tornou possível exatamente por causa da existência de uma garganta entre duas montanhas (estas que estão no horizonte da cidade, como falei acima), onde construíram a barragem (que pode ser vista por qualquer turista interessado).
Construção da barragem do Paranoá, para formar o lago. Domínio público
Barragem do Paranoá. Domínio público
É claro que a área central de Brasília apresenta-se mais plana, mas isto não ocorre por causa do nível natural do terreno em que ela foi construída não. Ocorre por causa das obras de terraplanagem prévias, feitas desde meados dos anos 1950 (quando começou a construção da cidade), que foram feitas com aqueles enormes tratores para preparar a construção da capital; que foi totalmente planejada mesmo antes de nascer. Esta terraplanagem ocorreu por causa do plano urbanístico elaborado pelo Lúcio Costa. A intenção clara era a de criar aquela esplanada livre que existe, em frente ao Congresso Nacional e entre os ministérios, coberta de grama. É o mesmo tipo de esplanada que há em Washington, capital dos EUA (cidade que também foi planejada para ser a capital do país norte americano), ou em Versalhes, capital política da monarquia francesa (só depois é que descobri, por causa da formação francesa de Lúcio Costa, que Brasília tinha uma influência maior de Versalhes e não de Washington, como eu pensava, ainda mais porque Washington recebeu também uma influência de Versalhes, que é mais antiga).
Marco zero de Brasília, em julho de 2010. Foto: Alberto Nasiasene
Marco zero de Brasília, em julho de 2010. Foto: Alberto Nasiasene
É necessário lembrar, portanto, que o urbanismo do Lúcio Costa inscreve-se na grande tradição modernista ocidental (e o modernismo também tem importantes raízes artísticas nos EUA) e cartesiana (de uma geometria arquetípica que lembra muito sim a arte abstrata e o cubismo tão típicos na pintura do século XX). Além disso, o Lúcio Costa e oNiemeyer são herdeiros mais diretos da escola modernista e humanista de arquitetura e urbanismo do Le Corbusier. Portanto, não por mero acaso esta estrutura urbana mais plana foi elaborada no centro da cidade (através dos trabalhos prévios de terraplanagem). O que se queria era criar o cenário propício para as grandes manifestações políticas populares mesmo, com amplos espaços abertos disponíveis para as grandes massas em suas manifestações cívicas ou políticas (como em Washington). Entretanto, mesmo no centro cívico da cidade, no chamado Eixo Monumental e na esplanada dos ministérios, vê-se claramente, muitos altos e baixos (pistas abaixo e pistas acima, gramados abaixo e gramados acima; de tal maneira que, se, por descuido e falta de atenção, alguém cair nestes altos e baixos, pode perder a vida, porque são realmente altos e baixos difíceis de ver a não ser para quem está por lá a pé; o que quer dizer que é uma aparência enganosa pensar que Brasília é toda plana; não é mais plana do que Campinas não, posso lhesgarantir).
Le Corbusier
Além dessa intenção política relativa às grandes demonstrações de massas e aos desfiles militares, era um espaço criado intencionalmente para uma visualização fácil dos principais prédios dos principais poderes da república, vistos em perspectiva, mesmo a grandes distâncias (das janelas dos apartamentos nos andares mais altos dos blocos de minha superquadra, onde fui criado, é possível ver, no horizonte, a esplanada, com o edifício do Congresso Nacional, o palácio do Planalto e os prédios dos diversos ministérios). É por isto que também há uma regra básica em Brasília que não pode ser descumprida: o edifício mais alto da cidade é o Congresso Nacional e nenhum outro pode sequer igualá-lo. Isto é, todos os outros edifícios de natureza não-residencial têm que ser necessariamente menores do que os vinte e oito andares dos prédios gêmeos da Câmara dos Deputados e do Senado federal.
Greve dos carteiros em 14 de julho de 2008. Eles se concentraram na Praça dos Três Poderes.
