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Capt. 2 - Escravos e carcamanos na Comarca do Amparo


Cresci, na década de 1960, em Brasília, ouvindo que o Brasil não era um país "adiantado," como os Estados Unidos, por exemplo, porque era o clima tropical que nos impedia de ser mais "civilizados" (na época não se falava em "primeiro mundo"). Havia outros pretensos motivos alegados, por exemplo, éramos um país católico e latino, enquanto que os americanos e ingleses eram protestantes e anglo-saxônicos (alguns achavam que, se o Brasil tivesse ficado nas mãos dos holandeses protestantes e germânicos, seríamos muito mais "civilizados" do que éramos). Lembro-me que nosso sonho, enquanto crianças que liam Tio Patinhas e Pato Donald (ao contrário das crianças de hoje mais acostumadas com os Mangás japoneses), era que pudéssemos brincar na neve, como víamos os sobrinhos do Pato Donald fazer. Por isto mesmo, como contra-partida, tínhamos vergonha do clima tropical subdesenvolvido (aliás, esta palavra era muito utilizada na época; hoje falam em "economia emergente").

Algumas vezes, tenho falado disto para amigos, aqui em São Paulo, mas eles, por algum fenômeno que não consigo apreender, renegam estas memórias, como se eu estivesse falando algo irreal (mas não me esqueço não que esta era a mentalidade predominante na classe média de meados do século XX; mesmo que esta mentalidade tenha mudado muito, ainda pensam que Miami é o mundo ideal que o Brasil devia imitar - "o que é bom para os Estados Unidos, é bom para o Brasil").

No século XIX, o ideal da classe dominante imperial era Paris (tanto que o Rio de Janeiro foi modelado urbanisticamente à la Paris), ou a Inglaterra (os jardins da moda na época, eram os jardins ingleses). Tanto Sérgio Buarque de Holanda e Gilberto Freyre, na década de 1930, já haviam apontado que esta mentalidade da classe dominante brasileira era um sub-produto do transplante, ou, falando de outro modo, da colonização portuguesa (um país formado de fora para dentro, cuja autoimagem era invertida pelo padrão europeu de ser). Esta mentalidade colonizada não desapareceu ainda em pleno século XXI, mas é chocante ainda que uma criança negra, ao se olhar no espelho cotidianamente, se veja "feia" porque não se adéqua ao padrão europeu de beleza (algumas, de um modo estranho, ao fazerem a representação de sua própria imagem, no papel, se pintam louras de olhos azuis, mesmo que a face seja filha da mãe África). Quando estive em João Pessoa, em 2006, fiquei chocado em ver muitas paraibanas, com cara de índias, louras, como qualquer dondoca do centro-sul do país (acho ridículo isto, especialmente agora, com a tal ditadura da chapinha). Embora o romantismo literário brasileiro tenha sido mais um modismo europeu importado, como outro qualquer, foi o conservador escravista José de Alencar (deputado pelo Partido Conservador e ministro da justiça) que começa a se insurgir contra o padrão linguístico gramatical lusitano (assumindo o padrão linguístico gramatical brasileiro sem nenhum complexo de inferioridade) e a procurar símbolos de nossa nacionalidade brasileira que nada tivessem que ver com a europeidade. Como ele era um defensor ferrenho, como político do Partido Conservador, do "sagrado direito de propriedade" do senhor de escravo, claro que a escravidão africana quase não aparece em seus romances. Por isto mesmo é que ele procurou construir, em sua obra, a imagem de um índio idealizado (no passado colonial, é claro, porque ele não estava lá muito preocupado com os povos indígenas existentes em sua própria época) como símbolo da especificidade brasileira face à civilização europeia do português colonizador. Bem ou mal que tenha sido esta construção simbólica, não podemos deixar de ver ali as primeiras raízes, em meados do século XIX, de uma construção de autoimagem mais positiva do ser brasileiro e o começo de uma descolonização cultural que ainda não completou inteiramente sua trajetória em pleno começo do século XXI.

Durante este mais de um século de lutas por uma "consciência" descolonizada, houve momentos decisivos, tais como a Semana de Arte Moderna de 1922 (mais em alguns artistas do que em outros) e os diversos movimentos nacionalistas dos anos 1930 em diante (em variadas vertentes, como a vertente Regionalista representada na obra de José Lins do Rego, Graciliano Ramos e outros). Paralelamente a estes movimentos, na ciência produzida no Brasil também houve cientistas, nas mais diversas áreas, que ajudaram a dar impulso ao pensar o país com a autonomia que somente nós mesmos podemos ter para encarar os problemas que são especificamente nossos.

