top of page

Capt. 1 - Escravos e carcamanos na Comarca do Amparo


Minhas relações pessoais com Gilberto Freyre, desde o final de minha adolescência, na década de 1970, quando entrei em contato direto com sua obra, nunca foram boas, é claro. Por diversos motivos. Entre eles, porque ele, que ainda estava vivo e costumava aparecer na mídia, apoiava a ditadura militar que eu tanto detestava e porque ele demonstrava ser, em sua obra, um reacionário contra tudo o que havia de mais progressista em matéria de transformação de uma sociedade machista (patriarcalista, como ele gostava de dizer com saudosismo de engenho), racista (que ele tentava ocultar numa falsa teorização de "democracia" racial que eu, adolescente ainda, já era plenamente capaz de desmistificar cotidianamente) e sócio-econômica e politicamente conservadora. Além disso, ele demonstrava sua hostilidade visceral contra o marxismo enquanto metodologia de análise da realidade brasileira e eu me sentia muito mais atraído, por mil razões, pelo enfoque marxista da realidade (inclusive por conta do que havia de mais progressista na própria cultura brasileira).

No final de minha adolescência, eu mal ouvira falar de Florestan Fernandes (é claro, ele havia sido cassado e banido da vida intelectual brasileira; ao contrário de Gilberto Freyre tão incensado pela imprensa da época). Se tivesse a oportunidade de ter conhecido mais profundamente a obra de Florestan naqueles tempos (que é tão vasta e tão complexa), creio que seria um intelectual muito melhor preparado do que sou hoje, porque teria interiorizado, desde cedo, dentro de mim, um outro enfoque completamente distinto do de Gilberto Freyre face às mesmas questões que ele tratou em seu livro Casa Grande e Senzala. O filho da portuguesa empregada doméstica e analfabeta, o rei da sociologia brasileira, foi não só o professor do tal príncipe da sociologia (FHC), mas, incomparavelmente, deixou uma obra escrita, complexa e grandiosa, que permanecerá como clássica, o que não se pode dizer do tal discípulo.

Aproximei-me mais profundamente da obra de Gilberto Freyre por causa da pesquisa que fiz sobre a obra de José Lins do Rego. A despeito de José Lins ter tido uma ligação tão próxima a Gilberto Freyre (de amizade e influência), eu já via na obra do escritor paraibano, uma visão muito mais progressista da realidade do que a que havia na obra do autor pernambucano de Apipucos. Tanto que defendi, em minha análise premiada sobre a obra de José Lins do Rego, na Maratona Literária de 1979, que José Lins tinha uma visão de mundo socialista e, em alguns traços simbólicos (conscientes ou não) de sua obra era possível ver uma alusão futura a uma Revolução socialista no Brasil (foi isto que tentei defender no Rio de Janeiro, na Academia Brasileira de Letras presidida pelo Sr. Austresésilo de Athaíde e, por isto mesmo, fui duramente reprimido, como já relatei anteriormente). Mas eu nem sabia que ele realmente foi filiado à esquerda democrática que deu origem ao PSB, em 1945 (isto, por incrível que possa parecer agora, eu só descobriria depois, mas já percebia em sua obra literária os indícios disto que queriam me impedir de descobrir, por causa da censura). É difícil um jovem entender isto hoje, mas quero lembrar que fui criado em meio a uma ditadura militar truculenta, em Brasília, sob forte censura, medos e omissões sobre a história. Caio Prado Jr e Celso Furtando eu só iria conhecer direito ao entrar na Universidade, mas, para mim, são até hoje leituras fundamentais e desbravadoras que permanecerão, pelos anos futuros, como clássicos fundadores de um entendimento sobre nós mesmos a partir de nós mesmos (que é o oposto da mentalidade colonizada que ainda prevalece em grandes parcelas da velha classe média brasileira e em setores da intelectualidade que foram cooptados pela visão de mundo, já decadente, graças a Deus, do neoliberalismo nos anos 1990). Foi com eles que aprendi a história econômica do Brasil em sua essência, desde o período colonial e eles me deram, como a várias gerações de jovens universitários (antes da onda neo-liberal e pós-moderna que avassalou a economia e a sociedade brasileira nos anos 1990) uma visão generosa de potencialidades futuras para nosso país que veio somar com a visão que aprendi com Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Cândido e com os artistas da Semana de 1922 (junto com a influência direta que recebi do Cinema Novo, da canção de protesto, do tropicalismo e do Teatro político dos anos 1960 e 1970). Surgiram novos autores e novos enfoques sobre estas velhas problemáticas, mas nada que tenha reinventado a roda e tenha superado definitivamente o pensamento deles todos (como se o conteúdo e a vivência de suas obras agora fossem descartáveis, como nas lanchonetes do McDonalds; ícone da nova geração "globalizada" dos anos 1990). Ao contrário, depois da devastação neoliberal dos anos 1990, o pensamento deles está mais vivo e atual do que nunca. Tudo o que podemos contribuir e acrescentar a este caminho já andando anteriormente só é o prosseguimento da mesma luta que eles já empreenderam décadas antes de cada um de nós, neste século XXI. Minha decepção ética face à multidão de mestres e doutores que o Brasil gerou nestes anos 1990 e primeira década do século XXI ( o Brasil forma, por ano, 30 000 mestres e 10 000 doutores) é ver que a maioria esmagadora deles não está à altura da grandeza intelectual e ética dos velhos mestres. Isto me fez ficar com raiva, como um João Batista, contra esta cambada de oportunistas hipócritas e medíocres titulados; mas nada que não possa ser superado, se por acaso, eles saírem de seus castelos, ou estufas acadêmicas e começarem a amassar barro, nas favelas, andando nos mercados populares e nos grotões país afora, entrando também nas florestas, por exemplo, para defendê-las; juntando-se à massa do Zé Povinho, como fez um Darcy Ribeiro (e como Villa Lobos e Mário de Andrade, tinham feito antes). Quanto ao mestre que foi para mim Darcy Ribeiro, não posso deixar de fazer lembrar que ele foi marginalizado por este mundinho acadêmico da antropologia medíocre que existe no Brasil (filhote da ditadura militar, porque era o tipo de antropologia culturalista, ou "simbolista", como me dizia a tal professora bruta que tive, que a ditadura gostava). Eu nem podia citar o nome dele em minhas aulas de introdução à antropologia, quando comecei meu curso na UFPB, em 1980, porque a tal antropóloga, especializada em bovinos mineiros, que foi minha professora tinha chiliques autoritários e gostava de me cortar a palavra ou responder muito mal educadamente aos meus questionamentos (porque não tinha competência teórica para se contrapor a um Darcy Ribeiro). Portanto, tudo o que aprendi com ele (o maior antropólogo que o Brasil teve no século XX, um anti-Gilberto Freyre à altura), aprendi fora das salas de aulas da Universidade Federal da Paraíba (nos livros que ele escreveu, que valem mais do que todas aquelas aulas medíocres de antropologia que tive na UFPB; se os povos indígenas brasileiros dependessem deste tipo de antropólogos acadêmicos que tive, estariam todos já extintos). Fui com meus alunos de periferia social brasileira em Campinas assistir ao filme Xingu, neste mês de abril passado, em homenagem aos irmãos Villas Boas e à fundação do Parque do Xingu (e o Darcy teve um papel fundamental neste evento épico). Não por acaso fico emocionado com a trajetória destes bandeirantes, às avessas, paulistas que foram os irmãos Villas Boas e me lembro que, no início dos anos 1990, ao ler tão intensamente o livro Os Índios e a Civilização, de Darcy Ribeiro, voltando das aulas teológicas em Santo André, na estação de trem e no trem, eu prometi a mim mesmo e a Deus que passaria o resto de minha vida a defender a causa indígena). O futuro que estou ajudando a construir irá restaurar e redimensionar, na perspectiva do povo e da natureza, muitas das velhas questões que vivemos nestes mais de 500 anos de história. É o que espero ativamente, porque estou colocando a mão no arado para construí-lo. A maioria de meus alunos são afrodescendentes e muitos, entre eles, têm avós e bisavós índios, de modo que, de alguma maneira, junto com eles, estamos já reconstruindo esta história de um modo diferente. Alberto Nasiasene Jaguariúna, 1 de maio de 2012

A Gestação da Estrutura Econômica Subjacente à Nossa Problemática

(A discussão historiográfica)


Em primeiro lugar, precisamos nos situar, antes de abordarmos a questão específica a que nos propomos analisar nesta monografia, no contexto geral do problema da economia agrária exportadora desenvolvida no Brasil pelos portugueses. A Europa é, ao mesmo tempo, a origem da classe dominante que irá explorar esta agricultura e, inicialmente, o principal mercado comprador de seus produtos.

