Capt.6 Escravos e carcamanos
Mesmo após à abolição da escravidão, para o negro africano imigrado à força, vendido como gado para o trabalho braçal, não houve nenhuma estratégia ou política pública de inclusão social na nova realidade republicana e no novo sistema econômico. Pelo menos em São Paulo, esta mão-de-obra, descartada em prol da mão-de-obra branca do imigrante italiano, foi usada como reserva da reserva de mão-de-obra desqualificada (quando os sindicatos de trabalhadores que os italianos foram criando começaram a elevar os salários, esta reserva de mão-de-obra negra excluída e sujeita a condições de vidas degradantes nas cidades e no campo, era recrutada para forçar para baixo os salários).
Com Florestan Fernandes aprendi que esta enorme população negra que não desapareceu nas cidades de São Paulo (embora houvesse esta intenção por parte da classe dominante), muitas vezes "invisível" para a massa de brancos imigrados (São Paulo capital, em alguns momentos do final do século XIX e início do século XX, parecia uma cidade da Itália, porque o idioma mais falado em algumas regiões era o italiano oficial e os dialetos italianos), foi desenvolvendo um temperamento peculiar de resistência, não ao trabalho, mas à sujeição (que lhe fazia recordar os tempos da escravidão ainda tão vívidos em sua memória). Isto é, muitas vezes, o cidadão negro passou a demonstrar uma postura de arrogância e insubmissão, mesmo que permanecesse na pobreza (para os critérios formadores do mercado de trabalho, isto representava um obstáculo à "ética do trabalho" necessária para a acumulação e reprodução do capital).
Quando comecei a lecionar na comunidade escolar onde ainda me encontro, intuitivamente, já percebia que havia algo de historicamente enraizado na cultura destas camadas populares afrodescendentes: uma espécie de altivez, insubordinação, insolência etc. (dependendo do indivíduo em questão) face a qualquer autoridade (seja a do professor, seja a do patrão, seja a da polícia). Percebia que não era um elemento sócio-cultural individual deste ou daquele e que acontecia por mero acaso, mas não sabia que ele tinha uma origem histórica no pós-Abolição, como me fez ver a pesquisa de Florestan Fernandes em meados do século XX, a partir da leitura de A Integração do Negro na Sociedade de Classes e O Negro no Mundo dos Brancos, por exemplo. Portanto, até para me aperfeiçoar mais concretamente em minha condição docente de educador de história em uma escola que é constituída, em sua maioria, por afrodescendentes, tive que pesquisar profundamente este elemento (e permaneço a pesquisá-lo, porque é uma seara infindável).
Nesta primeira parte da análise dos documentos primários, que apresento aqui neste capítulo, debruço-me sobre a questão concreta de como se foi estruturando o mercado de trabalho na micro-região paulista que investiguei (chamada hoje de Circuito das Águas com um estatuto turístico oficial), na transição do mercado de escravos para o mercado de trabalho. Dois mundos do trabalho bem distintos se encontraram na região, o mundo do trabalho escravo dos africanos e seus descendentes e o mundo do trabalho assalariado dos imigrantes e seus descendentes. Há um antagonismo presente nestas relações que não pode ser ignorado, porque, para além da questão econômica, estritu sensu, propriamente dita, há também um choque de culturas e de vivências sociais; mesmo que o imigrante italiano tenha substituído o mesmo trabalho que o escravo africano já fazia e tenha ido morar na mesma senzala que era usada pelos escravos anteriormente. A classe dominante branca de origem portuguesa no estado, por outro lado, não estava ainda suficientemente experimentada no trato com a mão-de-obra livre, sob as condições de um contrato de trabalho (no caso, o de colonato). Por isto é que a greve acontecida na fazenda do então Barão de Indaiatuba e o relatório do delegado são documentos importantes para a análise deste conflito sócio-cultural e econômico no interior do mundo do trabalho rural paulista. O Barão não sabia como lidar com isto, por isto chamou a polícia (que veio da capital), mas a maioria dos fazendeiros de café de São Paulo, no final do século XIX e início do século XX já se acostumaria logo a lidar com os italianos, mas à maneira em que estavam acostumados a lidar com escravos. Ou seja, no chicote, no grito e no autoritarismo prepotente (hoje, nos ambientes modernos de trabalho, os sindicatos chamam a isto de "assédio moral" - portanto, vejam, não desapareceu completamente esta postura de mando de nossa classe dominante viciada no escravismo como até mesmo Gilberto Freyre já apontava em Casa Grande e Senzala). Eram os italianos livres que não se submetiam docilmente a estas relações de trabalho e, muitas vezes, fugiam das fazendas, indo parar na capital (as reclamações dos italianos no consulado da Itália foram se avolumando até o ponto do governo italiano, em alguns momentos, proibir a emigração para o Brasil, por causa das denúncias de trabalho semi-escravo de oriundi; contradizendo toda a bela e ilusória propaganda do governo brasileiro de então). Na verdade, durante todo o século XX, as classes dominantes brasileiras não lidarão muito bem com a questão do direito de greve dos trabalhadores assalariados mais organizados. Sem falar no campo, onde não há tradição nenhuma de movimentos grevistas, embora haja também a situação do trabalho assalariado (pelo menos até ao aparecimento das Ligas Camponesas, na Zona da Mata nordestina, em meados do século XX, não havia nenhum tipo de organização de trabalhadores do campo que lutasse por direitos mínimos de trabalho no campo). Portanto, achei interessante este fenômeno histórico acontecido no meio rural paulista na região onde moro, em fazenda do então Barão de Indaiatuba (tido como fazendeiro "esclarecido" e liberal). Foi uma surpresa para mim, descobrir que os italianos já começaram a se mobilizar por meio de greve muito antes da abolição da escravidão e na zona rural (eu nunca tinha ouvido falar disto, na bibliografia historiográfica que conhecia até então; portanto, só este elemento já é suficiente para demonstrar o quanto a pesquisa historiográfica é fertilizada quando nos debruçamos diretamente em documentos primários ainda não tocados pelo olhar de algum historiador). Por incrível que possa parecer, ainda hoje, em plena segunda década do século XXI, ainda é possível ver as raízes desta mentalidade policialesca face ás questões relativas ao mundo do trabalho (só que hoje elas vestem uma outra roupagem, é claro). No meu site Semeando História, já mostrei, através de fotos, como a polícia militar, sob o comando do ex-governador Serra tratou os professores em greve (e vejam bem, em São Paulo, os tucanos pagam um salário para um profissional de nível superior como é um professor da rede pública que está no mesmo nível dos rendimentos de uma faxineira diarista; mas isto não tem nada que ver com falsas argumentações financeiras de planilha neoliberal, que eles chamam de "choque de gestão" - tem a ver é com uma estratégia política bem facilmente clara de ser enxergada através desta secular maneira de se lidar com a classe trabalhadora neste país; sob o tacão do feitor, do capitão do mato e da polícia). Alberto Nasiasene Jaguariúna, 13 de maio de 2012 Minha homenagem à luta pelo fim da escravidão (que ainda não acabou completamente, porque temos muito o que fazer ainda nesta direção, inclusive porque o trabalho escravo ainda existe, mesmo aqui em São Paulo).
TERCEIRA PARTE
A análise dos documentos primários
Após ter realizado a escolha dos processos de inventário do cartório do primeiro ofício com os quais iríamos trabalhar, fixamo-nos em três caixas com processos do período delimitado. A primeira caixa contém processos de 1880. É com ela que começamos a investigação mais detida do nosso primeiro processo. Este primeiro processo é o inventário do Pe. José Honório da Silva[1]. Em seguida passaremos a apresentar alguns trechos deste inventário e de alguns dos outros inventários contidos nestas caixas.
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1. A formação do mercado de trabalho na região de Amparo
A. O problema da carência de braços e o seu custo financeiro
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Neste processo de inventário podemos conhecer os bens pessoais que o padre possuía e a sua avaliação financeira no momento de sua morte, além de perceber certas relações estritamente econômicas através das contas a pagar constantes no inventário, apresentadas pelos comerciantes credores.
Em primeiro lugar, contudo, precisamos informar que o padre Honório era originário de Campinas, mas havia morrido em Amparo sem deixar herdeiros conhecidos[2]. Ele era um pequeno proprietário agrícola do município. Não era um homem rico e não vivia luxuosamente (se atentarmos para o tamanho de sua propriedade rural e a quantidade e qualidade dos seus móveis); não obstante, possuía um escravo. Todas as suas posses estavam baseadas na exploração econômica deste escravo, que era quem cuidava de sua propriedade agrícola com seus cafeeiros e demais dependências, como veremos logo abaixo.
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[...]
Auto de arrolamento e arrecadação
Anno do nascimento do nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos e oitenta, aos quinze de setembro, nesta chácara do finado Padre José Honório da Silva, no bairro da Bocaina, município de Amparo onde se acham em diligência o Juiz de auzentes Doutor Rodrigues Leite Filho, comigo escrivão de seu cargo nomeado, ahi presente Dona Catharina Maria de Jesus (...) foram arroladas (...)
Hum cafezal com 2 000 pés.
Huma quantia de terreno.
Huma casa, velha, de sapé.
Em seguida (p. 8)
Meia dúzia de cadeiras de palhinha, já usadas (...)
Hum bahú de folha. Hum par de camas (...) forradas com couro. Hum par de canastras, usadas, forradas com couro. Hum armário, velho. Huma mesa, velha, para jantar (...)
[...]
Estes bens imóveis arrolados no inventário[3] foram avaliados como se segue: o cafezal com 2 000 pés (e o terreno por ele ocupado) junto com o terreno baldio foi avaliado por dois contos de réis (2 000$000). A casa da chácara e uma pequena casa de palha no terreiro (talvez a senzala), além de um pasto ao seu redor, foi avaliada por trezentos mil réis (300$000). Os bens móveis foram avaliados da seguinte maneira: uma marquesa toda de palhinha, por oito mil réis (8$000); meia dúzia de cadeiras todas de palhinha, por dezessete mil réis (17$000); um armário, velho, por dois mil réis (2$000); um armário pequeno, por quatro mil réis (4$000); uma caixa de pinho por mil réis (1$000); uma mesa pequena por mil e quinhentos réis (1$000) e um baú de folha, por quinhentos réis ($500). Como vemos, portanto, não são muitos os móveis do padre e nem eram de grande valor[4].
A falta de braços em Amparo durante este período é um fato evidenciado através do bilhete anexado ao inventário que transcrevemos em seguida. Nele percebemos claramente a carência de mão-de-obra escrava para que o serviço de colheita das cerejas de café, que estavam no ponto adequado de maturação, fosse realizado. O padre possuía um escravo que tomava conta sozinho do cafezal[5], mas ele já havia sido vendido, antes de seu falecimento, para pagar uma dívida contraída e que não fora saldada por outros meios. Por isso, não havia ninguém que pudesse realizar a tarefa e o café estava se perdendo nos pés.
p. 27
(...) foram avaliados por duzentos mil réis os fructos (...) dos cafeeiros inventariados (...)
(...) é do interesse da herança a compra (...) visto que não disponho de braços a bonança e estando no matto os referidos cafeeiros, perder-se-hão os fructos, que nenhum resultado darão a não ser pelo modo proposto (...)
Como podemos constatar com a leitura do processo do Padre Honório, o padre estava muito endividado, e de tal modo endividado, que todas as suas propriedades foram vendidas, após a sua morte, para que se pudesse quitar as dívidas com os seus credores.