Foto: Alberto Nasiasene
Os blocos de apartamentos, nas duas asas da cidade, só podem ter uma altura padrão de três ou de seis andares. Ou seja, nas superquadras começadas com o prefixo 400, sul e norte, os blocos só podem ter três andares (para não interromper a visão do horizonte e do Lago do Paranoá das quadras que ficam atrás). As outras superquadras possuem blocos de apartamentos de seis andares. Isto é o padrão urbanístico da cidade que não pode ser alterado e a intenção do Lúcio Costa foi a de impedir um desordenado crescimento aleatório de prédios de diferentes tamanhos como há em São Paulo e Campinas, por exemplo. Pode-se desconhecer este fato, mas ele não é diferente do padrão arquitetônico e urbanístico da cidade de Paris, por exemplo (que também possui um padrão comum de altura máxima permitida), e das outras cidades européias (é por isto que não se vê uma grande concentração desordenada de arranha-céus nos centros das cidades européias). A intenção deste padrão urbanístico também é clara e conscientemente elaborada: objetiva valorizar o rico patrimônio histórico (muitas vezes milenar) das cidades européias, que não pode ser ocultado por um paredão desordenado de arranhas céus (e esta é uma das grandes diferenças das cidades européias em relação às cidades das Américas, porque, nas Américas, geralmente, não há este patrimônio histórico tão antigo a ser preservado e valorizado, nem interesse político de criar um padrão urbano coerente, por causa, principalmente, da desenfreada especulação imobiliária).
Asa Norte. Julho de 2008. Foto: Alberto Nasiasene
Quanto à afirmação que se faz, algumas vezes, a de que "tudo longe, as pessoas de lá ao passarem alguma informação falam: 'toca toda vida até achar tal coisa..." É necessário lembrar que a estrutura urbanística criada intencionalmente em Brasília não é uma estrutura semelhante à maioria das cidades brasileiras, moldadas todas no padrão cultural luso-brasileiro (que, por sua vez, é diferente do padrão hispano-americano). Isto é, em Brasília não há bairros, esquinas e praças convencionais porque a cidade se estrutura de maneira inteiramente diferente, no padrão cartesiano modernista de que falei acima. É por isto mesmo que a cidade confunde e desconcerta um visitante que não está preparado para entender esta estrutura abstrata previamente. Os referenciais urbanos que a cidade apresenta são completamente diferentes, porque ela é construída conceitualmente a partir de setores específicos especializados. Isto é, há áreas residenciais, comerciais, bancárias, hoteleiras e administrativas. Além disso, grande parte do comércio da cidade é concentrado em muitos shoppings centers (ou pequenas galerias comerciais), espalhados em várias destas áreas urbanas de Brasília, mas há também o pequeno comércio de vizinhança situado nas entre-quadras ou nas avenidas W 3 sul e norte.
Interior de uma superquadra na Asa Sul. Janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Interior de uma superquadra na Asa Sul. Janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Interior de uma superquadra na Asa Sul. Janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
O próprio conceito de quadra precisa ser esclarecido. Afinal, quadra, em Brasília, não tem nada a ver com os quarteirões existentes nas outras cidades brasileiras (onde os quarteirões são subdivisões dos bairros). Portanto, a equivalência de quadra, em Brasília, não é a de quarteirão, nas outras cidades. Quadra, em Brasília, é a unidade básica de um setor específico da cidade. Por exemplo, no setor residencial, como nas Asas Sul e Norte, há as superquadras ou quadras de blocos de apartamentos ou de casas, todas designadas de acordo com os pontos cardeais e a localização geométrica e geográfica na estrutura geral da cidade. Ou seja, há as superquadras 402, 403, 404, 405 etc. norte ou sul (com blocos de três andares), delimitadas pela avenida L 2 (que representa também a delimitação leste da asa) sul ou norte e pela L 1 (que fica a trás da fileira das superquadras de prefixo 400 e a separa da fileira das superquadras seguintes que são as de prefixo 200, ou seja, 202, 203, 204 etc.) sul ou norte. É difícil fazer uma comparação do tamanho destas superquadras com outras realidades urbanas existentes no país porque não há parâmetros suficientemente adequados para isto. Por isto é que não se pode comparar superquadra ou quadra com quarteirão (porque os quarteirões podem ter tamanhos muito diversificados, desde os pequenos quarteirões até os grandes quarteirões; mas as superquadras e quadras de Brasília têm sempre o mesmo tamanho padrão).