Como já afirmei anteriormente, os autores das ciências sociais que venho citando nesta investigação preliminar que fiz para apresentar a pesquisa sobre a transformação da economia escravista em economia capitalista na região onde moro, no final do século XIX, ainda são os grandes clássicos aos quais devemos nos reportar para avançar nossa tarefa específica de pensar o Brasil neste novo século que ainda está em seus começos.

Minha animosidade para com o neoliberalismo que devastou nossa sociedade na década de 1990 está fundamentada nestas raízes mais profundas. Não por acaso, sou contra o espírito recolonizador do capital financeiro vindo do tal "primeiro mundo" como se apresentava no final do século passado, por meio da suposta globalização, panaceia que iria resolver, inevitavelmente, todos os problemas da humanidade (quando o que vimos, ao contrário, foi o agravamentos de velhos problemas que tinham quase que desaparecido; tais como o genocídio e o empobrecimento predatório de antigos países da área de colonização europeia desde que o processo "globalizante" do século XVI havia iniciado).

A história nunca se repetirá do mesmo modo, mas é bom não esquecermos que, um século atrás, o velho liberalismo neocolonial terminou na catástrofe da Primeira Guerra Mundial. Outros atores históricos estão surgindo no cenário mundial e o Brasil é um deles, a despeito da mentalidade recolonizada de parcelas ponderáveis da classe média brasileira frequentadora de shoppings centers.

O café, em São Paulo, trouxe a acumulação de capital que veio desembocar no processo industrializante, mas poderia ser apenas mais um produto colonial primário de exportação como outros no longo período colonial. Hoje é o agronegócio que substitui o papel da monocultura da cana colonial em prol do abastecimento de mercados externos e talvez seja ele o herdeiro econômico modernizado das elites coloniais predadoras (da floresta, dos recursos naturais, do meio ambiente etc.). Eles falam muito que são os produtores dos alimentos que sustentam a mesa do brasileiro, mas está comprovado que é a agricultura familiar e os pequenos fazendeiros não ligados ao agronegócio que o fazem (como no período colonial já era assim, porque, se dependesse da monocultura, o país morreria de fome).

Portanto, como diria o texto bíblico, não há nada de novo sobre a terra. É por isto mesmo que não podemos virar as costas para nosso passado de lutas somente porque "novos paradigmas" globalizantes nos foram impingidos nos anos 1990. Temos uma riqueza histórica a ser preservada de inúmeras maneiras (e isto é, também, uma acumulação primitiva de capital que nos distingue no concerto das nações).


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 5 de maio de 2012




2. A importância econômica do café para o Império

O imperador Pedro II e D. Tereza, acima. Abaixo, a fazenda real com os escravos que haviam sido "libertos" por tráfico ilegal da África (eles eram teoricamente "livres" mas ficavam sob a tutela do imperador)


Comparando a história econômica dos Estados Unidos com a história econômica do Brasil, Celso Furtado[1] se pergunta por que os Estados Unidos se industrializaram no século XIX, emparelhando-se com as nações européias, enquanto o Brasil evoluiu no sentido de se tornar no século XX uma vasta região subdesenvolvida. Segundo ele,


O desenvolvimento dos EUA, a fim do século VXIII e primeira metade do século XIX, constitui um capítulo integrante do desenvolvimento da própria economia européia, sendo em muito menor grau o resultado de medidas internas protecionistas adotadas por essa nação americana. O protecionismo surgiu nos EUA, como sistema geral de política econômica, em etapa já bem avançada do século XIX, quando as bases de sua economia já se haviam consolidado (...) (Furtado, p. 100)

Ele afirma que enquanto no Brasil a classe dominante era o grupo dos grandes agricultores escravistas, nos EUA uma classe de pequenos proprietários agrícolas e um grupo de grandes comerciantes urbanos dominava o país. Entretanto, a experiência técnica acumulada desde a época colonial, segundo ele, a lucidez de alguns dos seus dirigentes que perceberam o verdadeiro sentido do desenvolvimento econômico que se operava com a Revolução Industrial, e a grande acumulação de capitais da fase das guerras napoleônicas não seriam suficientes para explicar as transformações desse país na primeira metade do século XIX; porque por muito tempo ainda a economia americana dependerá da exportação de produtos primários para o seu desenvolvimento.