[...]p. 48 (...) achando-se o finado Padre José Honório da Silva apertado por alguns credores entre os quaes João Rodrigues Teixeira e Domingos Somestino (sic) e não podendo arranjar dinheiro, vsª tomou a si arranjá-lo e dirigio-se ao Sr. Antônio Pires de Godoy Jorge, que não podendo servi-lo na ocasião, deu-lhe uma carta de conhecimento para com o Major José Jacintho de Araújo Cintra, que deu-lhe por empréstimo a quantia de hum conto de réis a prazo de 12 meses e ao juro de 12% ao anno, quantia esta que fui o passador da respectiva obrigação para vsª e fui quem o foi receber, mediante o título do mencionado Major. Enquanto ao segundo entregue ao finado Padre José Honório que a empregou naquelles pagamentos e outros entre os quaes uma conta que a seu pedido tinha contraído na Loja do Sr. José Carneiro para a compra de objetos para seu uso particular. E estes factos derão-se em 1875 ou 1876, e o dinheiro foi dado por empréstimo. Quanto ao 3º respondo-lhe que a referida quantia de hum conto de réis e seus prêmios foi pago vsª ao Major Cintra com o producto da venda do seu escravo José ao Sr. Manoel Joaquim Franco, que foi quem fui pessoalmente resgatar do poder do credor a sua obrigação. Sabendo mais que tal quantia não lhe foi paga pelo finado Padre, que conversando comigo pouco tempo antes de sua morte declarara que pretendia fazer seu testamento, para entre outras cousas declarar este débito. É o que tenho a responder-lhe. Sem mais sou. Amparo 23 de maio de 1881 João Teixeira Leite Penteado [...] P. 91 IMPOSTO DE TRANSMISSÃO DE PROPRIEDADEArt. 19 da Lei Nº 1507 de 26 de setembro de 1867Exercício de 1881 a 1882 A fl 34 do livro de Receita fica lançada a quantia de cento e trinta mil e sessenta réis que pagou Catharina Maria Jesus em quatorze de março do dito anno a importância correspondente a dous contos e trezentos mil réis por quanto arrematou em praça do juízo de Orphãos, uma chácara no subúrbio desta cidade, pertecente ao finado Padre José Honório da Silva Comarca do Amparo em 14 de março de 1882 O Collector O EscrivãoJosé M. de Miranda Paulino Francisco Assis
A primeira pergunta que nos colocamos, portanto, é: por que este padre estava tão endividado na cidade de Amparo em 1880? Já que através das contas apresentadas por seus credores no processo de inventário, podemos perceber que o padre, aparentemente, gostava de consumir bebidas alcóolicas, também levantamos a seguinte pergunta: isto tinha alguma coisa a ver com um costume generalizado da população local[6] que atingia até mesmo um representante da Igreja Católica ou estava associado ao próprio fato de que o padre viveu “atolado em dívidas” nos últimos anos de sua vida? Será que ele tentava “afogar as suas preocupações” em álcool? Ou o fato de ele consumir aguardente, por exemplo, fiado, porque não tinha dinheiro para pagar à vista, era um elemento específico de sua personalidade que não estava relacionado diretamente com o fato de ele estar muito endividado? Podemos levantar a hipótese de que a aguardente que o padre comprava não era para o seu consumo próprio e sim para o seu escravo e, por outro lado, podemos pensar que estamos apenas diante de um indicador que aponta um costume arraigado na população em geral de se fazer compras que eram pagas posteriormente. É claro que este costume não poderia explicar por si só o fato deste padre estar tão endividado. Entretanto, estas são perguntas sem respostas, porque não podemos afirmar categoricamente nada somente com a leitura deste processo, porque nele não temos nenhuma indicação concreta que esclareça estas dúvidas.
Outra coisa que podemos simplesmente constatar, sem que façamos nenhuma análise mais aprofundada, através deste inventário: a Igreja Católica também participava evidentemente, do regime escravista na medida em que verificamos que um representante do clero regular possuía um escravo e que o tenha vendido para cobrir suas dívidas. Isto é, a Igreja também, evidentemente, na medida em que permitia, como instituição, que um seu representante possuísse um escravo, compactuava do sistema e, portanto, compartilhava o ponto de vista e os interesses da classe dominante[7].
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Também podemos perceber claramente, através da leitura deste processo, que no início da década de 80 do século passado, oito anos antes da abolição da escravatura, os italianos já estavam presentes na comarca do Amparo[8]. Mais do que isto, alguns italianos já haviam conseguido se estabelecer como pequenos comerciantes na cidade. É só atentarmos para os nomes inscritos em algumas das contas anexas ao processo: Felício Granato, Caetano Bonchristiani e José Ricci. Além disso, o farmacêutico Thader Leoni, uma profissão “liberal”, também revela um sobrenome italiano.
Escravos no século XIX. Imagem de internet
Felício Granato, como podemos perceber pelo conteúdo da conta apresentada abaixo, era um comerciante de tecidos e dono de um armarinho.
[Conta de Felício Granato] p. 29 1 peça de algodão 3$50010 m de chita $600 6$0002m 25 de brim 1$500 3$3001 par de chinello 2$0001 par de meias 2$5003 m de brim 1$200 3$6002 caixas de agulhas $320 (...) [Conta da p. 32] 15 kg de assucar redondo 6$000Dinheiro que ped 14$0004 garrafas de serveja 4$400Dinheiro que pediu 3$500(...)
Os pequenos comerciantes, com os quais as pessoas tinham relações pessoais de amizade e camaradagem, costumavam emprestar dinheiro (em pequenas quantidades) para os fregueses e este empréstimo era debitado “na conta” do freguês[9] como vimos acima.
Evidentemente estas pessoas de origem italiana, que aparecem neste processo por causa de suas atividades comerciais, não fazem parte do contingente de mão-de-obra assalariada que está convivendo, paralelamente, com a mão-de-obra escrava; mas indicam a existência de um contingente imigrante de origem italiana presente na comarca. Este contingente, como sabemos através da bilbliografia dedicada ao estudo do processo de imigração italiana para o Estado de são Paulo[10], veio principalmente para trabalhar na lavoura do café como mão-de-obra assalariada contratada pelo sistema de colonato; embora alguns, logo conseguissem se livrar das atividades agrícolas assalariadas e conseguissem montar seus próprios negócios.
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Não sabemos como estas pessoas de sobrenome italiano chegaram a Amparo e em que codições começaram a trabalhar quando chegaram, sabemos apenas que, neste ano, eles já estavam envolvidos com os seus pequenos negócios comerciais e tinham se tornado trabalhadores autônomos e não-assalariados.
Em seguida teremos a oportunidade de averiguar a relação entre certos valores econômicos no empreendimento cafeeiro no ano de 1880 na cidade de Amparo através de um outro processo de inventário. Queremos atentar especialmente para o valor da mão-de-obra escrava empregada na comarca.
[...] p. 3 Inventário e partilha amigável que faz a viúva meeira Dona Justina Maria de oliveira e seus filhos Manoel Franco de Godoi e sua mulher Olavia Franco de Meneses, o co-herdeiro José Joaquim de oliveira e sua mulher Maria Franco de Oliveira, e o co-herdeiro José Vieira de souza e sua mulher Anna Franco de Oliveira, dos bens que ficarão por fallecimento de Joaquim de Franco Godoi.[11] Avaliação dos bens Foi avaliado o escravo Domingos, preto de 16 annos, solteiro, natural desta cidade, filho natural de Theresa, bom para o serviço de roça, foi matriculado nesta cidade em 20 de agosto de 1872 sob o nº 442 da matrícula geral, (...) por 1:800$000. Forão avaliados a casa de morada, monjollo e mais bemfeitorias, pastos e seus terrenos fixados de paus a pique, caraguatá e chanfrado por 1:200$000. Foi avaliado um mil pés de café formado pela quantia de 500$000. Foi avaliado quatrocentos pés de café novo pela quantia de 100$000. Forão avaliadas as terras de cultura do sítio pela quantia de 14:000$000.Total: 17:000$000(...)Monte mor partível 17:000$000Meação da viúva inventariante 8:800$000Dividida a meação do inventariado pelostrês filhos, cada um dos três herdeiro, a quantia de 2:933$333
Como vemos, na avaliação dos bens de Joaquim Franco de Godoi, o escravo Domingos, de 16 anos, estava valendo mais do que a casa, monjolo, pastos e demais benfeitorias. Isto é, o escravo foi avaliado em 1: 800$000 e os bens aos quais nos referimos foram avaliados por 1: 200$000. Isto quer dizer, evidentemente, que a mão-de-obra de um rapaz apto para a lavoura, num contexto de grande carência de mão-de-obra, era o custo econômico mais elevado no empreendimento cafeeiro. Este escravo estava no vigor de sua força física e ainda permaneceria vários anos com esta energia biológica em disponibilidade. È por isso mesmo que o seu valor econômico era tão elevado.
Como poderemos constatar abaixo, havia um outro escravo de propriedade do Sr. Joaquim Franco de Godoi. Como ele não consta da lista dos bens inventariados poderemos imaginar que ele ou foi vendido anteriormente (mas neste caso haveria alguma indicação de tal ocorrência neste inventário), ou, o que achamos ser mais provável, já havia morrido quando se deu a partilha dos bens após à morte de seu dono.
[...] Traslado da relação da matrícula dos escravos pertencentes a Joaquim Franco de Godoi e sua viúva junto ao inventário do finado cujo theor é o seguinte - Relação do número (...) dos escravos pertencentes a Joaquim Franco de Godoi, residente na província de São Paulo, município do Amparo, parochia do mesmo nome (...) Número de ordem na relação um - Nome Justino - Cor preto - Idade sessenta - Estado viúvo - Naturalidade desconhecida - Filiação desconhecida - aptidão para o trabalho - Profissão lavoura - Observação obtido por herança Número de matrícula (...) Nome Domingos - Cor preto - Idade oito - Estado nada - Naturalidade Amparo - Filiação natural de Theresa - Aptidão para o trabalho - Profissão numerosa - Observação obtido por herança.(...)
Como vemos aqui, a idade de um escravo era um fator decisivo, portanto, em sua avaliação econômica[12]. Um escravo jovem, homem, tinha grande probabilidade de ser empregado produtivamente na lavoura por muitos anos, enquanto um escravo velho, alquebrado em seu vigor físico, evidentemente não poderia alcançar a mesma produtividade que um jovem e, mesmo que o pudesse, não o poderia realizá-la por muitos anos ainda assim como o jovem; por isso o valor econômico do escravo era inversamente proporcional à sua idade. Tomando em conta apenas este fato econômico elementar, percebemos claramente o caráter altamente arriscado do sistema escravista, num contexto interrompido de abastecimento contínuo de escravos do continente africano e em que o abastecimento promovido pelo tráfico interno havia praticamente cessado.
Secagem de café. Imagem de internet
Se o escravo morresse, todo o dinheiro gasto em sua aquisição (ou simplesmente todo o valor econômico que ele representava para a propriedade de seu senhor) desapareceria como que num passe de mágica. Era um prejuízo econômico irrecuperável. Além disso, mesmo quando o escravo estivesse em pleno vigor físico e ainda possuísse vários anos de vida em perspectiva, o seu valor econômico iria decrescendo inevitavelmente com o tempo. A não ser que existisse uma reposição natural da força de trabalho por meio do nascimento de crianças escravas que pudessem substituir, com o tempo, os escravos velhos fazendo com que o sistema pudesse se auto-sustentar. Como sabemos, em 1880, esta possibilidade não existia; por diversas razões, entre elas, porque desde 1871, fora promulgada a chamada Lei do Ventre Livre. Além disso, como podemos constatar neste e outros inventários, não havia uma população escrava equilibrada quanto à repartição sexual. Isto é, o número de escravos em relação ao de escravas era muito superior; o que reduzia a possibilidade de reprodução biológica da “raça”. Portanto, o modo de produção escravista havia entrado num “beco sem saída” que apontava para a sua dissolução inevitável. Neste momento histórico, o desenvolvimento do modo de produção capitalista e a conseqüente introdução do trabalho assalariado já era uma necessidade econômica que estava se impondo pela própria lógica inerente ao processo econômico. Ou seja, cada vez mais o escravismo estava se tornando “antieconômico”.