A onipresença do escravo na sociedade brasileira

1. A herança da colonização portuguesa no Brasil: a economia agrário-exportadora de produtos tropicais baseada no trabalho escravo


Como antropólogo, a análise efetuada por Gilberto Freyre da história colonial brasileira difere da historiografia tradicional não só por uma questão de grau mas por sua concepção teórico-metodológica íntima que é qualitativamente diferente da historiografia tradicionalista e positivista. Isto é, ele parte do sujeito histórico coletivo, o “elemento” português colonizador, como agente formador de uma nova sociedade nos trópicos que tenta amalgamar num todo homogêneo os povos indígenas por ele submetidos e os africanos trazidos como escravos. Portanto, procurando apreender a natureza sócio-econômica, política e cultural da colonização portuguesa o que ele quer é captar a especificidade da colonização portuguesa no Brasil face à espanhola no resto da América Latina e à inglesa na América do Norte. Para isso, ele lança mão de um amplo espectro investigativo que vai desde a análise dos portugueses (p.5) que vieram colonizar o Brasil até a análise do clima e o contexto ecológico encontrados no país por eles (p. 16). A ênfase dada à análise está, pois, na dimensão da estrutura sócio-econômica que se foi formando no Brasil muito mais do que nos aspectos superficiais das conjunturas políticas com os seus “grandes homens” e datas cronologicamente organizadas.


O tema de Casa Grande & Senzala é, para Darcy Ribeiro[1], o estudo do complexo sócio-cultural da zona da mata nordestina que se constituiu com base na monocultura latifundiária da cana-de-açúcar; na força de trabalho escrava; na religiosidade católica impregnada de crenças indígenas e de práticas africanas; no domínio patriarcal do senhor de engenho ambiguamente monogâmico em sua reclusão doméstica e poligâmico no convívio com as escravas negras e mulatas. Segundo Freyre, este complexo sócio-cultural do litoral nordestino, contudo, possui em si as características essenciais da colonização portuguesa em todo o Brasil, embora só tenha se manifestado em sua plenitude histórica na zona da mata nordestina.


Ou seja, embora o objeto de estudo de Casa Grande & Senzala seja o litoral nordestino durante o período colonial, o que Gilberto Freyre quer apreender é a natureza essencial da colonização portuguesa no Brasil. Por isso ele não procurou fazer da obra um libelo regionalista. Ao contrário, tal como na afirmativa de Leon Tolstoi de que só se atinge a universalidade quando se consegue bem descrever a aldeia em que se nasceu, Freyre torna o seu texto uma referência mundial (haja vista as inúmeras traduções desta obra em diversas línguas e nos mais variados países).

Mucamas


Segundo Darcy Ribeiro[2], ao contrário da maioria dos cientistas e ensaístas brasileiros (que, segundo ele, são meros ilustradores de teses alheias), Freyre (como herdeiro direto de Joaquim Nabuco, de Sílvio Romero, de Euclides da Cunha e Nina Rodrigues) contribui com o esforço coletivo de construção do autoconhecimento nacional numa perspectiva intelectual não colonizada. Este é um dos aspectos da originalidade de Gilberto Freyre e o que faz de Casa Grande & Senzala[3] um clássico em nossa bibliografia sobre a realidade sócio-econômica, política e cultural brasileira.


Entretanto, segundo Darcy Ribeiro, em Casa Grande & Senzala, simplesmente não há método algum que o leitor possa extrair da obra como um enfoque teórico aplicável em qualquer parte porque está baseado no empirismo culturalista que ele aprendeu de Franz Boas (que evitava conscientemente as generalizações teóricas). Esta ausência de generalizações teóricas, todavia, é o que faz da obra etnográfica de Gilberto Freyre uma obra também historiográfica; no sentido de que pretende explicar um contexto humano concreto, único, singular e irrepetível.


Não podemos deixar de assinalar que, além de ser um marco original nos estudos científicos sobre a nossa realidade, o livro Casa Grande & Senzala também possui um valor literário essencial que o distingue do tom empostado, artificioso e árido que até então caracterizava o discurso científico brasileiro. Gilberto Freyre criou um novo estilo de se escrever ciência no Brasil e escrever bem (por isso ele foi tão admirado pelos modernistas).


Ele começa a obra apresentando as características gerais da colonização portuguesa no Brasil e é este texto inicial de Casa Grande & Senzala que iremos abordar em linhas gerais agora.

O símbolo do poder português em suas áreas de influência: o pelourinho. S.a.



Segundo Freyre, os portugueses estavam predispostos para a colonização dos trópicos por causa de seu passado étnico de povo indefinido entre a Europa e a África do Norte, a “Europa reinando mas sem governar; governando antes a África” através do sangue mouro ou negro inserido na população portuguesa e da semelhança climática com o Magreb (Marrocos, Argélia e Tunísia). Além disso, os portugueses foram endurecidos pelo constante estado de guerra com os mouros o que os predispunha à conquista. Afirma ainda nosso autor que os elementos básicos da síntese cultural portuguesa fazem do português em sua vida, sua moral, sua economia, um regime de influências que se alternam, se equilibram ou se hostilizam. Ele diz que tomando em conta tais antagonismos de cultura, a flexibilidade, a indecisão, o equilíbrio ou a desarmonia deles resultantes, é que se pode compreender bem o caráter específico que teve a colonização do Brasil e a formação sui generis da sociedade brasileira; segundo ele, igualmente equilibrada nos seus começos e ainda hoje estruturada sobre antagonismos.


Contudo, a natureza rural da colonização portuguesa no Brasil não foi uma vocação espontânea do português mas uma necessidade imposta pelas circunstâncias encontradas no Brasil. Para Portugal o ideal teria sido ter encontrado aqui uma outra Índia com que pudesse comerciar especiarias ou pedras e metais preciosos.

O hábito de nossas classes dominantes até hoje

(só que chamam de empregados domésticos)


Segundo ele, os portugueses não teriam trazido para o Brasil nem separatismos políticos, como entre os espanhóis, nem divergências religiosas, como os ingleses e franceses. Todavia, o próprio Freyre reconhece que o que mantinha uma solidariedade forte entre os portugueses era o “temor” ao adventício “acatólico”, ou seja, em outras palavras, a intolerância religiosa contra o protestantismo[4] .


O cristianismo católico praticado no Brasil através dos jesuítas, segundo Freyre foi um cristianismo “lírico”, com muitas reminiscências fálicas e animistas das religiões pagãs. Era uma religião de liturgia antes social do que propriamente religiosa. O sistema jesuítico, além de ter servido como articulador social, religioso e cultural, foi o responsável pela parte mística, devocional e festiva do culto católico brasileiro; aspecto este influenciado pela mística muçulmana, como arrisca dizer o nosso autor. Cristianismo festivo, sensual e impregnado da África muçulmana (através da influência árabe).


Este sistema sócio-econômico baseado na monocultura, entretanto, trouxe graves conseqüências para a sociedade brasileira, tais como a deficiência das fontes naturais de nutrição. Segundo ele, por mais esquisito que possa parecer, faltavam na mesa da própria elite colonial legumes frescos, carne de vaca e leite .


Os portugueses no Brasil foram, portanto, os primeiros europeus a criarem um tipo de colonização que consistia não na simples extração de riquezas tropicais (como ouro e prata) mas na criação local de riquezas através da agricultura monocultora latifundiária voltada para a exportação à custa do trabalho escravo. Evidentemente, esta política colonizadora foi diferente da política de extermínio ou segregação seguida por muito tempo no México e Peru pelos espanhóis, segundo Freyre[5].