Escravidão nos EUA. A senzala americana foi diferente da brasileira, mas o escravismo por lá, nem tanto (o frio fazia diferença) Fotos de internet e domínio público


Para Furtado, foi o algodão, portanto, que chegou a representar mais da metade do valor das exportações dos EUA, que constituiu o principal fator dinâmico do desenvolvimento da economia norte-americana na primeira metade do século XIX. Segundo ele, foi como reflexo desse sistema, que se expandia no sul, que se povoou o meio-oeste norte americano, abrindo-se espaço para as grandes correntes de imigração e colonização européias.


Como condição básica para o desenvolvimento da economia brasileira na primeira metade do século XIX, teria que haver a expansão de suas exportações. Segundo Furtado, fomentar a industrialização nessa época, sem o apoio de uma capacidade para importar em expansão, seria tentar o impossível num país totalmente carente de base técnica.


Segundo ele, para superar esta situação de estagnação econômica, o Brasil necessitava de uma reintegração intensiva no comércio internacional. Num país que tinha grande carência de um mercado interno estruturado, de técnicas e capitais que pudessem ser desviados para novas atividades a única alternativa ao desenvolvimento era o comércio internacional. Este desenvolvimento do mercado interno só seria possível quando o organismo econômico alcançasse um determinado grau de complexidade baseado numa relativa autonomia tecnológica. Para contar com o capital estrangeiro, a economia deveria retornar o crescimento com seus próprios meios.

Em meados do século XIX, estava definido a predominância de um produto relativamente novo, cujas características de produção correspondiam àquelas próprias ao sistema produtivo herdado dos tempos coloniais. Este produto era o café, que havia sido introduzido no país desde os começos do século XVIII, sendo cultivado em toda a parte para fins de consumo local. Entretanto, ele só assumirá importância comercial em fins deste século por causa da alta de preços causada pela desorganização do grande produtor da época que era o Haiti, ex-colônia francesa que havia entrado numa turbulência sócio-econômica e política.

Escravos trabalhando em um cafezal no interior de São Paulo

no século XIX. S.d.


De acordo com Chiavenato[2], o café era conhecido no Brasil desde 1727, quando Francisco de Melo Palheta o trouxe de Caiena. O café era originalmente plantado apenas “em fundo de quintais”, como simples planta caseira, durante quase um século. Isto se deu até que chegou uma muda para o Rio de janeiro. Só então começa a grande plantação.


A expansão da cafeicultura no Brasil foi beneficiada pela triplicação do consumo na Europa, a partir do começo do século XVII. De 1720 a 1730 o consumo de café dobrou na Europa e, nos cinco anos de 1730 a 1735, triplicou. E teve já um grande serviço prestado `exportação do açúcar da colônia portuguesa: enquanto se consumia mais café se forçava o uso do açúcar. (...) (Chiavenato, p. 37)


Na primeira década após a independência, o café já contribuía com 18% do valor das exportações do Brasil, assumindo o terceiro lugar; vindo após o açúcar e o algodão. No vinte anos seguintes ele passará para o primeiro lugar, com mais de 40% do valor total das exportações.


Ao transformar-se o café em produto de exportação, o desenvolvimento de sua produção se concentrou na região montanhosa próxima da capital do país. Nas proximidades dessa região, existia abundância de mão-de-obra, em conseqüência da desagregação da economia mineira. Por outro lado, a proximidade do porto permitia solucionar o problema do transporte lançando mão do veículo que existia em abundância: a mula. Dessa forma, a primeira fase da expansão cafeeira se realiza com base num aproveitamento de recursos preexistentes e subutilizados. (...) (Furtado, pp. 113 e 114)



Segundo Furtado[3], a produção cafeeira se assemelha à produção açucareira na utilização intensiva da mão-de-obra escrava, mas apresenta um grau de capitalização muito mais baixo do que esta por estar baseada mais amplamente no fator terra. As necessidades monetárias de tal produção são muito menores porque o equipamento necessário é mais simples e quase sempre de fabricação local.