Superquadra da Asa Sul. Julho de 2008 Foto: Alberto Nasiasene
Uma diferença básica que se pode fazer é quanto ao tamanho, já que as superquadras são maiores do que as simples quadras. Dentro de cada superquadra ou quadra, com muitos blocos de apartamentos ou casas, há uma população considerável e eu não posso precisar aqui em que dimensão (mas o Governo do Distrito Federal tem estes dados). São milhares de pessoas que moram numa mesma quadra, com diversos blocos de apartamentos. Além disso, o tamanho das superquadras é grande porque cada bloco de apartamentos não fica colado um ao outro, como vemos em São Paulo e Campinas. A intenção consciente do urbanista Lúcio Costa, ao criar este tipo de padrão urbanístico, dentro da estrutura que ele criou, é a de propiciar amplas áreas gramadas e arborizadas no interior de cada superquadra, impedindo, paralelamente, também a intensa circulação de carros no interior de cada uma delas.
Superquadra da Asa Sul. Julho de 2008 Foto: Alberto Nasiasene
Isto tem tudo a ver com os princípios básicos da escola de Le Corbusier de que falei acima, que era uma escola de urbanismo e arquitetura modernista e humanista. Ou seja, segundo Le Corbusier, a arquitetura e o urbanismo deviam existir em função do homem. Portanto, as superquadras são construídas, com amplos espaços gramados e arborizados em seu interior, onde os carros podem circular sim, mas somente na medida em que estão querendo ter acesso aos estacionamentos existentes no interior das quadras e aos apartamentos de moradias dos seus donos. Isto quer dizer que estas amplas áreas gramadas (hoje em dia, bem verdinhas, porque, nos anos 1960, em minha infância, estas amplas áreas ainda não estavam completamente gramadas não) foram criadas para o conforto das crianças e suas mães (que ficariam, e ficam realmente até hoje, despreocupadas ao saberem que seu filhos estavam brincando nestas amplas áreas seguras dentro das superquadras).
Interior de uma superquadra na Asa Sul. Janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Superquadra da Asa Sul em Brasília, julho de 2010. Foto: Alberto Nasiasene
Superquadra da Asa Sul em Brasília, janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Como eu fui criado em Brasília e estou criando minha filha em Jaguariúna, posso dizer sim, por comparação, que minha filha teve e tem menos liberdade de movimentos e menos áreas disponíveis para brincar do que o que eu tinha em Brasília (longe do tráfego intenso dos carros e, portanto, protegido de atropelamentos). Portanto, apesar da existência daquela ditadura militar pavorosa que nos oprimia, como cidadãos (contra a qual lutei firmemente desde que me entendo por gente), minha infância ocorreu livremente nestes espaços internos da superquadra onde eu fui criado (não fui uma criança presa em apartamento não, graças a Deus ).
Catedral de Brasília. Julho de 2008
Foto: Alberto Nasiasene
As principais vias de circulação de automóveis e ônibus da cidade são vias que existem fora das unidades de residência, as superquadras e quadras. Ou seja, as principais vias, também chamadas de avenidas (mas sem nomes, apenas números e letras), são as avenidas L 2, norte e sul, as avenidas W 3, norte e sul e o Eixo Rodoviário, norte e sul, que separa em duas bandas cada asa (na verdade, o Eixo Rodoviário tem cinco pistas, com uma grande e larga pista central, rodeada de dois pares de vias menores que existem lateralmente). O objetivo destas grandes avenidas paralelas foi o de que os carros pudessem desenvolver grandes velocidades e, simultaneamente, desviarem-se do tráfego no interior das superquadras (para causar aquela tranqüilidade interior de que falei).