Gilberto Freyre

Acervo da família


Neste tipo de colonização, afirma Gilberto Freyre ainda, foi a família e não o indivíduo ou o Estado, nem mesmo nenhuma companhia de comércio, o grande agente colonizador, a unidade produtiva, o capital que desbrava o solo, instala as fazendas, compra escravos etc. A família colonial dominante reuniu, sob a base econômica da riqueza agrícola e do trabalho escravo, uma variedade de funções sociais e econômicas; inclusive a do mando político através do oligarquismo e nepotismo que cedo madrugou no Brasil.

A pedagogia cotidiana do trabalho colonial portuguesa (muito "branda" é claro)


Além disso, o escravismo monocultor gerou uma espécie de sadismo de branco e de masoquismo de índia ou negra tanto nas relações sexuais quanto sociais. Também através da submissão do moleque escravo, o leva-pancadas,o menino branco iniciou-se no gosto do sadismo do mando e no autoritarismo político[6]. Segundo Freyre, o que o grosso do “povo brasileiro” ainda goza é a pressão sobre ele de um governo másculo e corajosamente autocrático. A tradição conservadora no Brasil sempre se sustentou no sadismo do mando disfarçado de “princípio de autoridade” ou “defesa da ordem”. Tudo isso tendo sua origem mais remota nas relações sociais e políticas advindas do regime monocultor escravocrata.


Gilberto Freyre afirma que a formação brasileira tem sido um processo de equilíbrio de antagonismos. Antagonismos de toda ordem, mas predominantemente o antagonismo mais geral e mais profundo: o do senhor e o escravo[7]. Todavia, não se tire daí nenhuma conclusão crítica, porque o nosso autor julga que estes antagonismos todos são amortizados e harmonizados pelas condições de confraternização e de mobilidade social peculiares ao Brasil: a miscigenação, a dispersão da herança, a fácil e freqüente mudança de profissão e de residência, o fácil e freqüente acesso a cargos e a elevadas posições políticas e sociais de mestiços e de filhos naturais, o cristianismo lírico à portuguesa, a tolerância moral, a hospitalidade a estrangeiros, a intercomunicação entre as diferentes zonas do país.


É claro que estas conclusões serão questionadas intensamente por toda a bibliografia posterior a Casa Grande & Senzala, especialmente nos anos cinqüenta com a escola sociológica paulista e a forte influência de Florestan Fernandes, mas isto não tira o mérito inicial do livro ter sido, em sua época, um grande avanço face à pesquisa sobre a realidade brasileira. Por isso mesmo ele ainda permanece como um dos maiores clássicos no assunto escritos durante todo o século XX.

O "cristianismo lírico" de que fala Freyre (só nas belas gravuras, é claro)


Por incrível que pareça, por exemplo, apesar da aparência de “tolerância racial”, o anti-semitismo, presente em um livro específico sobre a escravidão, como Casa Grande & Senzala, segundo Julio Chiavenato[8], não surge por acaso. Este é o bode expiatório tradicional que justifica sutilmente os preconceitos que pensam a humanidade em termos de “raças superiores e inferiores”, o que dá a liberdade de Gilberto Freyre usar todo o arsenal racista “inconsciente” sem focalizar diretamente o negro. Este racismo contra os negros é expresso através da ideologia paternalista.


(...) A importância em destacar dessa maneira um autor do porte de Gilberto Freyre - que muitos preferem anular ignorando-o, o que não é o caso pelo valor e presença de sua obra - pode parecer provocação aos mais desavisados. O leitor inteligente perceberá que não se trata disso: Casa Grande & Senzala, independentemente dos juízos críticos e dos reparos que merece, é sem dúvida o livro que mais “fez amigos e influenciou pessoas” falando sobre o negro brasileiro, dentro e fora do Brasil. Este livro formou e, mais que isto, deformou gerações e gerações, de intelectuais inclusive, encaminhando-os para o caminho traiçoeiro do paternalismo. Mais do que ser desmistificado ou condenado, precisa ser desmascarado pelo seu reacionarismo e denunciado pelo seu mal-encoberto racismo, atingindo os judeus para justificar a “inferioridade” dos negros, através de sua paternalização, que explica, aliás, a “necessidade” da escravidão. (Chiavenato, p. 13)

Darcy Ribeiro

A característica distintiva do racismo brasileiro, segundo Darcy Ribeiro[9], portanto, fenômeno não esclarecido por Gilberto Freyre, é que ele não incide sobre a origem racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pele. Isto é, só é considerado negro quem tem a cor da pele extremamente escura (considerado negro “retinto”). O mulato, por ser mestiço de negro com branco, é considerado “pardo”, meio branco. Se a pele é um pouco mais clara do que o mulato, mesmo que as características raciais negras não tenham desaparecido, já se considera integrante do grupo racial “branco”. Isto poderia ser considerado como um fenômeno social positivo se não estivesse escondendo o simples fato de que, a despeito de se considerar os mulatos mais claros como brancos (e, portanto, atribuir a eles os privilégios raciais dos brancos), considera-se não desejável o fato de se ser negro, não se vendo na raça negra nenhuma qualidade social, estética ou racial que precisa ser valorizada e preservada; a não ser certas qualidades sexuais; o que não seria um bem em si para os negros, já que, neste caso, o que se enfatiza é a condição de “objeto sexual” atribuída principalmente à mulata; isto é, “é boa de cama, mas não para se casar”. Isto é, o que se quer, consciente ou inconscientemente, é “embranquecer”[10], deixar de ser negro (porque os padrões raciais, sociais, culturais e estéticos dos brancos é que são considerados, naturalmente, superiores aos dos negros).

O escravo era o braço e o pé do homem livre, como disse Antonil


Nos anos 1980, contudo, nos dizeres de Jocob Gorender[11], Gilberto Freyre volta a triunfar nos meios acadêmicos com a sua tese do caráter patriarcal excepcionalmente “benigno” da escravidão luso-brasileira e da vigência da “democracia racial” em nossa sociedade. Este triunfo, segundo ele, começa a se pronunciar a partir do livro de Kátia de Queirós Mattoso: Ser Escravo no Brasil[12].


O que sucede é que o livro de Kátia Mattoso aborda muito mais a Bahia do que outras regiões brasileiras. Ainda assim, não chega a ser um livro sobre a escravidão na Bahia, porque, ao desprezar o trabalho como aspecto do ser escravo (só dedica ao trabalho uma dúzia de páginas triviais e falsas), não poderia dirigir a atenção para os engenhos de açúcar. O foco do livro é a cidade do Salvador, a tal ponto que lhe seria adequado o título Ser Escravo em Salvador.(...) O que sucede é que Ser Escravo no Brasil não se tornou obra de referência nas teses acadêmicas por motivo de tais méritos, porém pela enfática reafirmação do sistema patriarcal na escravidão brasileira, em termos remontados a Gilberto Freyre (...) (Gorender, 1990. p. 15)


Segundo ele, esta orientação neopatriarcalista encontrou reforço em influências internacionais. Eugene Genovese foi uma destas influências através de seu livro Political Economy of Slavery, de inspiração marxista, e Roll, Jordan Roll, de um marxismo “abrandado”. Há em Genovese, segundo Gorender, uma revalorização do enfoque de Gilberto Freyre, cujo livro Casa Grande & Senzala constitui um arquétipo para este historiador americano.

As mais diversas etnias africanas vieram para o Brasil


Antes desta volta triunfal de Gilberto Freyre, segundo Gorender, havia a refutação do patriarcalismo de Gilberto Freyre feita pela “escola sociológica paulista” de Florestan Fernandes, Octavio Ianni e Fernando Henrique Cardoso, que salientaram o processo social de coisificação que a escravidão impunha ao escravo; processo este implícito na identificação jurídica do escravo à mercadoria e no emprego constante da coerção brutal e desumanizadora contra a sua pessoa.