Os viajantes estrangeiros que vieram a partir de 1808 para o Brasil, num momento em que ainda não havia a existência da fotografia, foram os grandes responsáveis pela existência de imagens de época que retratam a vida cotidiana do país nos tempos da escravidão e também relatam imageticamente como era a Mata Atlântica, por exemplo. Aqui, nesta gravura, vemos uma plantação de café onde hoje é a cidade do Rio de Janeiro. Também podemos ver a relação dos senhores com os escravos.


Comparando o processo de formação da classe dominante açucareira e da cafeeira, diz Furtado, percebemos diferenças fundamentais. Na época de formação da classe dirigente açucareira, as atividades comerciais eram monopólio de grupos situados em Portugal ou na Holanda. Isto é, as fases produtiva e comercial estavam rigorosamente isoladas, carecendo os homens que dirigiam a produção de qualquer perspectiva de conjunto da economia açucareira, porque as decisões fundamentais eram tomadas na fase comercial. Por causa deste isolamento dos homens de engenho face ao processo global da economia açucareira, não foi possível desenvolver-se uma consciência clara de seus próprios interesses econômicos enquanto classe social “para si” e não apenas “em si” mesma.


(...) Com o tempo, foram perdendo sua verdadeira função econômica e as tarefas diretivas passaram a constituir simples rotina executada por feitores e outros empregados. Compreende-se, portanto, que os antigos empresários hajam involuídos numa classe de rentistas ociosos, fechados num pequeno ambiente rural, cuja expressão final será o patriarca bonachão que tanto espaço ocupa nos ensaios dos sociólogos nordestinos do século XX. (...) Explica-se, assim, a facilidade com que os interesses ingleses vieram a dominar tão completamente as atividades comerciais do Nordeste açucareiro. Debilitados os grupos portugueses, criou-se um vazio que foi fácil preencher. (Furtado, p. 115)


Para Furtado, como vemos, a economia cafeeira formou-se em condições distintas. Desde o começo, a sua vantagem em face aos senhores de engenho nordestinos, era a que foi formada por homens com experiência comercial. Os interesses da produção e do comércio estavam intimamente entrelaçados. A nova classe dominante formou-se na luta da “aquisição de terras, recrutamento de mão-de-obra, organização e direção da produção, transporte interno, comercialização nos portos e interferências na política financeira e econômica.”(p. 116)


Fazenda de café Gomeatinga em Santa Branca, interior paulista.

Bico de pena de Tom Maia



Por estarem próximos à capital do país, os novos dirigentes sentiram cedo a enorme importância que podia ter o governo como instrumento de ação econômica e souberam aproveitar esta vantagem com inteligência e pragmatismo. Segundo Furtado, é por causa desta consciência de classe bem nítida que os dirigentes do café se diferenciam de outros grupos dominantes anteriores e contemporâneos.


Portanto, na visão de Celso Furtado, ao começar o terceiro quartel do século XIX, os termos do problema econômico brasileiro se haviam modificado: surgiu um produto que permitiu ao país se reintegrar ao processo econômico do comércio mundial, com condições de se autofinanciar em sua extraordinária expansão subseqüente. Entretanto, o problema crucial da mão-de-obra ainda estava por resolver-se.

Segundo Emília Viotti da Costa[4], é impossível datar exatamente o início da produção cafeeira nas províncias que se tornarão os principais centros exportadores desse produto durante todo o Segundo Império. Nessas regiões, o café encontrará seu habitat ideal, mas o resultado das tentativas que se fazem nos arredores do Rio de Janeiro e nas regiões paulistas, onde o agricultor ensaia o plantio de café ao lado do açúcar e do algodão, só se tornará significativa pouco tempo antes da Independência.

A substituição das antigas culturas pelo café era observada também na região “Oeste”. Na região de Campinas, por exemplo, em menos de vinte anos, plantações de cana e gêneros alimentícios, que haviam constituído a grande riqueza do passado, tinham sido substituídas pelos cafezais. Segundo ela, em 1860, esta região já rivalizava com Bananal, o maior centro produtor de café. A cultura da cana e o fabrico da aguardente, entretanto, não haviam desaparecido, continuando a ser explorados com vantagem na região de Campinas, mesmo após o advento da lavoura cafeeira.