Agora vejamos o inventário de José Gonçalves de Araújo[13]:
[...] Avaliação (...)Viola, por seis mil réis 6$000Hum laço de couro, por quatro mil réis 4$000Hum carro ferrado, por vinte mil réis 20$000Cavallo vermelho, mal arreado, por quarenta mil réis 40$000 Hum dito, baio, mal arreado, por quarenta mil réis 40$000Hum dito, pintado, mal arreado, por quarenta e cinco mil réis 45$000Hum corcel, preto, por sessenta mil réis 60$000Huma égua, baia, com cria, por vinte e cinco mil réis 25$000Huma potranca baia por dezoito mil réis 18$000Vermelha por vinte mil réis 20$000Hum touro por trinta e dois mil réis 32$000Huma vaca por trinta mil réis 30$000Huma novilha, pintada, por dez mil réis 10$000
Somando o valor de todos os dez animais de José Gonçalves de Araújo, constantes nesta relação temos a importância de 320$000. Comparando com o preço do escravo de Joaquim Franco de Godoi, de nome Domingos, com dezesseis anos, 1: 800$000, podemos perceber que estes dez animais valiam seis vezes menos que o escravo. Além disso, vejamos a avaliação dos imóveis:
Inmóveis p. 9 Hum terreno para mil seiscentos pés de café e com cerca de mil e cem pés (...) 300$000 Hum cafezal com três mil pés de quatro annos com o terreno por elle ocupado (...) por 1:200$000 Hum dito, de dous annos, empreitada de Miguel Marques de Lima, cabendo hum mil e duzentos pés (...) por 240$000 As terras de cultura do sítio inteirando (...) em quatro alqueires (...) por 400$000(...)
Por outro lado, se adicionarmos os valores dos bens imóveis de José Gonçalves de Araújo, totalizando a importância de 2: 140$000, veremos que este valor é um pouco maior do que o preço do escravo Domingos; o quer dizer que se ele fosse vendido por este preço o seu antigo dono poderia comprar todos os bens imóveis de José Gonçalves de Araújo, menos as terras de cultura do seu sítio.
Com estas comparações podemos perceber que o dinheiro ganho com a venda de apenas dois escravos como o escravo Domingos poderia-se comprar um sítio como o de José Gonçalves de Araújo.
Outro detalhe interessante neste inventário que queremos assinalar:
p. 13 Devo que pagarei ao Sr Raphael Gianotti ou à sua ordem a quantia de Sem mil réis valor recebido, cuja quantia satisfarrrei no prazo de 12 mezes e na falta obrigo-me a pagar mais o juro de 1 ½ por cento ao mez até seu real reembolso, e assim mais obrigo-me a todas as despezas judiciaes e extrajudiciaes que o mesmo senhor fizer para a effectuação desta cobrança. Por verdade e clareza firmo este. Amparo 20 de outubro de 1879 José Gonçalves de Araújo
Vemos aqui, portanto, um outro italiano que já estava presente na comarca e que já havia se estabelecido como autônomo, inclusive emprestando dinheiro através de uma nota promissória a um pequeno sitiante.
Os quatro processos de 1880 analisados até aqui são de pequenos sitiantes. Nenhum fazendeiro com terras maiores. Abaixo passaremos a analisar o inventário de um proprietário que possuía terras um pouco maiores. A avaliação de suas propriedades começa, entretanto, com o relógio de ouro e o gado seguida dos escravos.
[...] Descripção e avaliação dos bens p. 10 [14] (...)Hum relógio de ouro e corrente, por sessenta mil réis que a margem SAE 60$000Huma junta de bois por oitenta mil réis (...) 80$000(...)Hum cavallo (...) por sessenta mil réis (...) 60$000Hum dito, baio, por quarenta mil réis (...) 40$000Hum burro (...) por trinta mil réis (...) 30$000 Escravos p. 11 A preta Josepha, doentia, por cento e cincoenta mil réis, que a margem sae 150$000.Neste acto fui [ilegível] pela escrava a importância de sua avaliação e o Meretíssimo Juiz mandou que fosse passada em favor da mesma a respectiva carta de liberdade e que se depositasse em poder da inventariante a quantia (ilegível). A parte que tinha no escravo Salvador, fugido, avaliada por quatrocentos e cincoenta mil réis, que a margem sae 450$000 Antonio, por novecentos mil réis que (...) 900$000 Benedicto, por movecentos mil réis que (...) 900$000 Pedro, por novecentos mil réis, que (...) 900$000 Forão avaliados os serviços da ingênua Eva por sete annos, que não tem pai nem mãe, digo que tem mãe liberta, por trezentos mil réis, que a margem sae 300$000
Como observamos neste inventário, a preta Josepha, doente [15] (provavelmente já velha), estava valendo menos do que os escravos mais jovens, sendo que o seu valor era a metade da avaliação “dos serviços da ingênua” Eva. Não sabemos qual era a idade desta escrava, sabemos apenas que ela era “doentia”. Precisamos não esquecer que neste período final da escravidão já havia a Lei dos Sexagenários. Esta lei libertava os escravos que haviam conseguido chegar a esta idade e os deixava entregues ao seu próprio destino (os antigos donos não estavam mais obrigados a sustentá-los, já que eles não podiam ser produtivos para a economia escravista). Portanto, quanto mais se aproximava do tempo de ser libertado de acordo com a lei dos sexagenários, mais desvalorizado ia ficando o preço de um escravo.
Talvez seja sintomático o fato de que a avaliação dos imóveis do Sr. Joaquim de Souza e Silva Júnior venha depois da avaliação dos escravos:
Inmóveis p. 12 Hum cafezal com dez mil pés a quatrocentos mil réis (...) o terreno por elle ocupado na importância de quatro contos de réis, que a (...) 4:000$000 Hum dito com três mil e quinhentos pés, a duzentos mil réis (...) inclusive o terreno ocupado por elle, na importância de setecentos mil réis, que a margem SAE 700$000 Os fructos pendentes calculados em quinhentos arrobas, por um conto de réis, que (...) 1: 000$000 As terras de cultura do sítio inventariado, calculadas em vinte quatro alqueires, a hum mil réis o alqueire, na importância de dous contos e quatrocentos mil réis que a (...) 2: 400$000 Neste acto foi declarado pela inventariante que não aprezentava a matrícula dos escravos avaliados porque elles forão herdados em quinhão de inventário amigável julgado pelo Juiz competente, há muito pouco tempo (...) Foi mais declarado pela inventariante que possue também metade de uma casa sita à rua do Rosário, da cidade do Amparo, e mandou o Juiz que se procedesse a avaliação da referida parte de casa no dia vinte e dous do corrente mez, ao meio dia, feitas as citações necessárias (...) p. 14(...) avaliarão pela quantia de três contos de réis toda a casa, pertencendo ao finado Joaquim de Souza e Silva Junior a metade da dita casa, a qual é situada na rua do Rosário, desta cidade do Amparo, com três portas e huma janella, com quintal (...)
Em seguida temos a transcrição das matrículas dos escravos pertencentes a este proprietário. Esta relação tem inscrita certas características diferenciadoras de cada escravo e o seu valor financeiro. Por exemplo, na matrícula do escravo Salvador, apresentada em separado no inventário, na qual lemos a observação de que este escravo encontrava-se fugido já por três anos[16].
Crianças africanas. Imagem de internet
Vemos também aqui que os serviços da “ingênua” Eva faziam parte da partilha:
p. 17
D. Anna Pires de Oliveira e Silva, residente neste município, declaro ao Senhor Collector que na partilha do inventário de sua finada mãe D. Gertrudes Alves de Oliveira Pires, julgada por sentença do Dr. Juiz de Direito da Comarca, de 17 de fevereiro do corrente anno (...) bem como a seu marido, Joaquim de Souza e Silva Junior (...) fallecido, os serviços da ingênua de nome Eva, cor preta, nascida a 7 de novembro de 1871 e matriculada em 14 de agosto de 1872, sob nº 4 da matrícula geral, filha da ex-escrava Thereza, preta, serviços de roça e que foi matriculada sob o nº 122 da matrícula geral e 2 da relação. Amparo, 22 de maio de 1886 Inventariante Anna Pires de Oliveira e Silva
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Temos, em seguida, o valor documentado dos serviços médicos que nos dão uma idéia sobre as dificuldades de assistência médica tanto para os remediados quanto para os escravos e “carcamanos”.
Se compararmos o valor dos serviços médicos aqui indicado com o valor da casa da chácara do padre Honório, por exemplo, veremos que estes serviços estavam custando quase a metade do valor daquela casa.
p. 26 Drº Silveira CintraMédico OperadoreParteiro Amparo (...) Serviços médicos a seu finado marido Joaquim de Souza e Silva Jr. em sua última molestia 145$000 Amparo 19 de junho de 1886
A partilha dos bens do finado Joaquim se deu da seguinte maneira:
Orçamento Acharão o doutor Juiz de Orphãos partidores que os bens descriptos e avaliados constituirão o monte mor da quantia de quatorze contos oitocentos e sessenta mil e trezentos e quinze réis que a margem SAE 14: 052$325 Sem as dívidas passivas (...) em hum conto e dous mil trezentos e vinte réis, que a (...) 1: 052$325 (...) dividida esta quantia em duas partes iguais, ficava sendo a meação do inventariante da quantia de seis contos novecentos e três mil novecentos e noventa e cinco réis, que a margem SAE 6 : 903$995 A única herdeira do inventariado a sua meação na importância de seis contos novecentos e três mil novecentos e noventa e cinco réis 6: 903$995
No relatório apresentado abaixo, vemos registrado o valor gasto com a colheita de 1850 alqueires de café no ano de 1888 e 1889. Não está explícito no documento, mas podemos inferir claramente que a despesa deve ter ocorrido após o 13 de maio do ano de 1888 ao ano de 1889 (período da mesma safra).
[...]
p. 133Conta corrente em balancete da Receita e depezas da orphã Benedicta, tutellada de Francisco Pires de oliveira Campos(...)
Anno Mez dia Descripção de verbas Passivo
1890 outubro 13 Despezas para a colheita de 1850 alqueires de café do anno de 1888, 1889 a 1$200 por alqueire seco e lavado 2: 220$000Condução e benefício de 680 arrobas de café (com exclusão das 776 arrobas vendidas em coco) a 500 réis 340$000Dinheiro para pagamento do imposto predial da casade nº 4 da rua 10 de março a 4ª parte de 2 annos 9$000Idem para (...) a 4ª parte do corrente exercício 4$500Idem das casas dos nºs 26 e 28 da rua Luís Leite no corrente exercício 33$750Idem para o requerimento e sello 5$000Idem para calçada e mais serviços da casa da rua 10 de março a 4ª parte 10$000 saldo differencial em favor da orphã 8: 906$350 em 13 de dezembro 1890 2: 623$050
Amparo 13 de agosto de 1890 Francisca Pires de Oliveira Campos
Isto é, esta despesa financeira com a colheita do café deve ter sido constituída, muito provavelmente, dos salários pagos para a mão-de-obra assalariada contratada com este fim. Por outro lado, o salário do trabalho braçal relativo à calçada e “demais serviços de casa” foi avaliado em 10$000. Como este processo abrange um tempo relativamente longo, porque enquanto a herdeira permaneceu menor de idade, o seu tutor tinha que prestar contas da administração de sua herança, podemos dizer que temos precisamente aqui um documento que testemunha concretamente a passagem das relações de produção escravistas para as relações de produção capitalistas. Isto é, temos no mesmo documento a avaliação econômica de escravos antes da abolição e o relatório de salários pagos pela colheita do café após à abolição.
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Precisamos agora nos deter um pouco na análise do inventário de um fazendeiro abastado que não estava endividado, o senhor José Manoel Cintra[17]. Ao contrário, como poderemos observar abaixo, ele desempenhava o papel de um “banqueiro” em Amparo, porque neste inventário temos uma longa lista de devedores e a quantidade que cada um deles devia ao falecido. Este fazendeiro, portanto, além de empregar o seu dinheiro nas atividades cafeeiras, estava empregando-o também em ações da Companhia Mogiana e em uma atividade financeira que não estava diretamente ligada à produção de café, o empréstimo a juros (coisa que era comum na comarca, como vemos através de outros inventários). O detalhe importante aqui é que ele, entre os inventariados que investigamos, é o que possui uma maior quantidade de dinheiro empregada nestas atividades. Vejamos:
[...] Dívidas activas, acções de estradas de ferro e dinheiro João Antonio da Candelaria deve.5: 587$030Ignacio Gonçalves da Cintra 2: 249$291(...)Total 187:475$130
A quantia empregada nestas atividades era considerável para os padrões da época: 187: 475$130. Isto equivalia a 11, 6 o valor do seu plantel de escravos ou a 18,7 vezes o valor de sua casa da cidade, como veremos abaixo. Também valia 1,4 vezes o valor das terras, cafezal e benfeitorias. Portanto, a hipótese que levantamos é que este dinheiro todo tenha se originado dos lucros com o negócio de café e que estava sendo reinvestido no “mercado financeiro” para que pudesse aumentar o capital inicial, ao invés de ficar “guardado” sob o colchão ou em conta corrente. O sistema bancário não estava suficientemente desenvolvido neste período, especialmente no interior do Estado; por isso mesmo este fazendeiro desempenhava algumas funções que seriam desempenhadas por eles[18]. Vejamos a avaliação dos bens imóveis do Sr. José Manoel Cintra:
(...)Terras incultas calculadas em 180 alqueires a 190$000 o alqueire 34:200$000Todas as benfeitorias, compreendendo casa, pastos, vallas, tirada d’água 26: 400$00015 mil pés de café (...) 10: 500$00012 mil ditos (...) 6: 000$00034 mil ditos (...) 37: 000$0001 mil ditos (...) 4: 000$000a casa em que mora Candida (...) 300$0002 500 arrobas de café entre colhidos e por colher a 3$000 a arroba 7: 500$000
Precisamos assinalar também que este fazendeiro, dentre os que estamos investigando através destes inventários selecionados aleatoriamente, é o que possui uma maior quantidade de escravos. Isto, por si só, já é um indicador de sua riqueza. Se somarmos a quantia que estava valendo cada escravo de seu plantel quando de sua morte, teremos o valor de 16: 100$000. Com este dinheiro ele poderia comprar terras e ampliar as suas propriedades imóveis.