Nesta linha de argumentação, é fora de dúvida que Fernando Henrique Cardoso ultrapassou os limites fundamentados ao avançar da inegável coisificação social do escravo para a admissão de que, “no geral, era possível obter a ’cosificação’ subjetiva do escravo: [...] sua auto-representação como não-homem” (...) Em trabalho posterior, o sociólogo paulista colocou os escravos das Américas entre as “testemunhas mudas de uma história das Américas”, entre as “testemunhas mudas de uma história para a qual não existem senão como uma espécie de instrumento passivo sobre o qual operam as forças transformadoras da história”. As lutas dos escravos pertenceriam “às páginas dramáticas da história dos que não têm história possível”. (Gorender, 1990. pp. 19 e 20)


Esta geração de historiadores surgida nos anos 80 malhou com avidez o extremismo enunciado por Fernando Henrique. Por sua parte, o escravo foi retratado como ator dotado de vontade própria, capaz de ação autônoma no interior do sistema escravista. Para eles, segundo Gorender, o escravismo seria modelado não só pelos senhores, mas também ou até igualmente pelos escravos. Coisificação tornou-se um nome feio, depreciado.


Mas, se a historiografia brasileira pretensamente nova quis recuperar a subjetividade autônoma do escravo, não o fez para destacar as reações anti-sistêmicas, como os levantes, quilombos, atentados e fugas. Ao contrário, subiram ao primeiro plano as estratégias (sic) cotidianas e suaves de acomodação do escravo ao sistema escravocrata. Recuperou-se a subjetividade do escravo para fazê-lo agente voluntário da reconciliação com a escravidão.O que explica a proliferação do binômio resistência e acomodação. O ato de resistência já conteria embutida a finalidade da acomodação a um regime social bastante flexível para assimilar as reivindicações da sua força de trabalho e de lhe propiciar melhorias tangíveis. (...) (Gorender, 1990, p. 20)


Sílvia Hunold Lara[13], por exemplo, deixou de trabalhar com categorias meramente abstratas, construídas a partir de conceitos preestabelecidos do que seja ser “coisa” ou “pessoa”, ser “cruel” ou “benevolente”, para recuperar o modo como aqueles homens e mulheres construíam e acionavam essas noções concretamente. Segundo ela, estas são noções práticas cujos limites e atributos eram determinados pelas relações cotidianas de resistência e acomodação, de confrontos e solidariedades que eles mantinham entre si.


Por tudo isso ela abandonou a dicotomia entre paternalismo e violência para se aproximar do cotidiano real campista do final do século XVIII e início XIX:


Dissemos que a “violência” não constitui uma característica distintiva da sociedade escravista. Atribuir “violência” ao escravismo não explica coisa alguma, ou melhor, exprime o óbvio, com desvantagem de sermos induzidos a pensar que, nas sociedades contemporâneas, as estratégias de reprodução das relações desiguais não são “violentas”. Mais que um procedimento analítico, explicativo ou meramente descritivo das estratégias de controle social, a utilização do termo “violência” é questão de percepção política. Neste sentido, deve ser denunciada em e por princípio como essência das sociedades desiguais e não apenas como elemento constitutivo de uma dominação de classe específica (...) (Lara, p. 354)


Ao resgatar e problematizar as relações de violência que envolviam os senhores e os escravos, contudo, a autora propôs ir além dos discursos convencionais, que se restringem a uma visão maniqueísta quanto à natureza do cativeiro que ora é tida como “suave” ora como “cruel”.

Procurando ir além de tais convenções, a autora mergulhou nos mecanismos que lhe deram origem; questionando e discutindo as justificativas e limitações que lhes foram impostas. Lançou com isso um novo olhar sobre às relações dos senhores e escravos e passou a investigar a dinâmica e as especificidades de tais relações ( que são relações de luta e resistência) indo além de uma mera descrição simplista da vivência e experiência daqueles homens e mulheres coloniais.

Em vez de definir o caráter abstrato da escravidão na sociedade existente em Campos neste período, a autora vasculha práticas concretas, costumes, lutas, resistências, acomodações e solidariedades existentes no cotidiano daqueles homens reais. Por isso mesmo, segundo ela, o castigo físico dos escravos fazia parte do “governo econômico” dos senhores no exercício de sua dominação. Era um instrumento de controle e disciplina da massa escrava, preventivo de rebeldias. Ou seja, não se tratava de qualquer castigo, mas sim de um castigo físico “moderado”, medido, “justo”, corretivo, “educativo” e “exemplar”.


Sílvia afirma que os estudiosos da realidade colonial constatam uma rigidez na estrutura social. Contudo, para ela, a observação do cotidiano campista em fins do século XVIII e início do século XIX nos leva a constatar que essas duas categorias , escravos e senhores, não podem ser tomadas como categorias estáticas e cristalizadas, porque eram vivenciadas concretamente de forma bem mais ampla e ambígua do que o que se costuma ver na bibliografia:


Assim, mais que encerrar esses homens e mulheres em categorias rígidas e estáticas, devemos ter em mente que seus “lugares” sociais estavam definidos pelas relações de dominação e exploração que mantinham entre si, nas práticas e confrontos cotidianos, e não apenas por aspectos formais como o título de propriedade ou a identificação aparente de sua condição social. (Lara, p. 347)


A autora não afirma que tenhamos que permanecer empiricamente no nível factual dos casos particulares, sem tentarmos a elaboração de generalizações teóricas a respeito das relações sociais existentes neste período. O que ela afirma é que os conceitos e regras gerais devem ser suficientemente elásticos para abarcar essa dinâmica e esse movimento concreto, cheio de ambigüidades, contradições e nuances entre uma situação e outra:


(...) Neste sentido, se podemos falar em classes sociais, ou na clivagem geral que separava senhores e escravos, é porque estes conteúdos brotam do modo múltiplo e variado com que homens e mulheres coloniais experimentavam e vivenciavam suas condições objetivas de existência e as relações de exploração e dominação que estabeleciam entre si, cotidianamente. (Lara, p. 351)


O desafio final da tese defendida por Sílvia Hunold Lara é a de recuperar os escravos como sujeitos históricos, como agenciadores de suas vidas mesmo nas condições mais adversas da escravidão; não apenas como vítimas passivas; porque quando falamos em “vítimas” evocamos a proteção piedosa, o discurso que tira destes homens e mulheres sua capacidade de criar, de agenciar e ter consciências políticas diferenciadas. Segundo ela, o discurso da vitimização é o discurso da denúncia, mas também a fala do intelectual insensível ao potencial político do outro, do diferente (o discurso do intelectual que fala “em nome deles”, sem ouvir a própria palavra daqueles a quem “representa”).


Segundo Gorender, Sílvia Lara, contudo, ao tentar recuperar os escravos como sujeitos históricos, não só nega a coisificação do escravo, sob o argumento de que isto excluiria sua existência como pessoa, mas também empreende uma tentativa de demonstrar a escravidão de uma forma mais branda do que a escola sociológica paulista da USP.


Quando se fala de coisificação do escravo, não se vai necessariamente aos extremos de F. H. Cardoso. Temos em vista a coisificação social, que não é sinônimo de coisificação subjetiva. A coisificação social se chocava com a pessoa do escravo (pessoa e subjetividade humana). Ferida, humilhada, comprimida, a pessoa do escravo não era anulada (exceto em casos patológicos). A contradição entre ser coisa e ser pessoa constituía a vivência do escravo durante toda a sua existência. Suprimida esta contradição, como o faz Sílvia Lara, a escravidão deixa de ser escravidão. (Gorender, 1990, p. 22 e 23)


Para Gorender, da violência do regime escravista não se pode inferir, necessariamente, que o capitalismo não seja também violento. Este argumento utilizado por Sílvia, segundo ele, é um sofisma tomado de empréstimo da polêmica dos escravocratas contra os abolicionistas. Os escravocratas afirmavam, em sua luta ideológica contra os abolicionistas, que os operários livres das nações capitalistas viviam pior do que os seus escravos.


Estas conclusões históricas de Sílvia a respeito do caráter geral da escravidão no Brasil, afirma, Jacob Gorender, se apóiam em paupérrima evidência empírica, resumida a processos judiciais em Campos de Goitacases, no período de 1750-1808.