Museu Nacional Honestino Guimarães. Julho de 2008 Foto: Alberto Nasiasene e Loretta Nasiasene
Como a cidade é toda estruturada a partir de conceitos geométricos e geográficos básicos, é preciso entender o código que está implícito nestes nomes de superquadras e avenidas de que já falei. Ou seja, há quatro letras básicas que indicam os quatro principais pontos cardeais: a letra L significa simplesmente leste, a letra W significa simplesmente oeste (do inglês, West), a letra S significa sul e a letra N significa norte. Portanto, não há mistério nenhum não. É claro que um visitante desavisado achará tudo muito complicado e não entenderá tudo isto à primeira vista, mas se ele se habituar facilmente, verá que é muito mais fácil, em Brasília, encontrar qualquer endereço do que aqui em Jaguariúna (mesmo que Jaguariúna seja tão pequena como é). Com base no endereço nós podemos saber, imediatamente, se o que procuramos está no norte ou no sul, no leste ou no oeste e em que lugar (por isso mesmo é que se pode encontrar qualquer endereço facilmente em Brasília, mesmo sem nunca antes ter estado lá).
Desenho original do Plano Piloto. Domínio público
Um outro elemento que quero explicar agora é a própria designação de "Asa" Norte e "Asa" Sul. Geralmente as pessoas pensam que estamos nos referindo às asas de um avião, porque o desenho urbano do plano piloto é muito semelhante sim a um avião (olhado de cima). Entretanto, foi o próprio Lúcio Costa que disse que, quando ele fez o desenho geral da cidade, a primeira coisa em que ele pensou foi na cruz. De fato, o plano urbanístico do Lúcio Costa (amplamente documentado em seus primeiros esboços) surgiu inicialmente de um simples marco no terreno assinalado em formato de uma simples e pequena cruz (como, segundo ele mesmo disse, quem toma posse de um terreno qualquer). Não deixo de ver a semelhança deste gesto arquetípico que gerou Brasília com o gesto de Pedro Álvares Cabral, ao tomar posse da terra (que não era dele nem de Portugal, mas dos índios tupinambás) em Porto Seguro e batizar aquela suposta ilha (como ele pensou inicialmente que era a terra do Brasil) como Ilha da Santa Cruz (ou terra da Santa Cruz). Em seguida ele mandou rezar uma missa lá onde hoje chamamos de estado da Bahia. Não por mera coincidência, antes de começar a construção da nova capital no interior do Planalto Central goiano (desmembrando aquela terra do estado de Goiás e transformando-a em Distrito Federal), o presidente Juscelino Kubistchek também mandou rezar uma primeira missa (no local onde hoje ergue-se um cruzeiro, ao lado oeste do chamado Eixo Monumental, exato oposto da área onde hoje está situada a Praça dos Três Poderes).
JK
O que aconteceu com a cruz do Lúcio Costa foi que ela teve que se adaptar ao terreno e ao lago que iria ser formado para amenizar a natureza agreste do cerrado brasileiro onde iria ser construída a nova capital (constituído de árvores com cascas grossas e troncos retorcidos, por causa do solo pobre em nutrientes e da ocorrência anual de uma estação seca muito rigorosa que coincide com a estação do inverno, quando a região fica meses sem receber chuva nenhuma). Isto é, a cruz teve que se dobrar levemente para se encaixar no terreno que ficaria livre das águas do futuro Lago do Paranoá. Isto é que deu aquela aparência de avião que até hoje as pessoas ainda atribuem a Brasília. Mas o interessante é que a maioria delas sequer ouviu falar que o Lúcio Costa via neste desenho urbano de Brasília muito mais a figura de uma libélula, ou de uma borboleta do que a de um avião.
