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Memórias de uma militância cultural - A Cinememória de Vladimir Carvalho


Vladimir e Socorro Arte digital: Alberto Nasiasene


Fiz um roteiro técnico (ou roteiro de ferro) para o documentário A Cinememória de Vladimir Carvalho, antes da finalização do projeto, mas, na verdade, quando parei para pensar um pouco, cheguei à conclusão de que este é só um roteiro feito a posteriori, porque o que fiz primeiro, antes do roteiro propriamente dito, foram as tomadas. No caso, como eu não sabia se me encontraria realmente com Vladimir, ao sair de casa, em Jaguariúna (em viagem de férias a Brasília para ficar no apartamento de meus pais), e como é que seria este encontro, em Brasília, só tinha uma idéia na cabeça, gravar o próprio encontro, para registrá-lo documentalmente (tanto como historiador, quanto como documentarista digital caseiro que estou me tornando). Não tive tempo sequer de elaborar, formalmente, um conceito como mote (mas, é claro que, desde muito tempo, já havia sim um desejo prévio elaborado em minha mente de registrar, ou por fotografia ou por filmagem, meu encontro com Vladimir; porque não tenho nenhuma foto minha com ele, em Brasília; só não sabia se ele iria deixar que eu fizesse isto).



Portanto, segundo penso, este documentário caseiro e artesanal é o registro deste meu encontro histórico (na micro-história de minha vida) com Vladimir e não se pretende uma abordagem objetiva sobre a Fundação Cinememória, muito menos um grande momento na vida dele. Ao contrário, é o registro de uma relação "intelecto-existencial" minha para com Vladimir Carvalho no momento em que, pela primeira vez, entro na casa onde está localizada a Fundação Cinememória. É claro que eu já sabia que ela existia, mas nunca tinha tido a oportunidade de vê-la (ou porque ele não estava em Brasília, ou porque não havia me encontrado com ele, quando ele estava; além disso, o respeito que tenho para com ele e minha prima é tão grande que eu não queria nunca forçar a barra somente para conhecer a Cinememória). Isto quer dizer que a câmera registra não só minha visita, mas a relação pessoal que mantenho com Vladimir (mas não é uma relação cotidiana, como estou assumindo aqui, porque moro longe e porque, quando vou a Brasília, muitas vezes ele nem está por lá, porque tem um apartamento no Rio de Janeiro e porque viaja muito, tanto para divulgar seus filmes, como o último O Engenho de Zé Lins, quanto para comparecer a alguma atividade ligada ao cinema) através de minha prima Socorro, com quem ele se casou na década de 1960.

Socorro e Vladimir Arte digital: Alberto Nasiasene


Aprendi com Vladimir muitas coisas, desde o começo de minha adolescência. Com 12 anos, em 1972, frequentava o apartamento deles semanalmente porque estava fazendo um curso de escultura com Maria do Socorro numa escola onde ela lecionava artes plásticas (ela, depois, sairia desta escola, que foi à falência, para fundar, com outras sócias, uma escola de artes plásticas que foi importante em Brasília, o Cresça) e o via semanalmente, na hora do almoço, não só a falar de filmes, mas conversar com amigos ligados ao cinema, ou alunos da UnB que faziam o curso com ele. Portanto, não é exagero dizer que, como menino muito tímido, que só escutava e ficava fascinado, sem abrir a boca, eu absorvia de Vladimir não só o que via ele fazendo em cinema documentário, mas também a sua personalidade, fascinante para mim. Por isto é que digo que ele é o pai que eu sonhei ter, porque, realmente, em minha fantasia de menino, com 12 anos, cursando a sexta série em Brasília, em pleno período ditatorial Médici, eu sonhava sim (fantasia infanto-juvenil) na possibilidade de ter nascido filho dele e dela. Claro que hoje em dia não gosto de falar muito nisso porque não quero magoar meu pai (mas também não quero negar esta fantasia inocente de menino fascinado pela pessoa de Vladimir, não é pecado contra Deus, ou contra meus pais e contra eles). Na época, eu mal conhecia a obra dele, tanto porque ela ainda estava sendo elaborada, quanto porque o único filme que me lembro ter assistido, no cinema em Brasília, junto com a família, foi a Incelença para um trem de ferro. Eu sequer tinha consciência do que vinha a ser um curta-metragem, porque me lembro, muito criança ainda, que gostei muito do filme (sobre a Maria Fumaça e sobre minhas raízes paraibanas) e que, quando sentia que estava ficando bom, simplesmente ele acabou (não entendi porque acabou logo, já que estava acostumado a ver filmes longas-metragens e ficar um bom tempo dentro dos cinemas de Brasília; fiquei decepcionado).