Aqui nos deparamos com uma utilização de fontes historiográficas sem as cautelas da crítica interna e externa. Não cabe tomar o processo judicial ao pé da letra e identificar na argumentação atribuída ao escravo a expressão autêntica do seu pensamento. Os escravos eram analfabetos e aqueles pouquíssimos que conseguiam chegar ao pleito na Justiça só poderiam fazê-lo através de intermediários: advogados ou rábulas, escrivães e outros funcionários etc. Os intermediários (nunca citados pela historiadora) não deixariam de expressar-se no contexto da ideologia dominante no meio judicial.Em nome do escravo, não contestariam a legitimidade da escravidão e o direito do senhor de castigar o escravo, desde que o fizesse de maneira moderada “como se castiga um filho livre.” Os requerimentos dos escravos informam sobre a ideologia jurídica, porém não autorizam a tirar conclusões sobre o pensamento dos próprios escravos. (...)


Para Gorender, após definir claramente o que ele entende por violência (pressão ou agressão física), podemos perceber que as formas e graus de violência legítima, ou seja, socialmente aprovada, mudam conforme os contextos históricos. Entretanto, nem por isso a violência deixava de ser reconhecida pelos que a aplicavam e pelos que a sofriam. Segundo ele, em nenhuma sociedade, os seus membros precisam da sofisticação do professor universitário para distinguir os atos voluntários e espontâneos do atos praticados por coação efetiva da violência, ainda que legítima, ou ameaça desta coação. Uma das particularidades da violência no sistema escravista era o direito privado do senhor de julgar o escravo e de submetê-lo a castigos físicos[14]. Além disso, na dominação escravocrata a natureza desta própria dominação estava apoiada não só na violência efetivamente praticada e consumada, mas também na ameaça permanente da violência, na violência latente, não efetivada, porém passível de efetivação a qualquer momento.


Para Michel Foucault:


(...) o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso. (...) (Foucault, 25, 26)


Também para Eduardo Silva[15], assim como a corrente de historiadores que emergiu nos anos 80, já não é possível pensar os escravos como meros instrumentos sobre os quais operam as assim chamadas forças transformadoras da história. Não podemos também pensá-los como um bloco homogêneo, porque as rivalidades africanas, as diferenças de origem étnica, língua e religião não podiam ser apagadas pelo simples fato de que eles compartilhassem um destino comum no Brasil.

O "nefando comércio" teve os dois lados no Atlântico, mas o europeu era o principal intermediário


Segundo Eduardo Silva, os proprietários e a sociedade como um todo foram sempre obrigados a reconhecer um certo espaço de autonomia para os escravos, dentro da ordem escravista. Isto é, a conservação de antigos costumes faz parte desta estratégia. Estas instituições africanas, tais como as coroações de reis de congo, são o fruto de uma negociação política cotidiana por autonomia e reconhecimento social. Nesta micropolítica, o escravo tenta viver a sua cotidianidade, a sua própria história.


Humildade, obediência e fidelidade; sobre este tripé era erguida a vida destes homens, mercadorias muito particulares (porque apesar da condição de mercadoria o escravo também era um ser humano), nos dizeres de Kátia de Queirós Mattoso[16]. Segundo Kátia, no Nordeste, os senhores de engenho buscavam fazer do escravo um servidor, membro da grande família patriarcal. Isto economizaria aos proprietários os custos da vigilância ostensiva, diminuindo os riscos de ver atacados seus bens e suas pessoas. Isto é a dominação ideológica era mais desenvolvida e interiorizada pelos escravos.

A mercadoria humana chegada nos tumbeiros


Para o escravo, as dificuldades com a religião eram menores do que com a língua. O aprendizado do português não se realizava a não ser lentamente. Incapazes de se comunicar em uma única língua comum, porque eles vinham de povos africanos diferentes e línguas diversas, a língua tornou-se não só uma barreira entre africanos e senhores mas entre os próprios africanos. Isto não acontecia com tanta dificuldade no que diz respeito à religião, porque quase todos os africanos juntaram os elementos bantus, iorubás, fons e católicos num sincretismo que gerou o candomblé (na Bahia) e, posteriormente também gerou as mais diversas manifestações de religiões afros-brasileiras (tais como a umbanda). Entretanto, o islamismo também foi uma vertente da religiosidade africana no Brasil, embora estivesse restrito à “elite negra” (era um movimento associado a certas etnias específicas que detinham a posse da escrita árabe) especialmente em terras baianas.


Uma certa dose de tolerância religiosa (exceto em relação aos muçulmanos), portanto, foi uma das estratégias de dominação ideológica que os senhores puderam utilizar sobre os escravos, na medida que ajudava aliviar as tensões imanentes às condições de existência da escravidão.

Embora a vida do escravo não fosse só de punição (ou "correção" como se dizia), não se pode negar sua presença constante, de modo que não foi lá esta vida amena que pretendem alguns.


No contexto do sistema escravista, afirma Mattoso, os castigos corporais serviam para manter a ordem através do exemplo. Mas sua aplicação, segundo ela, não era uma premissa cotidiana na vida do escravo. Havia senhores ou senhoras sádicas, diz Kátia, mas de modo geral, nem o senhor nem o feitor passeiam cotidianamente entre os escravos de chicote na mão para repreender qualquer pecadilho. Os meios utilizados para assegurar a obediência e a humildade são muito mais sutis. Isto é, os senhor procura fazer com que os escravos fiquem ligados a ele por intermédio de laços “afetivos”. O chicote, o tronco, a máscara de ferro ou o pelourinho são o último recurso que se utilizam quando se é incapaz de se manter a disciplina. Para o senhor, escravo adaptado é o negro dócil e servil.


Contudo, apesar do que se tem dito a respeito da grande maioria dos escravos que não participou de levantes, não cometeu atentados, nem fugiu, afirma Gorender, isto não quer dizer que esta imensa maioria aceitasse a escravidão. Para esta imensa maioria a resistência à escravidão se manifestava como resistência ao trabalho. O escravo precisava ser mau trabalhador para não ser bom escravo.


Precisamente porque não podia ser contratual, pois se apoiava na coação, na imposição pela violência, o trabalho escravo exigia o mais alto custo de vigilância - calculado como coeficiente do custo total -, dentre os tipos de trabalho baseados em relações antagônicas de exploração. (...)Aí estava, no cerne do processo cotidiano de trabalho, a subjetividade do escravo em ação. O escravo é o agente subjetivo do processo de trabalho e não um capital fixo, como tem sido classificado correntemente.(...) Nos modos de produção escravistas, o agente subjetivo é o escravo. O que se comporta como capital fixo - escreveu Marx - não é o escravo, enquanto ser concreto, mas o dinheiro aplicado na sua compra. (Gorender, 1990. pp. 36 e 37)


Uma vez que não havia o consenso dos escravos à escravidão, segundo Gorender, nem esta implicava relação contratual, o cativo devia ser, imanentemente, inimigo da escravidão. Por isso mesmo, é que os senhores sentiam tanto medo; medo quase instintivo e inconsciente. Segundo ele, é superabundante a documentação existente nas Américas a respeito do medo que os senhores sentiam dos escravos, estando isto na origem das suspeitas infindáveis de conspiração, feitiçaria, ardis para envenenamento e levantes iminentes. Entretanto, o medo, evidentemente, por si só, nunca foi capaz de obrigar os senhores a abrir mão da exploração do trabalho escravo. Se dependesse somente do medo da classe dominante a escravidão nunca teria acabado.

Era público e notório


Com o café se expandindo após 1850, data da abolição oficial do tráfico negreiro, os proprietários serão obrigados a não desperdiçar a mão-de-obra escrava, muito cara então, e a utilizar a força de trabalho assalariada branca. Estes assalariados brancos irão reivindicar elevações salariais. Contudo o sistema patriarcal do Nordeste vigente desde o período colonial, apesar desta mão-de-obra assalariada presente nas fazendas de café após 1850, será também implantado na lavoura cafeeira. Segundo Kátia[17], o fazendeiro de café passa por ter sido um empreendedor mais ativo e eficiente do que o dono dos canaviais, porque da economia patriarcal já se havia passado a uma economia na qual o escravo deixa de ser um membro da família e passa a trabalhar como verdadeira máquina de produção de dinheiro.