Lúcio Costa, esposa e filha. Domínio público
Portanto, seja avião, libélula ou borboleta (no caso, a figura dos insetos pode perdurar por milênios, enquanto que a figura do avião não, porque as naves espaciais do futuro em nada lembrarão nossos aviões do século XX), o que se vê são as duas asas (ou os dois lados leste e oeste da cruz) que dividem o plano piloto de Brasília em duas partes simétricas, uma a norte e outra a sul. Penso que o próprio nome de plano piloto (que quer dizer simplesmente, o projeto principal da cidade, desenhado pelo arquiteto e urbanista Lúcio Costa da maneira que foi explicada anteriormente) contribui para que a maioria das pessoas pensem que Brasília é um avião visto de cima. Entretanto, a designação de "plano piloto" ainda hoje é empregada não só nas engenharias urbanas, mas também nos experimentos em geral (não só científicos), como os testes de novos programas televisivos, por exemplo. O que muita gente não sabe é que os outros projetos urbanísticos constantes do concurso público internacional que foi feito para a escolha do projeto da nova capital do Brasil, em meados dos anos 1950 (que ficaram em segundo, em terceiro, quarto lugar etc.), também foram aproveitados na construção de Brasília e foram empregados para a construção dos outros núcleos urbanos próximos ao plano piloto designados erroneamente inicialmente como "cidades satélites" de Brasília.
Transposição da Asa Sul para a Asa Norte, por baixo do Eixo Monumental. Fote: stellabortoni.com.br
O que há de errôneo aqui nesta designação é que estes outros núcleos urbanos existentes ao redor do plano piloto nunca foram e nunca podem ser realmente verdadeiras cidades, porque a constituição do país declara expressamente que o Distrito Federal é constituído de um município único, a cidade de Brasília (e isto já era assim desde que a capital era no Rio de Janeiro, porque a cidade do Rio de Janeiro era separada do estado do Rio de Janeiro, formando um Distrito Federal com município único, que abrangia o que chegou a ser o estado da Guanabara após a transferência da capital para o Centro Oeste; é que, posteriormente, o estado da Guanabara foi anexado ao estado do Rio de janeiro). Estes outros núcleos urbanos existentes em Brasília estavam mais próximos do conceito de distrito interno que há em muitos municípios brasileiros (como o distrito de Barão Geraldo e de Sousas em Campinas). Além disso, hoje, a maior parte destes outros núcleos urbanos (ou distritos, como queiram), ou regiões administrativas de Brasília como são chamadas oficialmente, estão, cada vez mais, se emendando uns aos outros e formando um único conglomerado urbano com 2 500 000 de habitantes. O plano piloto, cada vez mais, portanto, está se transformando como que em um grande centro urbano ampliado, no centro de um megalópole que inclui não somente as outras áreas urbanas do Distrito Federal mas as cidades vizinhas goianas no entorno do Distrito Federal (aliás a designação oficial que usam em Brasília é a de "entorno" para caracterizar as cidades goianas vizinhas tais como Valparaíso e Lusiânia).
É claro que, em minha infância, eu nunca pensei que a cidade de Brasília iria crescer tanto e que teria uma população tão grande como tem agora, com mais de 2 500 000 de habitantes (incluindo-se aqui somente a população interna ao Distrito Federal e não a das cidades goianas vizinhas). Algumas projeções falam em até 5 milhões de habitantes aglomerando-se no município de Brasília e no entorno goiano do Distrito Federal. Isto me surpreende sim, porque ainda me recordo de como Brasília, em minha infância, era apenas um município médio em população e de como o entorno goiano era uma área pouco povoada, imersa no amplo cenário de cerrado que cobria grande parte do estado de Goiás.