O primeiro longa-metragem de Vladimir que vi foi O País de São Saruê, no Festival do Cinema Brasileiro de Brasília, em 1979, quando ele foi apresentado pela primeira vez, depois que a Censura Federal o liberou de um cativeiro de quase dez anos (mas eu já sabia da existência dele, antes, desde o começo dos anos 1970, porque via Vladimir se referir a ele). Eu já tinha 19 anos (portanto, já entendia o que era um curta e o que era um longa) e estava prestes a embarcar para a Paraíba para fazer o curso de ciências sociais na Universidade Federal da Paraíba. Portanto, além de toda a intensa atividade cultural revolucionária que pratiquei em minha escola secundarista (com as monografias de análises literárias que foram premiadas no concurso da Maratona Literária, mas também com a direção do cineclubeestudantil secundarista que fundei), ter assistido ao País de São Saruê foi um impacto profundo em minha vida que me ajudou a delirar pensando que estávamos prestes a vivenciar uma Revolução que não só derrubaria a ditadura militar, mas implantaria o socialismo em nosso país. É claro que não foi o filme que me induziu a pensar assim, mas toda a minha vivência com a produção cultural brasileira e brasiliense. Ao estudar a obra de Glauber Rocha e seus escritos, como estou fazendo agora (para ir direto à fonte e ler, pela primeira vez, os textos escritos por Glauber como estou lendo agora, porque, afinal, na época, Glauber ainda não tinha publicado estes livros que estou lendo agora), estou tendo a confirmação de que muitos dos intelectuais mais proeminentes deste período realmente falavam em Revolução e tinham convicção que estávamos num processo revolucionário que levaria ao socialismo. Isto quer dizer que não é somente um delírio de adolescente o que senti. Além disso, convivi, indiretamente, com o movimento estudantil universitário que estava começando a renascer, nos anos de 1977 a 1979, tanto porque moramos perto do campus da UnB, quanto porque meu pai trabalhava na reitoria da UnB e meu colégio de segundo grau era um prédio que pertencia à universidade (hoje ele faz parte do hospital universitário), e com a intensa movimentação da sociedade brasileira em torno da Anistia ampla, geral e irrestrita (tanto porque minha irmã era secretária de um deputado da Paraíba e eu fui algumas vezes sim ao gabinete deste deputado onde ela trabalhava, gabinete que ficava no mesmo andar do deputado Alencar Furtado, se não me engano, que era da liderança jovem do MDB, quanto porque o movimento estudantil clandestino estava intensamente engajado nesta causa). Paralelamente a isto, estavam ocorrendo as primeiras greves de massas no ABC paulista (com o surgimento das novas lideranças sindicais, como o Lula), as primeiras greves dos professores em Brasília (às quais dávamos todo nosso apoio de estudantes), a Revolução Iraniana (eu não sabia ainda que aquilo se tornaria um teocracia que nada tinha a ver com o ideário socialista secular de esquerda), a Revolução Sandinista e a invasão das tropas russas no Afeganistão. Se eu me equivoquei quanto à Revolução no Brasil, não estava sozinho, mas dentro de um amplo movimento sócio-político e cultural.