Entretanto, a vida diária numa plantação de café assemelha-se muito à dos engenhos nordestinos. Por exemplo, após o café da manhã, com melaço e milho cozido, a mesma prece matinal, em fila diante da casa-grande precedendo a repartição das turmas.


(...) Meia centena de homens e mulheres, com os largos chapéus típicos dos trabalhadores do café, descobrem-se dizendo: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!”, e o senhor responde: “Para sempre seja louvado, amém.” A turma dos mais velhos de ambos os sexos trabalha perto da casa, enquanto os jovens, de um lado, e as mulheres, do outro, embarcam em carroças chamadas “maxambulas” para os campos mais distantes. Ouve-se ao longe os “quizumbas”, cantos africanos dirigidos pelo mestre cantor. Cada turma é vigiada por dois “condutores”, quase sempre escravos. A merenda das 10 horas é tomada em pratos de madeira ou de estanho: mingau de milho, feijão preto e torresmos recobertos de muita farinha de mandioca. Os caldeirões da carroça são fortemente condimentados com batata-doce, repolho, nabo, pimenta e salsa. Às 13 horas, parada para distribuição de café com bolo de milho; no inverno, um pouco de aguardente, para aquecer. O jantar era às 16 horas. E o trabalho recomeçava até ao pôr-do-sol e somente parava à frase: “vamos largar o serviço!” Mas por vezes o trabalho prosseguia noite adentro, até as 10 ou 11 horas. No inverno é tempo da secagem do café. E ainda até preciso preparar a alimentação do dia seguinte, rachar lenha, cuidar dos animais. Antes de deitar-se, o escravo tomava uma sopa de milho com um pedaço de carne seca e um punhado de farinha de mandioca. (Mattoso, p. 138)


Na aparência, para Kátia, poucas diferenças entre a vida do café e a da cana. Parece que o café exigia uma jornada de trabalho um pouco mais comprida. Mas é provável que as relações senhor-escravo tenham sido mais “cordiais”, segundo Mattoso, no Nordeste do que no centro sul. Segundo ela, porque o escravo do café convive com muitos trabalhadores assalariados brancos. Estes eram mais preparados e trabalhavam melhor a terra. A comparação era favorável ao trabalhador branco, afirma Kátia.


Segundo Kátia, a demanda por escravos africanos não cessa de crescer, mas não será mais a mesma, com a mudança da estrutura do tráfico para adaptar-se às novas necessidades. Com o desenvolvimento das regiões mais afastadas do litoral, o processo de povoamento rouba à costa o monopólio do poder econômico.

Captura de escravos na África. S.a.


Segundo Robert Edgar Conrad[18], alguns historiadores calcularam um total muito elevado de importação de escravos africanos para o Brasil. Caio Prado, por exemplo, escreveu que mesmo antes da maciça importação do século XIX pelo menos cinco ou seis milhões de escravos haviam entrado no Brasil. Renato Mendonça, por outro lado, segundo Robert Conrad, baseando-se em estatísticas alfandegárias, calculou uma importação de 4 830 000 somente até o ano de 1830, mas supôs que um adicional de 2 000 000 deve ter entrado ilegalmente após essa data totalizando 6 830 000. Pedro Calmon fixou o total de 8 000 000 para todo o período do tráfico. Segundo Darcy Ribeiro, o Brasil, “no seu fazimento”, gastou cerca de 12 milhões de negros. Ao fim do período colonial, esta massa populacional de origem negra constituía uma das maiores do mundo.

A mercadoria mais lucrativa da economia colonial era o próprio tráfico de vidas africanas


A interminável necessidade de mais escravos para substituir os mortos, até poucos anos atrás, de acordo com Robert Conrad, era um aspecto do sistema escravista brasileiro que era subestimado ou ignorado por causa da tese difundida por Gilberto Freyre e outros que a escravidão brasileira foi relativamente benevolente. Segundo Robert, se a escravidão brasileira houvesse “reabilitado” e melhorado a situação do negro africano importado, dificilmente haveria a necessidade de importação maciça e constante de negros africanos para o Brasil por mais de três séculos.


Caso o tipo de sistema escravista que imperou no Brasil continuasse a existir o tráfico africano permaneceria indefinivelmente. O historiador do século XIX, Perdigão Malheiro, citado por Robert, fornece as razões que explicam este fenômeno:


1. Porque, em geral, a importação era de homens e mui poucas mulheres; o que se queria principalmente eram braços para o trabalho e não famílias; 2. porque não se promoviam casamentos; a família não existia para os escravos; 3. porque pouco ou nada se cuidava dos filhos; 4. porque as enfermidades, o mau trato, o serviço e trabalho excessivo inutilizavam, esgotavam e matavam dentro em pouco grande número. (Conrad, p. 17)


Enquanto o tráfico internacional permaneceu legal, os africanos que chegavam ao Rio de Janeiro, segundo Conrad, eram levados primeiramente à alfândega, onde eram arrecadados os impostos sobre todos os que tinham mais de três anos. Deste local eles iam para a quarentena, na ilha de Jesus depois de 1810, onde de acordo com a lei eram confinados por pelo menos oito dias e onde eram tratados de suas doenças recebendo comida fresca e uma muda de roupas (estes escravos estavam como que “esqueletos ambulantes” de acordo com testemunhos da época). Desta ilha eles eram enviados às mãos de um dos mercadores de escravos, cujos estabelecimentos comerciais estavam situados na rua do Valongo que terminava no porto. Em 1779, em instrução secreta a seus sucessor, o Marquês de Lavradio, vice-Rei do Brasil, descreve o motivo do estabelecimento do mercado de escravos na rua do Valongo:


Havia nesta cidade o terrível costume de tão logo os negros desembarcassem no porto vindos da costa africana, entravam na cidade através das principais vias públicas, não apenas carregados de inúmeras doenças, mas nus. E porque essa espécie de gente, se não lhe é dada maiores instruções, é como qualquer bruto selvagem, eles faziam tudo o que a natureza sugeria no meio da rua, onde ficavam sentados em algumas tábuas ali colocadas, causando não apenas a pior espécie de mau cheiro nessas ruas e cercanias, mas também oferecendo o espetáculo mais terrível que o olho humano pode testemunhar. Pessoas decentes não se atreviam a ir às janelas; os inexperientes aí conheciam o que não sabiam e não deveriam saber; e tudo isso era permitido sem qualquer restrição, e apenas para render o ganho absurdo que os mercadores de escravos, seus donos, obtinham por trazê-los à noite para os andares térreos ou despensas sob as casas em que viviam. Minha decisão foi a de que quando os escravos fossem desembarcados na alfândega, deveriam ser enviados em botes ao lugar chamado Valongo, que fica em um subúrbio da cidade, separado de todo o contato; e que aí as muitas lojas e armazéns deveriam ser utilizados para alojá-los. (Conrad, pp. 58 e 59)


Nestes alojamentos comerciais da rua do Valongo, os escravos mais velhos se sentavam em bancos alinhados junto às paredes, enquanto os mais novos, mulheres e crianças sentavam-se ou ajoelhavam-se próximos uns aos outros no centro, segundo Robert. Todos eles praticamente nus. Tinham as cabeças raspadas.

Gravura de Rugendas


Citando o testemunho de Henry Chamberlain e Robert Walsh, Robert Conrad[19] afirma que o provável comprador de escravos ia de casa em casa até encontrar escravos apropriados às suas necessidades. Quando um escravo era chamado à frente ele batia o pé, gritava para mostrar a sua capacidade de seus pulmões, corria acima e abaixo no recinto em que estava alojado. Isto é, eram tratados exatamente como num mercado de cavalos, inclusive com o exame de seus dentes, músculos e órgãos sexuais por parte de quem estava querendo comprá-los.