Cerrado. Domínio público
Cerrado. Domínio público
A sensação de estranhamento e intimidação que muitas pessoas sentem ao chegarem a Brasília pela primeira vez, é semelhante à sensação que eu mesmo sentia, morando em Brasília, em minha adolescência, nos anos 1970 (ao fazer minhas primeiras viagens sozinho) ao ver grandes cidades como Belo Horizonte e Rio de Janeiro. Portanto, para mim, que me considerava um caipirão de Brasília, a grandiosidade das cidades de Belo Horizonte e do Rio de Janeiro me intimidava muito (mas eu me sentia fascinado e atraído por aquele cenário grandioso, mesmo que muito assustado). A diferença destas grandes cidades de que estou falando, face a Brasília, mesmo a despeito de toda esta população que vive ali no Distrito Federal, é a de que em Brasília os espaços são mais conscientemente dilatados para evitar a excessiva densidade populacional existente em cidades como Belo Horizonte, Rio de Janeiro e São Paulo (é por isto que não se tem a impressão de que se está entrando em um conglomerado de mais de dois milhões e meio de habitantes, quando se chega em Brasília de carro ou de ônibus).
Cerrado. Domínio público
Isto também quer dizer que, por causa deste espaçamento proposital da estrutura urbana da cidade, há grandes distâncias internas a serem percorridas sim em Brasília. Não é só porque, como muitos pensam, Brasília foi uma cidade construída para o movimento dos carros (em pleno processo de industrialização automobilística da era JK nos meados e no final da década de 1950); a civilização das quatro rodas. É também por causa da estruturação da cidade com base em setores específicos, separando atividades urbanas específicas tais como moradia, comércio, diversão e administração. Entretanto, se se observar melhor (se por acaso estivesse morando por lá), veremos que estas distâncias, desde que trafegadas por meio de automóveis e ônibus, não são tão grandes assim (porque em questão de poucos minutos se pode estar em uma ponta da Asa Norte ou da Asa Sul; já que o trânsito flui muito rapidamente, sem grandes engarrafamentos, e sem grandes esquinas, onde os carros se encontram, aos milhares, vindos de direções contrárias, tendo que esperar o semáforo abrir nesta ou naquela direção, como os que existem em grandes cidades de trânsito congestionado tais como São Paulo e Rio de Janeiro).
Trânsito de Brasília. Domínio público.
Trânsito de Brasília. Domínio público.
Minha irmã caçula Maria Cristina, que nasceu em Brasília, sempre me diz que em Brasília, hoje em dia, apesar de todas estas medidas traçadas previamente na estruturação urbanística visionária e futurista do Lúcio Costa, o trânsito está ficando cada vez mais complicado. É verdade sim que ele está mais complicado do que era na minha infância (porque não havia esta quantidade imensa de carros que há hoje em Brasília, já que a cidade é uma das cidades brasileiras que mais têm carros circulando com relação aos números de sua população), mas nem de longe é igual aos muitos quilômetros de engarrafamento diário de uma cidade como São Paulo e nunca as pessoas ficam horas e horas (como em São Paulo) presas nos engarrafamentos.
Trânsito de Brasília. Domínio público.
Portanto, como se vê aqui, é preciso sempre contextualizar geográfica e historicamente (e esteticamente também) as considerações que fazemos a respeito desta ou daquela cidade brasileira. Mas, quanto a Brasília, é preciso fazer também uma outra contextualização muito importante: a cidade é a capital oficial do país, mas não é somente uma cidade de natureza estritamente política como a maioria esmagadora das pessoas que mora fora de Brasília pensa. Ou seja, não se pode confundir a população residente em Brasília com os políticos e tecnocratas que por lá estão residindo momentaneamente (muito menos com este ou aquele governo, deste ou daquele partido). Infelizmente, grande parte da população brasileira ama ou odeia Brasília (sem, muitas vezes, nunca terem estado por lá) somente porque não gosta deste ou daquele governo, deste ou daquele governante.