Escravos Cypriano e Margarida 1: 600$000Adão e Rosa 700$000Amancio e Cevirina 700$000Joaquim e Eva 800$000Fernando 600$000Luiz e Josepha 400$000Margarida 300$000Ezequiel e Anna 600$000Martinho e Felicidade 500$000Benedicto e Joaquina 1: 600$000João 600$000José Mulato 300$000Paulo e Anna 1:400$000Vicente 1: 000$000Germano 1: 000$000Christovão 1: 000$000
A soma do valor dos escravos, portanto, é 16: 100$000. Quando averiguamos o valor de sua casa da cidade de Amparo, percebemos que a casa, sozinha, valia mais do que o preço de vários escravos; o que não corresponde aos valores apresentados na avaliação das casas dos demais inventariados. Isto é, estamos diante de um verdadeiro “palacete” para os padrões de riqueza vigentes em Amparo neste período. É uma casa cara. Além disso, como podemos examinar logo abaixo, os móveis que ela possuía demonstram que estamos lidando com um cotidiano doméstico mais refinado do que a maioria dos moradores da cidade.
Bens que se achão no Amparo
A casa da cidade 10: 000$000A chácara 5:500$000Mobília austríaca, composta d’um sofá, 2 aparadores e16 cadeiras 270$00022 cadeiras de cavinna, 1 mesa redonda, 2 aparadoresInvernizados 162$0004 marquesas de cavinna invernizados a 10$ 40$0001 marquesa de cavinna sem verniz 9$0001 cama e colchão francês 60$0001 mesinha 6$0001 marquesa de jantar 20$0001 armario 25$0005 catres a 55 réis 27$50012 cadeiras de palha a 3$..........36$000
Amparo 30 junho de 1884
(...)1 faqueiro incompleto 180$0002 castiçais, 2 salvas, 1 cofre de viagem e 3 [ilegível] 160$0001 espora velha 20$000 Total 128: 315$200 (...)Em ações de estradas de ferro 10: 050$000Em dívidas activas 16: 527$224Em dinheiro .80: 897$906
Partilha p. 9
Monte Mor dos bens descriptos avaliados declarados no inventário por falecimento de José Manoel Cintra é de 331: 945$820(...)Em bens de rais conforme a avaliação 114: 800$000Em móveis e semoventes conforme a avaliação 29: 310$700Em prata conforme a avaliação 360$000Em ações da companhia Paulista e Mogiana 10: 050$000(...)Em dinheiro 80: 897$906Em dívidas activas 96:527$224 soma 331: 945$830
6 herdeiros: cada um = 33: 194$583
Precisamos nos deter agora na análise de um inventário de um cafeicultor de menos recursos do que o Sr. José Manoel Cintra, porque ele apresenta um dos casos que estão no limite do problema da mão-de-obra escrava e a mão-de-obra livre. Como iremos averiguar em seguida, o Sr. Jacintho Alves de Godoy[19] possuía 26 187 cafeeiros e somente dois escravos e uma “ingênua”. Evidentemente, estes dois escravos, sozinhos, não poderiam cuidar de todos estes cafeeiros. Portanto, por inferência, podemos dizer que o Sr. Jacintho, de uma forma ou de outra já empregava mão-de-obra livre em sua lavoura de café. O seu inventário não deixa nenhuma pista sobre isto; por isso não sabemos como ele pagava os salários desta mão-de-obra.
[...] Avaliação p. 7 Escravos Ubaldino, solteiro, pardo, com quinze annos e oito mezes, por (...) 900$000Maria, parda, soltheira, com trinta e quatro annos de idade por (...) 600$000Os serviços da ingênua Escholastica, filha de Maria, com treze annos, mais dez mezes, por (...) 200$000 Inmoveis p. 8 Hum cafezal com dous mil pés (...) por 1: 400$000Hum dito, com tres mil cento e trinta pés, novos (...) 782$500Hum dito, formado, com treze mil e quinhentos pés (...)10: 800$000Hum dito, formado, com dous mil pés (...) 1: 400$000Huma casa de telha, com três portas e duas janellas, entre os cafezais da casa, por (...) 200$000As terras de cultura do sítio inventariado, calculadas em vinte dois alqueires (...) 1: 870$000A casa de morada do sítio inventariado, pasto (...) tulha, paiol, monjollos demais benfeitorias (...) por (...) 2: 500$000 (...) [...]Inmoveis p. 12 Hum cafezal velho, com tres mil cento e cincoenta e nove pés (...) 1: 579$000Hum dito (...) com dois mil quatrocentos e sete pés (...)481$400As terras de cultura do sítio, divididas judicialmente, com quarenta e dous alqueires (...) 3: 360$000A casa (...) do sítio, paiol, monjollo, pasto e mais benfeitorias (...)1: 100$000Huma casa velha e hum monjollo velho, por (...) 60$000(...)
A ancestral de nossas babás.Imagem de internet
O Sr. Jacintho Alves de Godoy, tal como o padre Honório, também estava bastante endividado. Ele devia a quantia de 5: 600$000 a dois credores que escreveram os bilhetes abaixo transcritos. Entretanto, diferentemente da situação do padre, os herdeiros do Sr. Jacintho, como veremos logo a seguir, embora muito endividados, após a morte do inventariado, não tiveram que vender todas as propriedades do espólio para pagar as dívidas porque estas não cobriam todo o valor avaliado dos bens inventariados, embora fossem dívidas relativamente elevadas face ao montante do patrimônio inventariado. O que nos resta por compreender é quais eram as causas deste endividamento. O que podemos supor, de acordo com os indícios claramente delineados nos documentos primários que estamos investigando, é que o empreendimento cafeeiro, em Amparo, no contexto final do modo de produção escravista, era um empreendimento econômico muito arriscado e muito caro para um pequeno proprietário de terras. Principalmente o pequeno proprietário era o que mais enfrentava os efeitos adversos da conjuntura econômica em que faltavam “braços para a lavoura”. Como vimos antes, portanto, o principal problema enfrentado pelos cafeicultores era o problema do suprimento de mão-de-obra e o seu alto custo econômico no contexto da escravidão golpeada com a proibição do tráfico africano transatlântico de escravos desde a década de 1850. Os últimos anos anteriores a 1888 são os anos mais críticos quanto ao “problema do suprimento da mão-de-obra escrava”. O sistema estava chegando à sua exaustão final e isso não ocorria sem que os seus beneficiários pudessem sentir drasticamente, em sua própria pele, as conseqüências imediatas, no dia-a-dia, de uma tal situação. Não sabemos concretamente os motivos pelos quais o Sr Jacintho foi levado a se endividar, assim como o padre Honório, mas supomos que, direta ou indiretamente, eles estavam relacionados ao problema da mão-de-obra escrava em seus últimos anos de existência na região de Amparo.
Vejamos:
p. 14 Diz Manoel Antonio Ponte desta cidade, que o finado Jacintho Alves de Godoy ficou a dever-lhe a quantia de tres contos de réis (3: 000$00) além dos juros estipulados conforme fez certo com o documento incluso e procedendo-se actualmente ao inventario dos bens deixados pelo dito finado requer (...)(...)p. 16 Diz João Estevão Martins, nesta cidade, que o finado Jacintho Alves de Godoy ficou a dever-lhe a quantia de dois contos e seis centos mil réis (2: 600$000) além dos juros (...) Além disso, este inventário prova, por outro lado, como documento específico, que a “ingênua” Escolástica foi avaliada e vendida pela quantia de 200$000. (...)p.22 (...) Certifico que revendo em meu cartório os livros de notas de número vinte nove (...) É a folha quarenta e oito (...) seguinte Escriptura de venda de dois escravos que fazem [ilegível] Peixoto e Companhia a Jacintho Alves de Godoy por dois contos e seicentos mil réis (...) Saibam quantos isto virem que aos quinze de fevereiro do anno do nascimento de nosso Senhor Jesus Christo de mil oito centos e setenta e nove, nesta cidade do Amparo (...) que são senhores e legitimos possuidores dos escravos: Maria, parda de vinte seis annos, solteira, matriculada na Collectoria de Atibaia em vinte de setembro de mil oitocentos e setenta e dois sob o número mil cento e vinte seis de ordem na matrícula geral do Município e dezenove de ordem na relação aprezentada e Ubaldino, pardo de vinte annos, filho de Maria, matriculado sob o número mil cento e trinta e um de ordem na matrícula geral do Município e quatro de ordem na relação aprezentada (...) a Collectoria acima mencionada (...) Disseram mais os vendedores (...) que a escrava Maria acompanha a ingenua sua filha de nome Escolastica, nascida a dez de fevereiro de mil oitocentos e setenta e quatro, matriculada na mesma Collectoria de Atibaia em dezoito de março do mesmo anno sob o número cento e vinte e sete de ordem de matrícula geral do Município e transferem ao comprador os direitos sob os serviços da ingenua (...)(...)p. 35 Orçamento Acharam o Juiz de orphãos e partidores que os bens descriptos e avaliados no prezente inventario importavão na quantia de trinta e um contos quinhentos e seis centos e tres mil e oitenta reis (...) 31: 562$080 Que as dívidas dos passivos importavão uma quantia de seis contos trezentos e dezoito mil e quatrocentos reis (...) 6: 318$400 (...) sendo o monte mor partível da quantia de vinte cinco contos duzentos quarenta e quatro mil seis centos e oitenta reis (...) 25: 244$680 Que dividida esta quantia em duas partes iguais ficavão sendo a meação da inventariante da quantia de doze contos seis centos e vinte dois mil reis trezentos e quarenta reis (...) 12: 622$340. Que dividida a meação do inventariado por seus seis herdeiros tocavão a cada um delles a quantia (...) 2: 103$723 (...)
A conclusão a qual chegamos é a de que o problema maior quanto à necessidade de mão-de-obra era enfrentado pelos pequenos e médios proprietários rurais. Por exemplo, um fazendeiro como o Sr José Manuel Cintra não transparecia sofrer tão agudamente com os custos da compra e manutenção de um plantel de escravos, pelo menos no que diz respeito a seu inventário. Os pequenos cafeicultores, contudo, não tinham recursos suficientes para investir em escravos nem para contratar colonos na Europa, por isso sofriam grandemente com os efeitos da carência de mão-de-obra escrava para realizar os serviços com o cafezal e do endividamento crônico que isto acarretava[20].
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Um grande fazendeiro como o Barão de Indaiatuba, como veremos em seguida, já estava providenciando a substituição da mão-de-obra escrava pelos imigrantes italianos diretamente contratados na Itália. Esta substituição começou através do sistema de parceria. Este sistema não prosperou, entretanto, por uma série de razões que já vimos anteriormente[21]; por isso foi substituído pelo sistema chamado de colonato. O documento que iremos analisar abaixo relata um confronto entre imigrantes italianos, contratados no sistema de parceria, e o seu patrão; confronto este mediado pela autoridade policial diretamente enviada da capital da província para a cidade de Amparo.