A partir de então, segundo Emília, Campinas se firmara como importante centro comercial de comarcas distantes, quer da província de São Paulo, quer de Minas Gerais. Estas lhe enviaram seus produtos: algodão, toicinho, feijão, queijo que, daí, eram redistribuídos.


Segundo Viotti, Limeira, Rio Claro, Mogi-Mirim e Jundiaí, embora cultivassem café, eram ainda predominantemente açucareiras, enquanto Itu, Capivari e Porto Feliz o eram de maneira quase exclusiva. O café migrou para áreas mais jovens, à procura de terras virgens. Nas regiões mineiras , o café foi plantado desde o início do século.


Famílias das antigas zonas de mineração povoaram os distritos novos das regiões fluminense e paulista dedicando-se à lavoura do café. A construção de estradas de ferro possibilitava a expansão maior em direção ao interior. Com o café vinha o escravo. Evidentemente, o escravo fora, desde os primórdios da colônia, a mão-de-obra preferida. Viotti diz que em São Paulo, nunca chegara a existir um número de escravos comparável ao das regiões Nordeste ou da zona de mineração. O negro existia, mas em pequeno número. Foi só com o desenvolvimento da produção açucareira no século XVIII e principalmente na primeira metade do século XIX que houve o aumento da população escrava.


Ao iniciar-se a expansão cafeeira, o excedente de mão-de-obra deixado pela economia aurífera em decadência irá suplementar as necessidades da lavoura cafeeira no Vale do Paraíba. Segundo Emília, certamente não ocorreria àqueles fazendeiros, tradicionalmente habituados à solução escravista, buscar outras fórmulas numa época em que o abastecimento de escravos continuava sem obstáculos. Desde os tempos coloniais gerações e gerações haviam-se utilizado do negro. Toda uma mentalidade senhorial e escravista, portanto, se forjara durante os séculos de economia colonial. Neste contexto, o recurso ao trabalho livre não parecia necessário quando o escravo provara até então sua eficácia. Nenhum motivo parecia existir para que se rompesse essa tradição.


Senzala da Fazenda Boa Vista. Bico de pena de Tom Maia


A predominância avassaladora do trabalho escravo, entretanto, não excluía o emprego, em alguns casos, do trabalho livre. Segundo Viotti da Costa, os feitores e os carreiros eram, freqüentemente, homens livres, às vezes negros, antigos escravos alforriados. Mas era principalmente nos serviços mais perigosos, em que os fazendeiros temiam arriscar os seus escravos, que o trabalhador livre era empregado. Empreitava-se a derrubada e a roçada.


De acordo com ela, em algumas regiões, o trabalho livre persistiu, pois, sob a forma de meação (parceria) ou arrendamento, dedicando-se ao cultivo de gêneros de primeira necessidade. A situação do trabalhador livre, entretanto, não deveria ser muito melhor do que a do escravo: sem propriedade, recebendo salários ínfimos, produzindo pouco, podia ser mandado embora a qualquer hora, não tendo para onde ir. A facilidade de obter mão-de-obra escrava reduzia as possibilidades do trabalhador livre que não tinha a quem alugar a sua força de trabalho.

Segundo nossa autora, em 1843, os armadores negreiros pagavam aos capitães de navio um preço médio de 140$000 por negro desembarcado, vendendo-os mais tarde por quinhentos, seiscentos e até setecentos mil réis cada um. A perseguição aos negreiros não conseguira, até 1845, reprimir o tráfico. Entretanto, resultara num antagonismo crescente contra a Inglaterra e esta questão foi habilmente explorada pelos interessados na manutenção do comércio de escravos e se transformou numa questão de honra nacional.


De acordo com Emília Viotti da Costa, a hostilidade contra a Inglaterra tinha, aliás, origens mais remotas e causas mais profundas. O predomínio do comércio inglês, a invasão do mercado pelos seus produtos, defendidos desde 1810 por cláusulas excepcionais, reiteradas posteriormente em 1826, tinham despertado a animosidade da população local que via nessa situação a causa de todos os males, dando origem a uma xenofobia que extravasa às vezes nas revoltas do período regencial.


Essa situação agravou-se a partir do momento em que o Governo inglês votou a Bill Aberdeen, segundo Emília Viotti. A pressão inglesa fizera-se sentir nos anos anteriores rude, mas ineficaz. Essa mudança de atitude do governo brasileiro contribuiu para tornar mais tensas as relações entre os dois países.