O povo comum que construiu a cidade continua morando por lá. Domínio Público.
O povo comum que construiu a cidade continua morando por lá. Domínio Público.
Em minha adolescência, eu sempre precisava dizer, para as pessoas que não eram de Brasília, que nós, o povo residente naquela cidade, não tínhamos culpa deste ou daquele governo terem feito isto ou aquilo (na verdade, Brasília sempre teve, e tem ainda, apesar de todo este desenvolvimento populacional fenomenal, uma classe média numerosíssima com um alto nível de instrução e um padrão razoável de poder aquisitivo que faz com que o senso crítico do brasiliense, tanto em relação à política em geral, quanto com relação a todos os outros temas, seja muito apurado). Ao contrário, nós éramos, muitas vezes, contra o que este ou aquele governo estava fazendo, nesta ou naquela direção. Além disto, a maioria esmagadora da população que mora em Brasília não está diretamente ligada às atividades da política em sentido estrito (muitos deles são comerciantes, professores, médicos ou simples funcionários públicos que não têm responsabilidades diretas, nem indiretas, sobre os destinos das decisões governamentais do governo federal, dos deputados e senadores ou juízes).
O povo católico de Brasília. Domínio público
É claro que, geralmente, as pessoas amam a cidade onde nasceram e odeiam as cidades onde tiveram experiências de vida desagradáveis. Mas é sempre bom aprender a separar as experiências de vida de cada um de nós, dos cenários urbanos onde elas se dão. Muitas vezes, as cidades não têm a menor culpa por esta ou por aquela experiência ruim que tivemos. Pessoalmente tive e tenho ainda uma relação complexa com a cidade onde fui criado e onde passei toda minha adolescência. Por exemplo, eu odiava muito intensamente a ditadura militar e os milicos que tomavam conta de todos os setores da sociedade brasiliense (até mesmo dentro de minha família, já que meu avô era coronel).
O povo se protege do sol do verão. Domínio público
Portanto, minha infância e minha adolescência foram muito reprimidas não só por causa da ditadura política existente naquele momento histórico, mas também por causa do militarismo existente até mesmo dentro das escolas públicas onde estudei. Apesar disto, nunca deixei de amar a arquitetura e a arte modernista do grande mestre que é o Oscar Niemeyer (além disso, porque em Brasília, é possível ver as artes plásticas modernistas intima e organicamente associadas às construções arquitetônicas), um intelectual comunista (amava tanto que esta era a profissão para a qual me preparei durante toda minha vida estudantil, até mudar de opção, no último ano do colegial e escolher fazer sociologia, como fiz; mas até hoje, como professor de história e historiador, ainda dou muita importância à arquitetura, no mínimo como patrimônio histórico).
Oscar Niemeyer. Domínio público
A cidade de Brasília, na concepção urbanística do Lúcio Costa (que não era comunista, mas um intelectual progressista e humanista da escola do Le Corbusier), foi elaborada para ter um padrão mais sócio-economicamente igualitário (ou seja, no mínimo, menos desigual) e uma convivência social mais humana entre as diversas classes e categorias sociais (isto está expresso claramente na justificativa discursiva do plano urbanístico do Lúcio Costa). Pode-se criticar Brasília pelas mais diversas razões, mas ninguém pode anular este simples fato de que esta foi uma cidade criada não só para abrigar a capital do país, mas também como uma forma de arte em si mesma (e arte humanista entendida num ponto de vista generoso, mas também tipicamente modernista, objetivando causar impacto sim, como a Semana de Arte Moderna causou na história brasileira em 1922). Ora foi esta própria concepção urbanística do Lúcio Costa, para além das obras arquitetônicas específicas existentes em seu interior, que foi tombada pela Unesco, como patrimônio histórico da humanidade (o que quer dizer que esta concepção urbanística e os monumentos arquitetônicos de Brasília precisam ser preservados e não se pode alterá-los em sua estrutura e em seus principais detalhes descritos no plano original do Lúcio Costa em meados dos anos 1950).