É uma pena que os cantos de trabalho dos africanos e seus descendentes escravos não tenham sido preservados literalmente. Os escravos não trabalhavam calados, mas cantando, ao ritmo de suas músicas africanas, em diversas línguas que trouxeram da África. Se o país tivesse preservado estas músicas, teríamos agora um amplo repertório de pesquisa que poderia continuar a fertilizar a riqueza da cultura popular brasileira. Entrento, é possível perceber as origens africanas de grande parte de nossa música e é bom lembrar que a maioria delas vinha do mundo do trabalho.
B. A primeira greve
Visconde de Indaiatuba
Paralelamente ao que estava acontecendo nas fazendas e sítios de Amparo neste momento histórico, no ano de 1878, portanto, um pouco antes da data em que foram feitos os inventários que acabamos de analisar, o delegado Joaquim de Toledo Piza e Almeida, em conseqüência de petição do Barão de Indaiatuba e das comunicações oficiais da autoridade policial de Amparo junto ao presidente da província de São Paulo, foi enviado a Amparo na intenção de inquirir sobre as causas do “descontentamento” dos colonos que estavam morando na fazenda de Salto Grande. Estes colonos estavam se recusando trabalhar, como rezava o contrato que eles haviam firmado com o fazendeiro. Segundo o delegado, esta recusa ao trabalho era uma clara prova de insubordinação e por isso havia receio de que a tranqüilidade da colônia fosse perturbada, assim como o da própria cidade. Por isso ele se dirigiu para a cidade de Amparo, vindo da capital, com um oficial de infantaria e vinte praças a fim de reforçar o destacamento local.
Cheguei na tarde desse dia a cidade de Amparo. Tendo noticia de que os dous colonos que se tinhão arvorado em chefes da greve achavão-se na cidade, procurei ouvil-os sem demora, reduzindo à escripto as declarações que livre e desembaraçadamente fizerão e forão tomadas por um interprete, devidamente juramentado.[22]
Fazenda Salto Grande. Imagem de internet
Segundo ele, estes dois colonos, de nome Giovanne Ferrari e Daniele Bernarde, tinham dirigido por si mesmos e em nome de seus companheiros da colônia, uma reclamação escrita ao Barão de Indaiatuba. O teor da lista de reivindicações era o seguinte:
1. davão como não cumprida a promessa de se lhes fornecer dentro do praso de seis mezes, casas em certas condições, para residencia definitiva de cada familia;2. Observão que os generos alimenticios erão fornecidos pr preços superiores aos do mercado do Amparo; 3. Que recebião quantidade de fubá inferior a de milho que fornecerão de suas plantações; 4. Pedião uma vacca para cada familia; 5. Reclamavão contra a ordem dada para abandonarem terrenos em que tinhão suas plantações de cereais, recebendo em troca outras ainda não cultivadas; 6. Julgavão-se iludidos, não só porque forão informados que a colheita não variava de um anno para outro, mas ainda porque os cafezaes apresentavam grandes falhas; 7. Julgavão-se prejudicados, porque devendo ser as visitas médicas pagas repartidamente por todos os colonos e pelo proprietario, na razão dos escravos da fazenda, pagavão na totalidade e na razão de cada visita aquelle que necessitava dos socorros da medicina; 8. Pediam o fornecimento gratuito de lençoes para o serviço da colheita; 9. Pediam finalmente escola e professor sem onus pecuniario para o chefe da familia.
Segundo o delegado, o Barão de Indaiatuba havia respondido “generosamente” aos colonos, mas não obteve resultado porque os líderes do movimento não tinham cedido e voltado ao trabalho. Estes dois líderes haviam impedido, inclusive, por meio de ameaças, segundo ele,que boa parte dos colonos tratassem de suas obrigações.
Fazenda Salto Grande. Imagem de internet
Giovanne Ferrari, apoiado por seu companheiro, segundo o delegado, explicou-se do seguinte modo: quando veio da Europa, conhecia as condições do contrato que assinou. Ele e Daniele foram encarregados, em Gênova, mediante porcentagem, pelo agente do Barão, de contratar colonos que vieram cientes de seu destino para a província de São Paulo e diretamente para as colônias daquele proprietário. Giovanne e seus companheiros julgavam-se com direito a casas, mas obtiveram apenas uma promessa verbal a respeito do prazo de 6 meses. Eles sabiam das diligências feitas pelo proprietário para contratar a construção das casas definitivas e tiveram conhecimento que foram à colônia dois empreiteiros para examinarem terrenos e materiais e estavam cientes de que foi feito modelo para a edificação projetada. Afirmou ainda que as casas provisórias, com exceção de algumas poucas, são más. Ele sabia que os colonos do Saltinho (município de Campinas) chegaram antes dele e seus companheiros e moravam em boas casas.
Quanto à reclamação sobre os gêneros alimentícios, limitavam-se ao toucinho e ao sal que eram debitados por preço superior ao do mercado assim como as enxadas para o trabalho da lavoura. Além disso, a quantidade de milho fornecido para ser reduzido a fubá, não é restituído na mesma quantidade e que não apresentou sobre este ponto reclamação ao Barão, mas ao diretor da colônia. Também suplicaram o fornecimento de uma vaca para cada família, mas não foram atendidos pelo atual diretor. Afirmou, contudo, que todo o leite que há na fazenda é gratuitamente fornecido aos colonos.
Imigrantes italianos. Imagem de internet
Afirmou Giovanne ainda que não houve troca do terreno de suas plantações e que estão de posse dos que foram distribuídos logo que chegaram, correndo o serviço da derrubada das matas e queima por conta do proprietário. No ato da assinatura do contrato, o Barão havia assegurado que as colheitas eram sempre boas, mas ele não desconhecia que havia “alternativas”. A respeito das falhas dos cafezais, confessou que seriam replantadas as mudas. Quanto aos lençóis, o diretor disse que eram por conta dos colonos, mas ele não se entendera com os seus companheiros de quem era procurador. Ele supunha que a escola devia correr por toda a conta do proprietário, mas este era um ponto que não passava de simples “peditório”.
O delegado, então, decidiu partir para a colônia no dia seguinte a este encontro com as duas lideranças do movimento que estavam na cidade de Amparo. Junto com ele estava a comissão que o presidente da província havia nomeado para fazer uma sindicância mais detalhada sobre o estado da colônia. Esta comissão era composta por: Dr. Antônio Augusto Bittencourt, João Pinto Gonçalves e do comendador Joaquim Pinto de Araujo Cintra. Os chefes da greve foram intimados a comparecerem na fazenda Salto Grande e a força policial teve ordem de estacionar um pouco antes da colônia.
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Quando ele chegou à fazenda, foram reunidos todos os chefes de família para serem ouvidos e conhecer as disposições em que se achavam. Giovanetti Giuseppe apoiou calorosamente a reclamação de Ferrari. Este Giovanetti tinha tradição de autoridade que exercia em certa parte do Tirol, como empregado da comuna. Segundo o delegado, entretanto, eles não tinham um juízo claro a respeito dos diferentes pontos da petição. Eles apenas julgavam-se prejudicados pela falta de casas e pediam concessão para possuir vacas de leite. Outros, mesmo sendo signatários da petição, não demonstraram queixas a serem formuladas, ao contrário, declararam que não trabalhavam por imposição dos líderes (Ferrari, Daniele e Giovanette). Farlani (Forlani?) leonardo, com seis pessoas de família; Donizete Francisco, com família igual e Chinja Catharina, viúva, declararam-se contentes, sem queixas a fazer. Julgaram-se ameaçados por seus companheiros por não aderirem à greve.
Declara ainda o delegado, em seu relatório, que a impressão que ele tinha era que esta greve tenha sido influenciada por pessoa estranha à colônia. Segundo ele, o Barão de Indaiatuba, antes de recorrer à intervenção da autoridade, tentou resolver a greve através dos meios que estavam ao seu alcance, argumentando com o contrato em vigor a nove meses, concedendo certos favores aos colonos.
Segundo ele:
Devi aqui ponderar que a greve formara-se há um mez talvez, continuando entretanto o fornecimento de alimentos. Tomarei em consideração a resposta do mesmo Barão quando tiver de emittir juizo sobre o valor do protesto offerecido. O interprete, cidadão italiano, pessôa completamente insuspeita, residente na capital, fez conhecer aos colonos, chefes do movimento, a resposta do proprietario, mas estes estes tergiversando a cada passo revelaram que estavão compromettidos a manter semelhante attitude illegal, se bem que pacifica, por motivos extranhos aos seus interesses. Basta dizer que ao sahir da colonia na tarde do dia 4, elles apenas insistiam pela gratuidade do ensino na escola que já funcciona e pelos serviços de um medico, de partido. Procurei combinar os termos da reclamação escripta com os do contrato de locação de serviços; examinaei a escripturação da colonia para conhecer o valor da divida dos colonos, chefes da greve e os preços dos generos fornecidos etc.
O delegado informa ao presidente da província que pelo artigo 3 do contrato estabelecido com os colonos, o locatário devia fornecer grátis casas para o locador e sua família. Entretanto, não estava estabelecido um prazo. Segundo ele, o Barão havia informado que embora os colonos estivessem alojados provisoriamente em casas regulares, havia prometido dar-lhes melhor habitação seis meses depois de empreitar a edificação que projetara. Estes contaram, contudo, o prazo desde o momento em que chegaram. O Barão achava que isto não era motivo para que eles não quisessem trabalhar; porque se os colonos não estavam tão bem alojados como os do Saltinho, que chegaram primeiro, não estavam desabrigados. Se algumas famílias estavam morando na mesma casa com os agregados que trouxeram da Europa, é porque os respectivos chefes haviam iludido o agente encarregado de contratá-los, porque só depois de chegarem à fazenda é que deram a conhecer que tinham esses agregados.
Ainda o desejo de accuparem certo e determinado ponto aggrava a situação de que se queixão, pois se por pouco tempo sujeitassem-se as circustâncias occuparião casas muito regulares que si fechadas e que muitos dos nossos patrícios, empregados na pequena lavoura, desejariam possuir.
Segundo o delegado, a probidade do Barão de Indaiatuba, que já fazia 25 anos que perseverava na luta em favor da colonização, e a prosperidade e contentamento da colônia alemã da fazenda Sete Quedas, da colônia de tiroleses do Saltinho, mais antiga que a situada em Amparo, repeliam a possibilidade de fraude no fornecimento de gêneros alimentícios. A reclamação que fazia Ferrari, pelos colonos, se limitava a dois artigos: sal e toucinho, nos dizeres do delegado.
O total de despesas de cada colono e sua família, no entender do delegado, não seria argumento de somenos para aquilatar a justiça da reclamação. O resumo das notas tomadas pelo delegado quanto aos três líderes da greve, Ferrari, Daniele e Geovanette, segue-se abaixo:
Ferrari tem uma dívida de 629$788deduzindo-se o adiantamento de dinheiro na importância de 137$680Fica representando 492$108a despesa durante 9 mezes com alimentação, instrumentos de trabalho, que pelo contracto correm por conta do colono, objectos de casa, e cosinha e mais artigos necessários para primeiro estabelecimento.Para uma família de 12 pessoas sendo:Maiores de 60 annos 1Maiores de 50 annos .2Maiores de 20 annos 5Maiores de 10 annos 3Maiores de 1 anno 1 12a proporção é a seguinte afora frações:1, 826 $ por dia à rasão da família 152$ à rasão da pessôaDaniele com uma dívida de 308$600 rs da mesma procedencia, afora adiantamentos de dinheiro, com 7 pessoas de família sendo 2 adultos, 2 maiores de 10 annos, 3 menores a proporção é a seguinte:1, 143$ por dia a rasão de familia 163$ a rasão de pessôaGiuseppe Giovanette, com uma divida de 370$050, afora dinheiro com 7 pessôas de familia, sendo todos adultos, a proporção é a seguinte:1, 377$ por dia a rasão da familia 196$ a rasão de pessôaAinda mesmo tomando em consideração pequenas quantias levadas à crédito, uma vez deduzidos os gastos de primeiro estabelecimento, adespesa com alimentos desceria consideravelmente. Tão pouca despesa para tal número de pessôas, considerando cada familia de per si, está muito longe de autorizar o allegado quanto à exageração de preços.