Foi nessas circunstâncias que a Inglaterra aprovou o Bill Aberdeen, de repercussões tão desfavoráveis junto à opinião brasileira. Por esse ato aprovado pelo Parlamento inglês, em 8 de agosto de 1845, foi declarado lícito o apresamento de qualquer embarcação empregada no tráfico. Os infratores ficavam sujeitos a julgamento por pirataria perante os tribunais do Almirantado.


A lei de 1831 pretendera sufocar o tráfico, mas a realidade a desmentira. Apesar de todos os protestos e repressões por parte do governo britânico, ela permanecera letra morta. O mesmo não sucederá com a de 1850. A despeito do contrabando que continuou a ser feito durante algum tempo, acabou por ser respeitada. Isso exigiu, entretanto, alguns anos de fiscalização e repressão. Ela apareceu à maioria da nação como uma conquista da opinião pública nacional. O fato é que a polícia inglesa estava vigilante, segundo a nossa autora.


Emília Viotti da Costa se pergunta: em vinte anos, a sociedade brasileira evoluíra? A administração fora fortalecida? Os meios de comunicação haviam melhorado, os navios mais rápidos, a vapor, começavam a ser utilizados na repressão? A opinião pública despertara da inconsciência do tráfico ou teria sido ainda uma vez a repressão inglesa o fator decisivo na cessação definitiva do comércio de africanos? Segundo ela, ao que parece, a lei da repressão ao tráfico de 1850 encontrou apoio em certos círculos agrários ligados ao governo: senhores que se haviam endividado no compra de escravos. Entretanto, apesar das afirmativas várias vezes reiteradas de que todos no Brasil eram contra o tráfico, a impressão que se tem, segundo Viotti, é de que a lei de 1850 foi votada principalmente por pressão internacional.


Apesar de tudo, a lei de 1850 teve resultados mais felizes do que a de 1831. O tráfico acabou por cessar definitivamente. Mas, de acordo com Emília, os efeitos dessa interrupção, entretanto, só se farão sentir dez anos depois. Segundo Emília Viotti da Costa, foi depois da cessação do tráfico que se acentuou a alta de preços pela dificuldade maior na abstenção de escravos, principalmente a partir do momento em que cessou definitivamente o contrabando e em que os fazendeiros se viram obrigados a apelar para o mercado nordestino, que passou a exportar mão-de-obra para as zonas cafeeiras, por altos preços. Em vinte anos , de 1855 a 1875, o preço de escravo quase triplicou, passando de um conto da dois e quinhentos e às vezes mais, o que tornou cada vez mais onerosa a aquisição desses braços para a lavoura e cada vez menos rendoso o seu emprego.

Fazendeiro de café em foto posada no estúdio do fotógrafo,

com escravos de sua propriedade. S.a.


Até esta época tinham predominado - nas fazendas de café os negros boçais (os africanos), que o tráfico despejava ano após ano nos mercados consumidores. A preferência dos fazendeiros voltava-se para eles. Eram considerados superiores aos “ladinos” (escravos nascidos no Brasil, tidos como dados a insubordinações e atos de rebeldia). Cessado o tráfico e o contrabando, não havia outro jeito senão a aquisição destes. Daí por diante, recorreram os fazendeiros ao Nordeste para se abastecer de escravos. Os preços tornaram-se cada vez mais altos. A ampliação dos cafezais aguçava o problema de braços para a lavoura e estava a exigir novas soluções.

Assim como Celso Furtado, Caio Prado Jr.[5] afirma que o considerável desenvolvimento da lavoura cafeeira, contará como primeiro fator no ajustamento da vida econômica do Brasil abalada desde a transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro e a independência do país face a Portugal. Isto permite não somente uma elevação do padrão de vida da classe dominante e setores médios da sociedade imperial, mas também o aparelhamento técnico do país, inteiramente dependente, aliás, como sempre, do estrangeiro. Para Prado Júnior, é nesta época que o Brasil tomará conhecimento pela primeira vez do que era o progresso moderno e uma certa riqueza e bem-estar material. Este é o momento do aparecimento das primeiras estradas de ferro, mecanização de alguns dos empreendimentos rurais e instalação das primeiras manufaturas.