Pouco antes do fim do tráfico africano, o médico e naturalista F.J.T. Meyen, do navio prussiano Princesa Luisa, descreve em seu diário:


Visitamos os Depósitos de Escravos no Rio e encontramos muitas centenas praticamente nus, os cabelos quase todos cortados e parecendo objetos medonhos. Estavam sentados em bancos baixos ou amontoados no chão e sua aparência no fez estremecer. A maioria daqueles que vimos era de crianças e quase todos esses meninos e meninas tinham sido marcados com ferro quente no peito ou em outras partes do corpo. Devido à sujeira dos navios em que haviam sido trazidos e à má qualidade de sua dieta (carne salgada, toucinho e feijão), tinham sido atacados por doenças cutâneas, que a princípio apareciam em pequenas manchas e logo se transformavam em feridas extensas e corrosivas. Devido à fome e miséria, a pele havia perdido sua aparência preta e lustrosa, e assim, com as manchas das erupções esbranquiçadas e cabeças raspadas, com suas fisionomias estúpidas e pasmas, certamente pareciam criaturas que dificilmente alguém gostaria de reconhecer como seu próximo. Para nosso espanto, encontramos no Rio pessoas reputadas pela cultura e humanidade que friamente nos asseguraram que não deveríamos supor que os negros pertenciam à raça humana. De acordo com esses princípios extraordinários os escravos eram (como alardeiam as pessoas no Rio) tratados muito brandamente. Deve-se ter vivido o bastante para estar acostumado à sua miséria e degradação, para compreender tal maneira de falar. (Conrad, p. 61)


Para Robert, o tráfico interno não foi um mero substituto do tráfico escravista africano, mas sua continuação. Pernambuco tornou-se a “Cafrária Brasileira” para as províncias cafeeiras e o Maranhão a “costa d’África”. Em uma petição enviada à Assembléia Geral em 1884, citada por Robert, numa época em que os efeitos politicamente divisórios do tráfico interno de escravos há muito havia sido confirmado afirma que “Era natural este movimento. O trabalhador escravo, representando uma longa tradição nos hábitos dos agricultores brazileiros afigurava-se-lhes o mais seguro, por ser o mais conhecido e o único experimentado nos meios de trabalho; e ainda quando tivessem a comprehensão da utilidade resultante de outro systema, os óbices e dificuldades da agricultura determinarão facilmente a preferência geralmente votada ao trabalho servil.” (pp. 205 e 206)


Testemunhos da época, segundo Robert, até os últimos anos de existência deste tráfico interno, comparavam o comércio interno de escravos ao tráfico transatlântico. Em 1880, época da grande seca no Nordeste e uma grande demanda por escravos nas províncias do centro-sul, o editorial de um jornal de São Paulo dizia:


No Norte o embarque (de escravos) é a reprodução das dolorosas scenas, que outr’ora só se davam nas costas da Africa; no Sul, na capital do Imperio, os actuaes depositos recordam os que se faziam para os africanos, em ponto menor, por não se fazer a importação na mesma escala, mas com as mesmas scenas de lagrimas, a mesma barbaridade da parte de quem os dirige, os mesmos habitos e os mesmos instrumentos de coacção. (Conrad, p. 191)


Mesmo os comboios de escravos, de acordo com Conrad, eram muito semelhantes àqueles outrora vistos na Àfrica: os escravos igualmente acorrentados pelo pescoço para evitar fugas, o mesmo uso do chicote para manter a disciplina e o mesmo descaso pela saúde e vida humana, que lembravam o tráfico africana suprimido. O comportamento e exigência daqueles que compravam escravos asseguravam outras semelhanças. Por exemplo, os plantadores do sul procuravam trabalhadores fortes e sadios para trabalhar em seus campos e não famílias e casais unidos pelo casamento. Por isso a vítima do tráfico interno brasileiro era normalmente vendido sozinho, ou acompanhado no início por alguns companheiros apenas. Eram negados a eles o conforto e a segurança que poderia ter com a partida para uma nova localidade junto com sua mulher e filhos. Estes escravos assim vendidos sem a mínima consideração por sua condição humana sofriam duplamente, por estarem sendo vendidos como coisas-mercadorias e por causa das conseqüências emocionais da desagregação de seus laços afetivos mais caros. Segundo Robert, muitos destes escravos assim deslocados, após à abolição, retornaram ao norte do país, de acordo com um observador francês citado por ele, em busca dos familiares e amigos perdidos.


Havia uma predominância de homens sobre mulheres neste tráfico na proporção de pelo menos 2 por 1 (no tráfico africano, em certas áreas, a proporção chegava a ser de 4 por 1).


Essa preferência por jovens do sexo masculino naturalmente refletiu-se nas estatísticas sobre as vendas de escravos nas áreas receptoras. Robert Slenes descobriu, por exemplo que 85% dos escravos vendidos em Campinas, São Paulo, nas décadas de 1860 e 1870 tinha entre 10 e 39 anos, e Warren Dean revelou que os escravos vendidos no município paulista de Rio Claro eram “em grande parte meninos de 10 a 15 anos de idade”. Essa tendência para transferir os escravos potencialmente mais produtivos resultou, naturalmente, em um predomínio relativo de homens jovens na força de trabalho das províncias importadoras e em um processo de envelhecimento e feminilização entre as populações escravas sobreviventes nas regiões exportadoras. (Conrad, p 193)


Para ser vendido neste mercado de escravos, segundo Mattoso[20] , o negro deveria ser apresentado em seu melhor estado físico, porque ele era uma mercadoria que pode mudar de aparência e cuja saúde é o critério básico em que será avaliado financeiramente. Por isso o escravo será posto à engorda antes de ser vendido. Farão uma aplicação de óleo de palma em todo o seu corpo, escondendo certas doenças de pele, e dando-lhe um certo brilho artificial que aparentasse um certo vigor físico. Muitas vezes, os dentes também eram escovados com certas raízes adstringentes para que tivessem um aspecto bem saudável.


Kátia faz a citação textual de um anúncio publicado em 6 de março de 1854, no Jornal da Bahia:


O doutor José Joaquim Simões, juiz municipal da terceira Vara do cível n’esta cidade da Bahia e seo termo: Faço saber que no dia 14 do corrente março, depois da audiência d’este juizo, no escriptorio della sito a rua direita do Palacio, as dez horas da manham, se hão de arrematar na praça d’este juizo, por quem elles mais der, e maior lanço fizer os bens seguintes: - Francisco nagô, carregador, de cadeira, e do serviço de roça, sem molestia, avaliado em 600$000 rs; - David nagô, do mesmo serviço, sem molestia, avaliado em 600$000 rs; - Bruno nagô, moço do mesmo serviço, sem molestia avaliado em 600$000 rs; - Julio Ussá, do serviço da roça, quebrado das virilhas avaliado em 400$000 rs; - Um burro com grande defeito no pé esquerdo e magro avaliado em 20$000 rs; - Um dicto com defeito no quarto direito e magro, avaliado em 200$000 rs (...) (Mattoso, p. 73)


O preço do escravo é um jogo de muitas variáveis, segundo Mattoso. Ele depende da concorrência, da distância entre o porto de embarque e o ponto de venda, da especulação da conjuntura econômica, da idade, do sexo, saúde, de sua qualificação profissional. A variável da distância entre o tráfico interiorano e os preços cobrados nos portos de desembarque é uma variável muito importante fazendo com que os preços do interior sejam distintos do preço do litoral.


É evidente que nem o sexo, nem a idade bastam para descrever o homem a ser vendido. quanto mais robusto for, quanto menos “defeitos” físicos tiver, tanto mais valorizado será; ao contrário, doente ou raquítico, exigirá que se aproveite uma oportunidade favorável para vendê-lo (...)Nos inventários de heranças que possuímos, dos anos 1805,6 e 1810-11 - para continuar, a título de exemplo, no exame da mesma série - os cativos doentes ou estropiados representam cerca de 15% dos “escravos qualificados”. O preço de venda de qualquer deles varia entre 10 e 50 000 réis, exatamente como o dos infantes e velhos. Trata-se de desembaraçar-se de uma mão-de-obra pouco produtiva e que sobrecarrega os custos de manutenção do ativo-escravo de uma herança. (Mattoso, p. 87)


Segundo Kátia Mattoso, o preço do cativo atinge seu ápice nos anos 1860 e 1870 para logo baixar na década de 80. Esta queda é devida à substituição da mão-de-obra servil pelo trabalho assalariado de origem européia, que começa a chegar nos anos 60 para povoar massivamente os campos de cultivo do café, tornando-se acentuada nos anos 90.