Segundo o delegado, se esta alegação não é um simples pretexto, foram sugeridas por algum “especulador”, pois que um dos reclamantes declarou preferir ao fornecimento de gêneros o recebimento de dinheiro para comprá-los no mercado de Amparo. Esta prática além de alterar o sistema seguido pelo Barão de Indaiatuba, com o qual se conformam os colonos da fazenda Sete Quedas e Saltinho, segundo ele, havia inconvenientes ao bom regime e moralidade da colônia do Salto Grande.
O colono só poderia possuir uma vaca depois de ter meios para comprá-la e a sustentar dois terços do tempo em estrebarias e o restante no pasto. De acordo com o delegado, o proprietário não acedeu a este pedido, mas mandou fornecer aos colonos todo o leite que havia na fazenda, gratuitamente. Além disso autorizara a compra de mais 7 ou 8 vacas para aumentar a quantidade de leite distribuído.
Quanto à suposição de que as colheitas devessem ser iguais todos os anos, sem as alternativas que impõe a estação e os problemas tão comuns à lavoura de todos os países, seria uma ingenuidade inadmissível para o delegado.
Ferrari fez declaração conforme o documento n. 1, que dispensa maiores commentarios notando-se que ainda agora teriam elles de fazer a primeira colheita, que talvez rendesse sufficiente para emancipal-os da divida, logo no primeiro anno do contracto, como mi informarão vai succeder aos colonos do Saltinho, ficando tanto para uns como para outros o resultado da plantação de cereaes que houverem feito, quer nos cafezaes novos, de cujo trato se incumbão, quer em lotes de mil braças quadradas, podendo attingir a 2 ½ lotes, para as maiores familias (#2 e 7 do contrato).
Sobre as falhas existentes nos cafezais, Ferrari confessou que o replantio será feito sem utilizar o trabalho do colono como obriga o parágrafo 7 do artigo 1 do contrato. O proprietário informou que os lençóis são fornecidos como os demais instrumentos de trabalho, prática seguida em todas as outras colônias. A escola, segundo o Barão, instituição de mero favor, existe com diminuta retribuição pelo fornecimento de casa, professor e utensílios. Finalmente diz que o serviço de médico depende de contrato que procura efetuar. Segundo ele, não faltava socorro aos colonos doentes. O contrato dos colonos não fala nada a respeito de médico. O delegado declara que em nove meses ele havia visto em algumas contas o débito de 2$000, confirmando os próprios chefes da greve que a declaração do proprietário sobre o tratamento dos colonos.
Após averiguar que a decisão dos colonos era inabalável, sendo inútil conselhos e promessas de concessões e benefícios, e não apresentando uma atitude hostil e ameaçadora da segurança pública, o delegado declara que havia deixado que o proprietário usasse dos direitos que lhe facultam as leis para obrigar os refratários ao cumprimento do contrato.
(...) Para pronpto socorro em caso de necessidade e execução das ordens da autoridade competente, fiz estacionar na cidade a força que me acompanhou. Deixei no dia 5 a cidade do Amparo, dando instruções ao delegado de polícia.De passagem pela cidade de Campinas, julguei conveniente chegar até a Colonia Saltinho, formada em 266 tyroleses, em 32 familias, a fim de examinar se havia qualquer combinação com os colonos do Salto Grande (...)
O delegado tenta saber se naquela colônia havia ecoado o grito de revolta contra o trabalho, já que as duas colônias eram formadas por indivíduos da mesma nacionalidade (mais de 400) que estavam sujeitos ao mesmo contrato. O que ele viu naquela colônia, entretanto, foi contentamento e disposição para o trabalho. Segundo ele, Salto Grande apresentava toda a aparência de prosperidade, com grandes celeiros e plantações dos colonos.
Examinando a escrituração a respeito das famílias, com as mesmas necessidades satisfeitas, socorridos pela mesma maneira, o delegado chegou à conclusão que este era mais um argumento contra a alegação de preços exagerados no fornecimento de gêneros alimentícios; embora os preços do mercado de Amparo fossem superiores ao do mercado de Campinas.
A colônia Sete Quedas, formada por alemães, estava perto da Salto Grande, por isso o delegado aproveitou a oportunidade e visitou-a. Lá ele encontrou o mesmo espírito de ordem e prosperidade.
Afirma o delegado que o sistema empregado era o de parceria, mas o bem estar em que viviam os colonos a completa independência em que viviam, com os saldos positivos que apresentavam, provavam a boa fé e lisura da administração da colônia.
Entretanto, na colônia de Sete Quedas havia três indivíduos refratários que não tinham vindo diretamente da Europa, mas das colônias do governo. Dois deles, após dezesseis anos de residência no país, entraram para a colônia Sete Quedas com a passagem paga pelo proprietário. Um deles deixou uma dívida de 1: 230$00, o outro de 1: 404$000; o terceiro, João Schack, com 25 anos de residência nas colônias do governo, chegou na mesma penúria. O Barão suspeitava que este também procurava seguir o caminho dos outros dois, deixando uma dívida superior a conto de réis.
Estação Jaguary 1910.
O delegado foi informado que um padre italiano, suspenso de ordens, Juliane Fulano, que foi cozinheiro ou dono de casa de pasto na estação de Jaguary (atual Jaguariúna), havia representado o papel de mau conselheiro quando chegaram aqueles colonos de Salto Grande da Europa. Ele teve a prova disto pela leitura de uma retratação escrita em 28 de outubro de 1877 pelos atuais chefes da greve e por outros colonos. Segundo esta retratação, Juliane procurou retirá-los do cumprimento do contrato, dando péssimas informações da fazenda a qual se destinavam. Entretanto, os colonos haviam reconhecido a má fé do informante, segundo o delegado, o que havia dado lugar à declaração escrita à qual havia se referido. Os colonos pediram desculpas ao proprietário por haverem se recusado, durante alguns dias, assinar o contrato aceito na Europa. O padre Juliane tinha “uma pequena situação na Villa do Socorro”, segundo o delegado.
O diretor das obras da matriz de Campinas, engenheiro Bonini, segundo informaram ao delegado, também havia dado conselhos aos grevistas, porque ele expedia emissários para a colônia, alimentando a greve.
(...) Em Campinas encontrei-me com esse engenheiro. Justificando seo interesse pela sorte dos seus compatriotas, em termos convenientes, procurou saber o valor de noticias aterradoras que lhe havião chegado, disse elle. Respondi-lhe que as providencias estavão dadas para garantia de todos e que elle devia provar sua solicitude aconselhando os colonos a trabalharem, porque era illegal e digna de repressão a atittude que tinhão tomado. Manifestamente negou-se a fazel-o, deixando entrever que não era extranho a tão lamentavel resolução que priva o colono dos lucros da colheita (...) desde que abandonarão o trabalho (...) que finalmente affecta de perto os interesses do proprietario e não menos os interesses da principal industria da provincia, pela influencia do exemplo (...)
Quando o delegado falou dos prejuízos relativos à colheita ao engenheiro Bonini, este não sabia que fosse o tempo dela. Disse ao delegado que havia aconselhado o recurso de uma representação à Sua Majestade o Imperador, entregando-lhe a minuta sobre os problemas enfrentados pelos colonos. O delegado respondeu-lhe que em questões daquela ordem decidiam os tribunais do país, cujas sentenças seriam respeitadas por todos os cidadãos (isto é, pelo imperador).
O delegado encerra o seu relatório dizendo:
Expondo a V. Exa com verdade as informações que colhi, confio na decisão do juizo onde o proprietário tem de pleitear o seo direito, já em relação aos colonos, se persistirem na resolução em que os deixei, já em relação às pessoas que porventura simulando protecção para fins indignos ou levados por principios erroneos tenhão concorrido directa ou indirectamente para taes resultados - se tanto for possivel conseguir com as leis em vigor.Deus guarde a V. Exa.Ilmo e Exmo Snr Dr. João Baptista PereiraD. Presidente da ProvínciaO chefe de Polícia Joaquim de Toledo Piza e Almeida
Em seguida temos os anexos do relatório do delegado:
Quadros sinóticos das famílias dos colonos de Salto Grande por nº de ordem; nome dos chefes das famílias; adultos; menores e total = 01 Horlan Leonardo 4 adultos 1 criança total 5 02 Panigaz Gaetano 5 adultos 10 crianças total 15 03 Moses Geovanni 6 adultos 0 criança total 6 04 Chioguia Giuseppe 3 adultos 2 crianças total 5 05 Dorigatti Francesco 6 adultos 0 criança total 6 06 Daniele Bernardi 2 adultos 5 crianças total 7 07 Frachini Felice 12 adultos 5 crianças total 17 08 Bertuzzia Andrea 5 adultos 0 criança total 5 09 Dematte Pietro 5 adultos 0 criança total 5 10 Fedel Domenico 7 adultos 3 crianças total 10 11 Moser Cristoforo 4 adultos 8 crianças total 12 12 Bassi Margherita 5 adultos 0 criança total 5 13 Degaspere Antonio 5 adultos 4 crianças total 9 14 Giovanetti Giuseppe 7 adultos 0 criança total 7 15 Gardume Margherita 5 adultos 1 crinaça total 6 16 Bartolotti Francesco 5 adultos 5 crianças total 10 17 Ferrari Giovanni 8 adultos 4 crianças total 12 18 Toriatti Michele 3 adultos 5 crianças total 8 Total geral de 97 adultos 53 crianças e 150 pessoas
Como podemos perceber claramente, através deste documento, estes italianos que vieram trabalhar na lavoura do café, na fazenda Salto Grande, já traziam consigo a sua experiência de lutas por melhores condições de trabalho e de vida. Não eram simples trabalhadores passivos e submissos aos patrões como desejavam os senhores escravistas. Eles já eram líderes de trabalhadores desde a Itália e sabiam muito bem como proceder durante uma greve; o que revela que muito provavelmente eles já tivessem a experiência da greve na pátria de origem e talvez tenham entrado em contato com as idéias socialistas e anarquistas no continente europeu antes de partirem para o Brasil.
Num Brasil ainda dominado por uma classe dirigente gerada no interior do modo de produção escravista colonial, esta situação era completamente nova. O Barão simplesmente não sabia o que fazer. Ele tentou de tudo que estava ao alcance de sua experiência no trato com os trabalhadores. Acontece que esta experiência no trato com os trabalhadores era uma experiência basicamente adquirida com o dia-a-dia do trabalho escravo. Os termos em que o conflito sobre o trabalho se dava, agora, eram outros; bem diferentes daqueles da escravidão africana. Por isso mesmo ele não conseguiu chegar, sozinho, à solução do problema gerado pela greve. Teve que chamar a polícia e apelar ao presidente da província a fim de que a greve fosse dissolvida. Isto é, como depois seria uma reação freqüente da classe dominante, aquilo que estava acontecendo, sem que ele pudesse resolver unicamente com suas próprias forças, passou a ser considerado um caso de polícia.
C. Os imigrantes italianos na economia urbana local
Partindo do princípio de que somente fazia um inventário quem tinha algumas posses que poderiam ser avaliadas e repartidas entre os herdeiros, podemos dizer que os inventários de italianos constantes no cartório do primeiro ofício da comarca do Amparo revelam um contingente de imigrantes que não compartilhava da sorte comum à maioria dos “carcamos” que vieram trabalhar na lavoura do café. Como veremos em seguida, estes italianos estavam melhor “remediados” que os seus compatriotas que permaneciam nas fazendas de café. Vejamos o caso de Iluminata de Gaspari.[23]
[...]Avaliação Seis casas, pequenas, fazendo frente para a estrada que segue para o Ribeirão, com uma porta e uma janella cada uma. Com fundos até o portão divisando para um lado com terreno de João Pires de Arruda (...) a quatrocentos e cincoenta mil réis cada uma, na importância de dous contos e setecentos mil réis 2:700$000 (...) a primeira casa em construção, com uma porta e duas janellas e (...) quintal (...) por dous contos de réis 2:000$000 As seis imediatas aquella na mesma rua, com uma porta e uma janella cada uma e seus respectivos quintais a conto e trezentos mil réis cada uma, na importância de sete contos e oitocentos mil réis.7:800$000 Hum terreno com noventa e cinco (...) de frente (...) na rua A. Progresso (...) murada de tijolos, com tudo dentro (...) com duas portas e seis janellas e um telheiro (...) tudo por .6: 500$000
Temos aqui quatorze casas que eram de propriedade de Iluminata de Gaspari. Por que uma italiana teria tantas casas assim em Amparo? Evidentemente não era para uso próprio. O inventário não diz, mas podemos pensar que estas casas eram provavelmente alugadas e que compunham uma renda importante para a família de Iluminata.