Entretanto, para Caio Prado, não será este o único efeito da lavoura cafeeira. Ela virá reforçar a estrutura tradicional da economia brasileira que era voltada inteiramente para a produção intensiva de uns poucos gêneros primários destinados à exportação. Graças ao café, esta estrutura tradicional, abalada pelas transformações sofridas pelo país na primeira parte do século XIX, consegue se refazer e prosperar ainda por muito tempo. Com ele a grande propriedade agrícola monocultora trabalhada por escravos terá o reforço que precisava naquele momento para continuar existindo com a pujança do período colonial.


(...) Com o capital inglês (bem como de outras nacionalidades, embora em menores proporções) construir-se-ão estradas de ferro, montar-se-ão indústrias, aparelhar-se-ão portos marítimos. Além disto, o afluxo de capitais estrangeiros permitirá equilibrar normalmente as finanças externas sem sacrifício das importações, de tão fundamental importância para o Brasil. Será possível manter em dia os pagamentos exteriores. (Prado, p. 169)


Portanto, com a acentuação das contradições inerentes ao sistema escravista, a decomposição do próprio sistema começa a se fazer presente. A partir de 1860 a pressão dos acontecimentos será bastante forte para provocar uma larga tomada de posições, afirma Caio Prado. Começam a surgir um grande número de escritos de toda ordem sobre o problema da existência da escravidão no Brasil, que junto com Cuba ainda era um dos únicos países a ter este sistema vigindo. Esta questão é debatida e analisada a fundo nestes escritos a partir dos seus diferentes aspectos, o econômico, o social e o político.


Com o início da Guerra do Paraguai, o debate sobre a escravidão será adiado. Isto não impediu que houvesse uma radicalização cada vez maior da opinião pública. A idéia da abolição começa a conquistar, então, forças políticas importantes, fazendo com que o imperador organize, em 1868, um ministério conservador decididamente escravocrata que dissolve a câmara “excessivamente” liberal. Isso acarretará uma polarização nítida das forças políticas conservadoras e reformistas, que daí por diante irão se contrapor decididamente. É neste mesmo ano que surgirá um novo partido liberal que incluirá a emancipação dos escravos em seu programa oficial. A ala mais radical deste partido assumirá a causa republicana agrupando-se no partido republicano.


Ao fim da guerra do Paraguai, o quadro de polarização a respeito do problema da existência da escravidão no país se acentuará ainda mais, segundo Caio Prado:


(...) A guerra pusera em relevo as debilidades orgânicas de um país em que a massa da população era constituída de escravos. Encontraram-se as maiores dificuldades no recrutamento de tropas e foi-se obrigado a recorrer a escravos, desapropriando-os de seus senhores e concedendo-lhes alforria. Também em muitos lugares foi impossível mobilizar em número suficiente os homens livres, pois isto seria desamparar tais lugares deixando-os à mercê da massa escrava tão temida e perigosa. A escravidão revelava mais um dos seus aspectos negativos. Além disto o Brasil, embora vitorioso, saía da guerra humilhado, não somente em face dos aliados, mas dos próprios vencidos, com suas tropas de recém-egressos da escravidão. A questão da abolição do regime servil se tornará daí por diante, um ponto de honra nacional. (Prado,p. 178)


É quando o imperador inclui no governo a fração mais tolerante dos conservadores, revivendo os antigos projetos “liberalizantes” e reformistas discutidos no Conselho de Estado seis anos antes, por ele mesmo abafados ao convocar um gabinete claramente reacionário e pró escravismo. A lei do ventre livre é promulgada em 28 de setembro de 1871, declarando livres os escravos nascidos daquela data em diante. Além disso, esta lei dará algumas providências para o estímulo a alforria dos escravos existentes.


Esta lei, entretanto, como afirma Caio Prado, servirá apenas para atenuar a intensidade da pressão das forças abolicionistas para a emancipação total dos escravos, já que estabelecia para os filhos de escravos, até a sua maioridade aos dezoito anos, um regime de tutela exercida pelo proprietário dos pais. Os cálculos apontam que o processo de abolição gradual pretendido com esta lei adiaria a existência da escravidão pelo menos pelos próximos cinqüenta a sessenta anos. Ou seja, ao invés de ser uma vitória do movimento emancipacionista, constituía uma vitória dos conservadores escravagistas sobre aqueles; já que além de adiar a extinção da escravidão, conseguia amortecer em grande parte as pressões abolicionistas, induzindo os setores mais moderados da opinião pública a pensarem que o problema já estava juridicamente resolvido.