Segundo Robert Conrad[21], o tráfico interno foi em si mesmo uma causa importante de mudanças no sistema escravista brasileiro. O desalojamento de dezenas de milhares de trabalhadores negros e mulatos das províncias do Norte, Nordeste e Sul e das cidades e zonas mais pobres do interior das próprias províncias cafeeiras permitiu um gradual despertar do sentimento antiescravagista em áreas que perderam escravos, ao passo que concentrou o apoio à escravidão naquelas áreas em que eles se haviam estabelecido recentemente. Isto é, segundo ele, ironicamente os procedimentos e atitudes que haviam caracterizado o sistema escravista desde seus primórdios rapidamente começaram a destruir esse sistema uma vez perdida a fonte africana de escravos. Um ingrediente indispensável, a reserva humana africana de trabalhadores escravos, estava faltando depois de 1850 e sem ele a própria escravidão estava debilitada e fadada à rápida extinção.

O mercado de escravos, dentro ou fora.


Notas:

1. RIBEIRO, Darcy. Ensaios insólitos, p. 82.

2. RIBEIRO, Gilberto. Ensaios insólitos, p. 82.

3. FREYRE, Gilberto. Casa grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal.

4. Se considerarmos apenas o ponto de vista da lógica formal, poderemos perceber claramente que estamos diante de uma contradição, já que uma afirmação é anulada por outra. Isto é, mesmo tentando provar que os portugueses não trouxeram separatismos e ódios religiosos para o Brasil, Freyre fala do temor ao adventício “acatólico” (que no caso seria, evidentemente, o protestante, já que os mouros já estavam fora de cena). Ora, o que ele prova é, que neste aspecto, não houve diferença nenhuma entre os portugueses com relação aos espanhóis, franceses e ingleses. Pode ser que no caso dos portugueses não tenha ocorrido guerras civis, por motivações religiosas ou separatistas, na mesma intensidade que entre os outros povos (mas, então, o que teria sido a guerra de “libertação” do domínio mouro sobre Portugal, chamada de “reconquista”? A diferença face aos espanhóis, no caso, foi a de que os portugueses terminaram a “reconquista” primeiro). A inquisição portuguesa pode ter sido menos ativa e truculenta que a Espanhola, mas nem por isso deixou de existir, o que vem anular a pretensa tolerância e harmonia existente entre os portugueses. Por exemplo, segundo o próprio Freyre, em certas épocas coloniais observou-se a prática de ir um frade a bordo de todo navio que chegasse a porto brasileiro, a fim de examinar a consciência, a fé e religião do adventício. Segundo Freyre, o que barrava o imigrante era a heterodoxia, a mancha de herege na alma; isto é, a fé protestante. Do que se fazia questão era a “saúde religiosa”; a sífilis, a bouba, a bexiga, a lepra entraram livremente; mas o “herege” não. E isto porque o nosso autor considera o povo português isento de rancores religiosos como o eram os espanhóis em sua opinião. Portanto, o que podemos perceber é que esta afirmação não está apoiada em evidências empíricas, mas constitui a mesma ideologia das classes dominantes no Brasil; aquela que considera o Brasil, o melhor país do mundo, abençoado por Deus, porque aqui “não haveria” terremotos, furacões, guerras, fomes, racismos etc. (como nos outros países ).

5. Não podemos esquecer, entretanto, que os povos indígenas encontrados pelos portugueses na faixa costeira do Brasil foram praticamente exterminados em poucas décadas; ou por doenças trazidas pelos portugueses ou através de “guerras santas” promovidas contra os chamados “gentios” pelos cristãos portugueses.

6. Segundo Nina Rodrigues, os negros escravos foram habitualmente considerados pela classe dominante, como coisas, o que fez com que não fosse levado em conta os seus sentimentos, as suas aspirações e a sua vontade. Entretanto não podemos pensar que Nina Rodrigues seja simpático à causa negra porque estas conclusões antropológicas são extrapoladas para um racismo geopolítico na afirmativa de que haverá uma oposição futura entre uma nação branca, forte e poderosa de origem teutônica, que estava a se constituir nos estados do sul do país, onde, segundo ele, o clima e a civilização eliminariam a raça negra ou a submeteriam, com os estados do norte, que eram mestiços e associados à mais decidida inércia e indolência. Ele compara esta oposição racial-geopolítica no interior do Brasil, que estava prestes a se formar, com a que já ocorria na América do Norte anglo-saxônica com relação à América Central indígena, segundo ele, a exuberante civilização contra o barbarismo guerrilheiro.

7. O interessante aqui é que ele consegue realizar a proeza de afirmar que houve antagonismos, especialmente entre senhores e escravos, mas não luta de classes; porque estes antagonismos se equilibravam (ou será que se harmonizavam “fraternalmente”?).

8. CHIAVENATO, Julio José. O negro no Brasil: da senzala à guerra do Paraguai.

9. RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro, p.225.

10. A classe dominante brasileira, no período do Império, traçou uma estratégia de “embranquecimento” da população do país através do processo de imigração européia maciça. Isto é, eles queriam não somente substituir a mão-de-obra escrava africana, mas eliminar a “mancha negra” presente racialmente na população brasileira através da importação de um número expressivo de italianos, alemães, espanhóis, portugueses etc. a fim de dar uma outra conformação racial à população brasileira. Esta estratégia desmente, por si só, toda a ideologia da democracia racial brasileira apregoada por Gilberto Freyre (poderíamos até mesmo dizer que teríamos uma ditadura racial muito mais do que democracia racial, já que as demais raças estariam muito mais subjugadas pela raça branca do que “integradas” em pé de igualdade com os brancos; em todos os sentidos, desde o sentido econômico, social e político ao estético; embora tenhamos que admitir que este racismo seja substancialmente diferente do que existe nos Estados Unidos, por exemplo; aqui ele é um racismo mais flexível e sutil, mas isto não o torna “melhor” ou mais “brando”, apenas o torna diferente).

11. GORENDER, Jacob. A escravidão reabilitada

12. MATTOSO, Kátia de Queirós. Ser escravo no Brasil.

13. LARA, Sílvia Hunold. Campos da violência: escravos e senhores na capitania do Rio de Janeiro, 1750-1808.

14. Na sociedade capitalista este direito é monopólio do Estado e não dos capitalistas individuais. Além disso, como analisa Michel Foucault, os castigos físicos foram sendo abolidos gradualmente na legislação repressiva européia: “(...) O sofrimento físico, a dor do corpo, não são mais os elementos constitutivos da pena. (...) A redução do suplício é uma tendência com raízes na grande transformação de 1760-1840, mas que não chegou ao termo. (...) Pois não é mais o corpo, é a alma [o alvo do castigo]. À expiação que tripudia sobre o corpo deve suceder um castigo que atue, profundamente, sobre o coração, o intelecto, a vontade, as disposições. (...)” Foucault, Vigiar e punir, pp. 14, 17 e 18.

15. REIS, José e SILVA, Eduardo. Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil escravista

16. MATTOSO, Kátia Queirós. Op. cit.

17. MATTOSO, Kátia Queirós. Op. cit.

18. CONRAD, Robert Edgar. Tumbeiros; o tráfico de escravos para o Brasil.

19. CONRAD, Robert. Op. cit.

20. MATTOSO, Kátia Queirós. Op. cit.

21.CONRAD, Robert. Op. cit.



Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

Based on a work at www.rotamogiana.com.

Posts Em Destaque
Posts Recentes
Arquivo
Procurar por tags
Siga
  • Facebook Basic Square
  • Twitter Basic Square
  • Google+ Basic Square
bottom of page