(...) Orçamento Acharam o Doutor Juiz de Orphãos e os partidores que os bens descriptos e avaliados neste inventário importavam na quantia de dezenove contos de réis, que a margem sae. Que o inventariante tem em seu poder a quantia de hum conto e quinhentos mil réis, que a margem sae. Que somadas ambas as parcellas supra, ficavão sendo o monte partível da quantia de vinte contos e quinhentos mil réis, que a margem sae. Que dividida esta quantia em duas partes iguaes, ficam sendo a meação do inventariante da quantia de dez contos duzentos e cincoenta mil réis, que a margem sae. Que deduzida do monte partível a meação do inventariante, ficam sendo a meação da inventariada a quantia de dez contos e duzentos e cincoenta mil réis, que a margem sae. Que dividida igualmente esta quantia pelos seus cinco herdeiros tocava a cada um delles a quantia de dous contos e cincoenta mil réis que a margem sae (...)
Além de Iluminata, por exemplo, nós também temos um exemplo interessante de como um imigrante italiano, que não era, entretanto, um cidadão da Itália e sim da Áustria, deixou expressa juridicamente a sua vontade sobre a partilha de sua herança. Este testamento revela que o italiano em questão não queria que a lei brasileira comum sobre heranças fosse aplicada em seu caso. Não era um italiano rico, tinha apenas uma propriedade imóvel situada na área urbana de Amparo, mas fazia questão de interferir nas disposições jurídicas a respeito de sua herança[24]. Contudo, aparentemente, pelo processo de inventário, não podemos afirmar que este italiano estivesse envolvido direta ou indiretamente com a lavoura do café. Ele não era um colono.
Transcrevemos, em seguida, o texto integral de seu testamento:
[...] p. 6 Manoel José Vaz Pacheco, escrivão da Província desta comarca do Amparo. Certifico e dou fé, em virtude de pedido que me foi feito verbalmente por Dona Catharina Degaspari que revendo em meu cartório os livros de registros de testamentos no de número sete e folhas vinte verso[ilegível] e tres consta o registro do testamento do theor seguinte: Registro com que falleceu Antonio Degaspari. Theor. Jesus Maria José. Em nome da Santíssima Trindade, Padre, Filho , Espírito Santo, em que nós, Degaspari Antõnio e Catharina firmemente cremos, e em cuja fé protestamos viver e morrer. Este é o nosso testamento de mão commum e ultima vontade. Declaramos que somos casados um com o outro, catholicamente, pelo regimem da comunhão e desta união temos vivos quatro filhos, que são: Luminata, Barbara, Catharina e Benjamim. Somos naturaes de Tyrol (Austria) e eu Degaspari Antonio tenho sessenta e quatro annos de idade e sou filho legitimo de Maria e Degaspari Giusepe; e eu Degaspari Catharina tenho cincoenta e oito annos de idade e sou filha de Catharina e João Baptista Andreati. Declaramos que possuimos nesta cidade do Amparo uma casa sita no prolongamento da rua Treze de Maio, para os lados da Estação, único immovel que nos pertence. Tendo cada um de nós a livre disposição por nossa morte da Terça parte do que possuímos, pelo presente testamento instituímos herdeiro dessa Terça aquelle de nós conjuge que sobreviver ao outro, devendo o herdeiro que receber tal herança trasmitida por sua morte a Degaspari Benjamim, nosso filho legítimo, o que rogamos que faça, por ser última vontade e disposição para depois de nossa morte, e por este ttestamento revogamos qualquer outro. E não podendo escrever o mesmo testamento, pedimos ao advogado desta cidade, Antonio Augusto Bittencourt que o escrevesse como fica escripto, assingando-o eu Degaspari Antonio e assignando a rogo de Degaspari Catharina, o mesmo advogado Antonio Augusto Bittencourt, por não saber ella escrever. Amparo onze de setembro de mil oito centos e oitenta e oito. Degaspari Antonio. A rogo de Degaspari Catharina por não saber escrever, Antonio Augusto Bittencourt. Instrumento de approvação. Saibam quantos virem este publico Instrumento de approvação que no anno do Nascimento de Nosso Senhor Jesus Christo de mil oito centos e oitenta e oito, aos onze de setembro, nesta cidade do Amparo, em meo cartorio e perante mim escrevente juramentado no impedimento do tabellião compareceram Degaspari Antonio e sua mulher Degaspari Catharina, moradores neste município reconhecidos pelos proprios do que dou fé, os quaes se acham no pleno gozo de suas faculdades mentaes segundo meu parecer e das cinco testemunhas abaixo nomeadas e assignadas, em presença das quaes pelos referidos Degaspari Antonio e sua mulher Degaspari Catharina me foi entregue este papel, fichado, dizendo-me ser o seu testamento e disposição de ultima vontade, que mandaram escrever pelo doutor Antonio Augusto Bittencourt, e por não saber escrever, assignando o primeiro de seu proprio punho e me requeriam que lho approvasse como por direito é exigido; e recebendo eu o dito papel, correndo por elle os olhos, achei que estava escripto em duas laudas de papel almasso branco, assignado pelo testador, cujo signal reconheço e a rogo da testadora pelo advogado Doutor Antonio Augusto Bittencourt (...)[...] p. 25
Como vemos, eles eram cidadãos do Império Austro-Húngaro, embora fossem de origem italiana. A região a que se referem, o Tyrol, depois da Primeira Guerra seria anexada à Itália e passaria a integrar os Alpes italianos do Trentino-Alto Adige; o lado italiano do “Tyrol”. Dos quatro filhos que possuíam, apenas um era homem. Se levarmos em consideração a ordem em que são citados no testamento, poderemos levantar a hipótese de que são citados por ordem de nascimento. Assim sendo, Benjamin era o caçula e no entanto ele, por ser o único homem, é o que ficaria com a maior parte da herança. Isto nos faz lembrar o costume hebraico antigo de transmitir a porção dobrada da herança ao filho homem mais velho, o primogênito. Aliás, talvez não por mero acaso, o nome do filho de Antonio de Gaspari é Benjamin, o mesmo nome do filho mais novo de Jacó, o patriarca gerador das doze tribos de Israel.
Aqui temos um tipo patrilinear de transmissão da herança.[25] Se o nosso entendedimento da matemática empregada aqui é correto, poderemos dizer que cada cônjuge possuía um terço da propriedade, o que perfaz dois terços; o outro terço pertenceria aos quatro filhos. Assim sendo, ao morrer um dos pais de Benjamim, ele ficaria com um terço da herança, além da quarta parte do outro terço que tinha junto com suas irmãs. Portanto, ele sozinho possuiria mais do que o outro cônjuge sobrevivente. No sistema de partilha comum ao Brasil desta época a herança era dividida em duas partes iguais, uma pertencendo ao pai e outra à mãe. Quando morria um dos dois, a parte correspondente era repartida igualmente entre os filhos. Ou seja, os cinqüenta por cento da herança total dos bens eram repartidos igualmente pelos filhos. Os outros cinquënta por cento da herança só seriam repartidos quando o outro cônjuge morresse. Este sistema só poderia ser alterado através de um testamento em que se declarasse formalmente como seria repartida a herança em questão. É isto que este italiano fez com a sua herança e o detalhe mais interessante que notamos foi a matemática que ele empregou para favorecer o seu único filho homem em detrimento de suas filhas e mesmo esposa.
Poderemos pensar que ele, ao assim fazer, estava tentando “proteger” o seu filho, porque as filhas, ao casarem passariam a possuir, em conjunto, as propriedades de seus maridos e, portanto, estariam “protegidas” materialmente pelos seus maridos. O filho não; ele teria de ser o “provedor” de sua própria família e por isso mereceria receber uma parte da herança diferenciada em relação às irmãs.
Se Iluminata de Gaspari, que conhecemos através do inventário acima[26] é a mesma que aparece citada como sendo sua filha no testamento, podemos ver que pelo menos uma de suas filhas não ficou “desamparada” materialmente ao deixar a casa do pai. Esta Iluminata de Gaspari de que estamos falando morreu, entretanto, antes de Antonio de Gaspari; porque os inventários respectivos são de 1891 e 1894.
Vejamos, abaixo, os números referentes à partilha da herança de Antonio de Gaspari:
LiquidaçãoActivo
Bens descriptos e avaliados 4: 000$000 Benjamim de Gaspari 500$000 4: 500$000
Passivo
A Domingo de Gaspari 400$000 Custas feitas e a acrescer 400$000 800$000 3: 700$000
Liquidação da décima deixada ao Estado
A inventariante pagou 10% sobre 1: 233$333 réis123$333 Addicional 10% 12$333 135$666
Liquida a partilha 2: 466$666 Terça 1:233$333 Differença em réis 1 3: 700$000
[...]
Através deste inventário[27] que passaremos em revista agora podemos conhecer os bens de um outro italiano que era um comerciante estabelecido na cidade de Amparo já na década de 90 do século passado. Pelo teor dos bens avaliados em seu inventário podemos perceber que ele não era um italiano “sem recursos”. Além disso, ficamos sabendo que a sua família, mulher e filhos, estava na Itália, na altura da feitura de seu inventário. Portanto, não estamos diante de um caso daquelas famílias que vieram da Itália para trabalhar como colonos nas fazendas de café (até poderia ter sido assim, mas já não era neste ano de 1895). Além disso, aparentemente, a família deste italiano, após a sua morte, resolveu voltar para a Itália e vender os seus bens comerciais no Brasil.
[...] p. 13 Huma balança romana, por cento cincoenta (...) 150$000Huma dita (...) 60$000Dous lampiões (...) 60$000Quattro escadas (...) 60$000Dous metros para medida (...) 3$000Hum armario (...) 15$000Hum guarda-louça (...) 20$000Huma prensa (...) 40$000(...)Pinsel para copiador (...) 2$000(...)Hum lote de diversas pessas de chita (...) 3: 410$000Hum lote, número dous, constante de diversas pessas de riscados sortidos, com quatro mil e trinta e nove metros, por (...) 2: 280$500 (...)Hum dito, constante de diversas pessas de louça (...) 720$000Hum dito constante de quinhentas e trinta e nove latas de conservas (...) 7000$000Hum dito, constante de aguardente, cerveja, banha, vinho do Porto (...) 2: 060$000(...)Hum dito, constante de formicida (...) por (...) 1: 270$000(...)
Como podemos averiguar, este italiano tinha um armazém que vendia tecidos, bebidas e produtos alimentícios. Além disso, como veremos em seguida, ele possuía ações de um banco industrial local e da Cia. Mogiana.
Acções p. 17 Em acções do Banco industrial Amparense (...) 10: 000$000(...) da Companhia Mogiana (...) 3: 560$000
Há uma lista de dívidas cobráveis que estavam anexadas ao inventário. Nesta lista há 13 nomes italianos entre um total de 29 devedores. Isto quer dizer que ele era uma referência econômica importante para os seus compatriotas na sociedade local. Se estes indivíduos com sobrenome italiano pediam emprestado ao compatriota “remediado” é porque, evidentemente, não possuíam uma situação financeira folgada como a do Sr. Alexandre Eboli.
Este italianos analisados em seus processos de inventário constituíam, portanto, uma camada pequeno burguesa que contrastava com os seus compatriotas proletários agrícolas presentes na comarca do Amparo. Isto nos indica que nem todos os imigrantes italianos trabalhavam em atividades assalariadas e agrícolas nos começos do processo de imigração dirigida, realizado pelo Estado em função da economia cafeeira da província/estado de São Paulo.
Disto tudo que foi visto através destes documentos específicos, entretanto, não podemos tirar a conclusão que este segmento social presente na grande massa de imigrantes italianos tenha sido um segmento social expressivo no contexto geral da grande massa de imigrantes importados por São Paulo.