(...) Foi preciso um decênio para que renascesse o movimento libertador, que terá de esperar que as contradições inerentes à escravidão cheguem ao auge da crise. Isto efetivamente se verificará a partir de 1880. A gradual diminuição da população escrava que havia quase trinta anos deixara de ser alimentada pelo tráfico africano, tornara premente o problema do fornecimento de braços para a lavoura. O Norte, embora mais ou menos estacionário, sofria porque o Sul, em particular São Paulo, drenava toda sua mão-de-obra; e este, apesar de tal recurso, não tinha mãos a medir para atender às necessidades da cultura cafeeira cujo ritmo de crescimento, graças à forte valorização do produto depois de 1880, chegara a um nível considerável (...) (Prado,p. 179)


Para Raymundo Faoro[6], a monarquia, desde a reação centralizadora, durante a regência, mostrou uma afinidade estreita com o Partido Conservador, que era afinal a base principal de sustentação do poder imperial; inclusive nos extremos absolutistas implícitos na instituição constitucional do Poder Moderador. Segundo ele:


Essa aliança firmou-se com o café do Vale do Paraíba, umbelicalmente vinculado aos comissários, banqueiros e exportadores da corte. A expansão paulista da lavoura, a pecuária não escravista, revelam o conflito entre fazendeiro e o pólo urbano da economia, reforçando suas pretensões autonomistas. O Oeste paulista será uma réplica ao Vale do Paraíba, réplica em novos moldes, sem a adoção servil do clichê do engenho de açúcar. Os frutos da extinção do tráfico e a pequena sobrevivência da prole escrava produzem, nas três últimas décadas do século, todos seus resultados. (...) Torna-se, além disso, excessivamente oneroso o escravo, atingindo o valor de, entre 1876 a 1880, um a dois contos e quinhentos, valor imenso se comparado com o máximo de setecentos mil-réis da década anterior. O trabalhador servil tem o seu preço elevado acima da alta geral de preços, atingindo, no valor do investimento, de 80 a 90% da fazenda (...) (p. 455)


Com o envelhecimento do escravo, a persistência da exploração agrícola na terra exaurida e a impossibilidade de transferir a fazenda para melhores solos, não permitiram a migração de escravos, em larga escala, para o oeste paulista. Segundo Faoro, a fazenda paulista, embora fosse constituída sobre o trabalho escravo, não se tornou essencialmente ou necessariamente escravista.


(...) Tentou-se explicar a conexão entre fazenda e República com o despeito, o ressentimento, o desejo de revide da lavoura contra o Império, responsável pela Lei do Ventre Livre (1871) e pela abolição da escravatura. (...) O agrarismo, portanto, volta-se para os ideais republicanos, atraído sobretudo pela constelação federalista, norte que seria também o das suas afinidades com o Partido Liberal. (...) O setor decrépito segue o trono, o setor em ascensão busca a República. (...) Também no extremo sul, como em São Paulo, o convívio da mão-de-obra servil com o trabalho livre mostra (...) o seu caráter antieconômico, impróprio para a retração nos momentos de crise, com o capital fixo imobilizado perturbando a racionalidade da empresa. (...) (Faoro, pp. 456,547)


Segundo Raymundo Faoro, a chamada traição do agricultor não será uma mudança de atitude, mas o desenvolvimento coerente dos seus interesses, ideologicamente fixados. Para ele, o segundo reinado ruiu quando os suportes dessa realidade política e administrativa entraram em colapso. Isto é, a exaustão do trabalho servil e o crescente aumento do contigente assalariado puseram em risco a teia comercial e creditícia armada na Corte.


Faoro afirma que não foi só o fazendeiro que varreu o trono, com o abandono, mas também o peso da máquina centralizadora ajudou neste acontecimento, incapaz de operar e vagarosa na sua transformação. O que o fazendeiro fez, no entender de Faoro, foi conformar-se com a República nascente. Notas: 1. FURTADO, Celso. Formação econômica do Brasil. 2. CHIAVENATO, Julio José. Op. cit.

3. FURTADO, Celso. Op. cit.

4. COSTA, Emilia Viotti da. Da senzala à colônia.

5. PRADO Jr. , Caio. História econômica do Brasil.

6. FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro.


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