Estação do Metrô na Asa Sul. Julho de 2008 Foto: Alberto Nasiasene
Pouca gente sabe que o arquiteto e urbanista Lúcio Costa (que nasceu em 1902 e morreu em 1998) foi o mestre do arquiteto e urbanista Oscar Niemeyer (que nasceu em 1908 e ainda está vivo, completando cem anos no próximo mês de dezembro). Ou seja, o Lúcio Costa, junto com o arquiteto russo naturalizado brasileiro, radicado em São Paulo,Gregori Warchavchik, foi quem começou, no início do século XX, a criar os primeiros fundamentos do que viria a ser aarquitetura modernista brasileira (arquitetura esta que ainda hoje é muito conceituada mundialmente). Em 1932, Lúcio Costa foi o diretor da Escola Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro (foi por este fato que ele conheceu Niemeyer). Quando ele foi o diretor da Escola de Belas Artes é que conseguiu implantar o curso de arquitetura moderna nesta instituição (o Niemeyer foi um dos alunos deste curso). O Brasil, na época, ainda não possuía universidades e a arquitetura era parte da Escola de Belas Artes (por isto mesmo é que a arquitetura modernista de um Niemeyer situa-se muito mais entre as artes plásticas do que entre as ciências exatas).
Ao lado do Teatro Nacional. Julho de 2008 (que está sendo restaurado). Foto: Loretta Nasiasene
De uma maneira ou de outra, não posso deixar de reconhecer que fui muito influenciado sim pela arte modernista de Niemeyer e Lúcio Costa e é por esta e por outras razões que digo que amo Brasília sim e jamais poderei deixar de estar vinculado existencialmente a esta cidade (embora atualmente more em Jaguariúna, estado de São Paulo). Meus pais e irmãos mais novos ainda moram por lá. Além disso, tenho alguns tios e muitos primos que também moram lá (o irmão mais velho de meu pai, meu tio e padrinho, foi enterrado em Brasília, no mês de outubro passado). Isto quer dizer que minha relação pessoal com Brasília é uma relação muito mais existencial do que uma relação política. Além disso, não tenho nenhum motivo para me envergonhar em ter sido criado em Brasília e querer apagar esta memória de dentro de mim (e isto não quer dizer que eu não ame Campinas e o estado de São Paulo onde moro hoje).
Ao lado do Teatro Nacional. Julho de 2008 (filmando a rodoviária central).
Foto: Loretta Nasiasene
È por isto que, entre outras razões, vivo escrevendo meus ensaios fotográficos sobre Brasília. Como sou professor de história, não posso deixar de estudar esta cidade em sua dimensão urbana e em sua condição de patrimônio histórico (Brasília foi tombada pela Unesco como patrimônio histórico da humanidade, realidade que ela compartilha, por exemplo, com Olinda e Ouro Preto), mas também em sua dimensão cotidiana a partir da perspectiva das pessoas comuns. Além disso, Brasília, é claro, é só mais uma forma diferente de ser brasileira, como qualquer outra cidade, porque ela só pode ser plenamente entendia no contexto geral da sociedade e da história brasileira. Portanto, é um contra-senso esperar que lá o povo e a sociedade brasileira, com todas as suas contradições imanentes, não estejam encarnados em todas as suas dimensões urbanas. É claro que a maneira de o povo e a sociedade brasileiros estarem inseridos naquele cenário urbano é uma maneira bem própria da plástica urbana brasiliense e é precisamente esta plástica urbana o que me interessa fotografar em Brasília.
Alberto Nasiasene
Jaguariúna, 31 de janeiro de 2007
No Museu Nacional Honestino Guimarães. Julho de 2008 Foto: Loretta Nasiasene
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