Isto é importante ressaltar, porque, entre outras razões, precisamos compreender que a natureza do processo de imigração realizado em São Paulo (que numericamente é mais importante do que o ocorrido nos estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná) é substancialmente diferente do que aconteceu no sul do país. Isto é, aqui o processo se deu com o objetivo de constituir um grande contigente de trabalhadores assalariados que viessem consolidar um mercado de trabalho necessário para o desenvolvimento do capitalismo (capitalismo predominantemente agrícola, nos começos, e depois, em fase posterior, industrial); enquanto que no sul o objetivo era o de povoamento e colonização de áreas não ocupadas pela colonização portuguesa através, principalmente, do pequeno proprietário agrícola.
Além disso, a origem social e geográfica dos imigrantes nas duas áreas em questão é também diferente.
É por isso que, por causa destas e outras diferenças, as comunidades italianas e alemãs do sul, por exemplo, preservaram os seus costumes e tradições culturais, além da própria língua, enquanto a comunidade imigrante de São Paulo “esqueceu” a língua e as suas tradições culturais, “integrando-se” social e culturalmente ao universo luso-brasileiro sem preservar a sua autonomia cultural (a não ser através de certos traços culturais “inconscientes”). Isto é, os imigrantes que vieram para São Paulo foram “deculturados” compulsoriamente por causa dos condicionamentos sócio-econômicos em que foram inseridos, enquanto que os do sul preservaram a sua cultura, sem que com isto estivesse impedida a sua “assimilação” natural ao universo luso-brasileiro dominante.
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Notas 1. Inventário do Pe. José Honório da Silva. 1880, Cx 43. 1º Ofício. 2. Página 44 do inventário. 3. Página 14 do inventário. 4. Segundo Valter Martins, “Durante a primeira metade do século XIX em Campinas, as casas dos agricultores eram um tanto despojadas no que se refere à mobília, mesmo que seus ocupantes não fossem assim tão pobres. Os móveis não eram muito variados, sendo quase sempre os mesmos em todas as casas (...) Dormia-se em catres, camas simples, quando não toscas mesmo, que tinham por estrado um traçado de embira (um tipo de cipó) ou tiras de couro, sobre o qual colocava-se um barulhento colchão de palha (...)” Martins, Nem senhores, nem escravos, p. 108. 5. Segundo Gorender, “(...) em 1857, Davatz registrou a relação de mil pés de café por trabalhador no Oeste Novo. Na fase de decadência final do escravismo, a cada escravo caberiam de dois a três mil pés de café no Oeste paulista, em contraste com 3 500 a 5 000 no Vale do Paraíba. (...) à altura de 1884, cada escravo era obrigado a tratar de sete mil pés ou mais na maioria dos distritos do Rio de Janeiro. (...)” Gorender, Escravismo colonial, p 584. 6. As opções de lazer da população de Campinas, segundo Valter Martins, não eram muito variadas, eram basicamente a taverna e a cachaça. É claro que não podemos deixar de lembrar que a lavoura canavieira havia se desenvolvido no fim do século XVIII e primeira metade do século XIX na região de Campinas (Amparo inclusive) antes do “boom” cafeeiro. E onde havia cana, havia também cachaça. Mesmo após o advento da lavoura cafeeira de exportação, a cana não havia deixado de ser plantada, embora tenha sido reduzida a área plantada em favor do café. A aguardente, portanto, era uma bebida barata e popular. Martins, Nem senhores, nem escravos, p. 96. 7. Segundo Ervino Schmidt “O chefe efetivo da igreja no Brasil era o rei de Portugal. Criação de paróquias, dioceses, seleção de religiosos para a obra missionária eram suas atribuições. O clero e as obras religiosas eram mantidos pela coroa. Os jesuítas receberam desde o início a dotação de engenhos e fazendas servidos por escravos. Os próprios religiosos eram, assim, integrados no sistema latifundiário escravocrata”. Segundo ele, aqui no Brasil, a conquista do território aos índios e a expulsão dos franceses e holandeses, durante o período colonial , assumia o caráter de guerra santa ou de cruzada (o que não era nenhuma novidade para Portugal que havia saído da guerra da reconquista). A tarefa missionária da Igreja Católica portuguesa era a de levar a cultura portuguesa aos índios e aos negros africanos trazidos para a colônia. Segundo ele, dominada pela coroa, a Igreja só podia agir e desenvolver, evidentemente, uma teologia segundo os interesses da coroa, do Estado, da classe dominante e estes eram interesses de dominação, posse e exploração. SCHMIDT, Ervino. “Teologia no Brasil, análise histórico-sistemática”, in Teologia no Brasil: teoria e prática, pp. 20, 21. 8. Robert Slenes cita o documento que comprova que Guilherme Schmidt, em 1872, foi preso em Amparo, por haver rompido o seu contrato de trabalho. Isto é, já havia imigrantes de origem germânica no município, no caso citado, décadas antes da abolição da escravidão. SLENES, Robert, “Senhores e subalternos no oeste paulista”, in História da vida privada no Brasil, p. 283. 9. Em Campinas, na primeira metade so século XIX, como observou Valter Martins, era comum que o taverneiro funcionasse “dependendo de sua situação (...) como um pequeno intermediário em operações financieras de pequena monta, emprestando e tomando emprestado, ajudando e se ajudando, tudo na confiança, mas de papel passado.” Isto quer dizer que a circulação de dinheiro, e a sua posse por parte das pessoas, não era tão disseminada, o que forçava as pessoas a recorrer àqueles que tinham mais chances de possuir dinheiro vivo em caixa para fazer face a pequenas necessidades financeiras, tais como os pequenos comerciantes. Martins, Nem senhores, nem escravos, p. 94. 10. De acordo com Thomas H. Holloway, “(...) Os fazendeiros e o governo consideravam o trabalho na indústria, comércio e outros serviços, e mesmo ocupações agrícolas que não a produção do café, prejudiciais ao objetivo básico, sendo contraproducente uma política mais geral de povoamento do país. Qualquer desvio da corrente imigratória para longe das fazendas do planalto ocidental era um furo nos canais de recrutamento, transporte e distribuição de mão-de-obra que foram estabelecidos na década de 1880 e funcionaram até a década de 1920.” Holloway, Imigrantes para o Café, P. 61. 11. Inventário de Joaquim Franco de Godoi.1880. Cx 43. 1º Ofício 12. Para entendermos um pouco como era formado o preço do escravo precisamos ler o seguinte trecho de Gorender: “O escravo era denominado peça. (...) A peça não coicidia em todos os casos com um único escravo. Podia incluir dois ou três, conforme a idade, o sexo, a robustez (...) A escala de valores sofreu variações e com o tempo, assinala Goulart, peça se tornou sinônimo de negro adulto, na plenitude do vigor físico. (...) O conceito de vida útil foi corrente na prática do escravismo e não se identifica com o conceito de esperança de vida, como vem sendo feito por historiadores e demógrafos. A vida útil de um escravo indicava seu período de capacidade de trabalho plena. (...)” Gorender, Escravismo colonial, pp. 186,187. 13. Inventário de José Gonçalves de Araújo. 1881. Cx 43. 1º Ofício. 14. Inventário de Joaquim de Souza e Silva Júnior. 1886, Cx 45. 1º Ofício. 15.Como afirma Gorender, “se o escravo jovem e vigoroso devia ser preservado, os escravos velhos e inválidos constituíam peso morto no orçamento do plantador. Consumiam alimentos e já não produziam. Havia propietários, certamente, que sustentavam seus velhos escravos (...) A maioria dos plantadores agia de maneira mais simples: alforriava os escravos velhos e já imprestáveis, os quais ao mesmo tempo se tornavam homem livres e mendigos. (...) Alguns senhores resolviam o problema por um processo extremamente direto: assassinavam os escravos inválidos (...)” Gorender, O escravismo colonial, p. 190. 16. “Fugir para as matas não era o comportamento típico dos escravos no século XIX”. segundo Ademir Gebara. “ (...) tal procedimento refere-se muito mais às primeiras gerações de escravos vindas da África. O destino evidente de um foragido, na segunda metade do século passado, era a cidade.(...) O crescimento urbano, a construção das ferrovias, o movimento da fronteira agrícola e a elaboração de uma política imigrantista criaram uma situação nova, enfraquecendo os mecanismos de controle social, na medida em que reduziam a possibilidade de recaptura do foragido. (...) Nesse sentido a fuga é empreendida em direção ao mercado livre de trabalho, e é esse mercado de trabalho em formação o determinante da forma pela qual se inviabilizaria, crescentemente, a escravidão.” Gebara, O mercado de trabalho livre no Brasil, pp. 132 e 135. 17. Inventário de José Manoel Cintra, 1885, Cx 45. 18. Segundo Warren Dean, “O café era a base do crescimento industrial nacional, primeiro que tudo, porque proporcionava o pré-requisito mais elementar de um sistema industrial -a economia monetária. (...) Em todo o Brasil, o dinheiro circulante nas décadas de 1870 e 1880 oscilava entre quinze e vinte mil-réis per capta (algo como de 7 a 15 dólares). Em São Paulo havia apenas dois bancos antes de 1872, ambos filiais de firmas do Rio. Entretanto, assim que os lavradores encontraram um mercado que pagava em dinheiro os seus produtos, aumentou o volume do dinheiro em circulação e do crédito bancário. (...) Com o advento de mão-de-obra livre, o uso do dinheiro difundiu-se pela massa da população. (...)” Dean, A industrialização de São Paulo 1880-1945, pp. 10 e 11. 19. Inventário de Jacintho Alves de Godoy,1887,Cx 45. 20. Segundo Alberto Passos Guimarães, “O Brasil, com 50 anos de defasagem em relação à abolição da escravatura na Inglaterra e suas colônias e com 25 anos em relação aos Estados Unidos, continuava a manter, quanto ao café e ao açúcar, sua produtividade geral em níveis muito baixos até fins do século XIX e começos do século XX. Em 1884, segundo a autorizada informação de Couty, uma saca de café, pronta para ser despachada, custava ao fazendeiro cafezista 15 ooo réis, quando empregado o trabalho escravo, e apenas 7 200 a 9 800 réis, quando produzida com o trabalho de colonos livres. Esse um dos bons motivos para que a escravidão fosse abolida em 1888.” Guimarães, Alberto P., “Uma etapa do crescimento agrícola: da Revolução Industrial à crise geral” in Temas: de ciências humanas, p. 90. 21. Ver SEMEGHINI, Ulisses. Do café à indústria. 22. Doc. 1, Nº 554 da Secretaria de Polícia da Província de São Paulo. 9 de julho de 1878. 23. Segundo José Antônio Segatto”Para resistir às condições de vida e trabalho a que estavam submetidos, os trabalhadores começaram a se organizar. As primeiras formas de organização foram as Associações de Socorro Mútuo, com fins assistenciais e de ajuda mútua em casos de doença, acidente, velhice, etc. Algumas delas ultrapassaram o assistencialismo e começaram a reivindicar melhores condições de vida e trabalho, como foi o caso da Imperial Associação Tipográfica Fluminense que, em 1858, dirigiu a primeira greve de tipógrafos no país, por aumento de salários. Com o passar do tempo, essas primitivas formas de organização foram se desenvolvendo e evoluindo para a formação das Uniões e Ligas Operárias que, por sua vez, no início do século, deram origem aos sindicatos.” Breve história do PCB, p. 17. Inventário de Iluminata de Gaspari. 1891. Cx 36 24. Inventário de Antônio Gaspari, 1894 , Cx 7. 25. Sabemos que os italianos, ao transmitirem o nome aos descendentes, somente herdam o sobrenome do pai e não o da mãe. Na tradição de origem portuguesa é o sobrenome do pai que deve se situar sempre em último lugar e é o seu sobrenome que será transmitido aos netos, mas nem por isso o sobrenome da mãe deixa de constar como o penúltimo sobrenome de cada pessoa. O sobrenome da mãe que se herda é sempre o sobrenome do pai dela. Entre os italianos, somente o sobrenome do pai é transmitido aos filhos; o sobrenome do pai da mãe nunca é colocado junto com o sobrenome do avô paterno nos filhos do casal. Isto revela a estrutura patrilinear que os italianos guardaram dos romanos nos tempos antigos; enquanto os portugueses herdaram o sistema bi-linear de parentesco. 26. Inventário de Iluminata de Gaspari,1891,Cx 36. 27. Inventário de Alexandre Eboli, 1895, Cx 7.
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