Somente a estas alturas de minha vida é que estou conseguindo resgatar as memórias deste período que vivi em Brasília, no final dos anos 1970 e, dentro delas, a forte influência que Vladimir Carvalho teve em minha formação intelectual, na adolescência. Neste sentido, como Vladimir foi o primeiro intelectual nacional-popular (no conceito de Gramsci) que conheci em minha vida (na aurora de minha vida, como costumo dizer), posso dizer sim que, antes de todos os outros que iriam também me influenciar posteriormente (como meus professores secundários e universitários), foi ele que se tornou o meu pai intelectual (afinal, o sonho que tinha se realizou de alguma maneira). Não posso esconder, nem quero, a forte influência intelectual pessoal (e afetiva, porque o considero um ser sagrado e, se não fosse protestante, o idolatraria) que recebi e ainda recebo dele. Mas isto não quer dizer que minha personalidade intelectual é uma imitação ou uma continuidade da de Vladimir, porque afirmo que é uma influência essencial e dialética, quanto a princípios (num primeiro momento, minha história de vida é completamente diferente da dele, mas, em um sentido mais profundo, há sim uma semelhança, quanto a princípios, mas não quanto a trajetórias, porque sou suficientemente realista para saber que jamais serei o que ele é para o cinema). Isto é, muitas vezes creio até que nem mesmo ele tem consciência de certos princípios estéticos e teóricos (porque ele vive dizendo que não é um teórico, ou um pensador; embora eu pense que é sim, mesmo que sem perceber claramente) que, para mim, constituem a principal influência dele em minha vida. Por exemplo, a valorização da cultura popular, mas numa perspectiva erudita (que cedo aprendi em minha vida). Outro princípio, o da militância em prol de um mundo melhor, que seja mais favorável aos excluídos (na tradição franciscana, que recebi dele e de Socorro). Outra, a coerência de produzir uma obra moldada em princípios humanistas e socialistas, mas com qualidade estética não-panfletária e esquemática. A busca constante da qualidade, da erudição, do trabalho persistente. Sem falar em sua característica de ser despojado (não é uma estrela, mesmo sabendo da importância que ele tem para o cinema documentário brasileiro, ele sabe, por outro lado, como diz o Eduardo Coutinho, que sua produção cinematográfica é marginal e muito distante da "indústria do cinema comercial," portanto, a maioria esmagadora de nosso povo jamais vai tomar conhecimento sequer da existência dele) e simples, como ser humano, acessível aos mais humildes (porque tem empatia carismática para entender os que estão por baixo em nossa estratificação social ou os que são simplesmente tímidos, como eu era, aos 12 anos). Ora, estes são valores que eu cultivo desde minha infância e devo creditar a ele, em primeiro lugar, a origem desta maneira de ser que, desde pequenino, absorvi e que, para mim, compõem um repertório de valores sagrados proféticos e evangélicos que se perdem em nossa história civilizatória.

Vladimir e o menino na rua pedindo um trocado Arte digital: Alberto Nasiasene


Mas, como comecei, aqui em cima, a dizer que este roteiro que elaborei é um roteiro a posteriori, quero explicar que isto ocorre não poque gosto de improvisar as coisas e que vou fazendo as coisas sem nenhum planejamento. Não. Ao contrário, tenho verdadeiro horror ao caos. O que acontece é que, desde o começo, quando, ainda em 2007, ao fazer o curso da pedagogia da imagem, neste Museu da Imagem e do Som de Campinas, afirmava que, se tivesse que fazer algum projeto de audiovisual em movimento, não seria um trabalho de ficção, mas de documentário e que, se acaso isto se concretizasse um dia, seria na maneira de fazer cinema verdade que o faria. Isto porque eu já estava praticando antes, com muita intensidade, a fotografia documentária (e tinha consciência já que estava, cada vez mais, enveredando pelo caminho da narrativa imagética). Claro que eu ainda não sabia muito, teoricamente, sobre o cinema documentário, em sua corrente francesa de cinema verdade. Na verdade, nem conhecia ainda Jean Rouch, muito menos análises sobre o tipo específico de documentário etnográfico que ele realizou. Por isto mesmo é que tive que ir comprar livros e mais livros para entender minimamente o que eu já sabia que queria fazer, mas sem ter constituído ainda meu solo teórico consistente. Como eu já tinha alguns dos livros que Vladimir me ofertara (inclusive o roteiro publicado de seu longa mais importante, Conterrâneos Velhos de Guerra; um grosso volume não só com o roteiro, mas com diversos ensaios de vários autores, publicados em vários órgãos, sobre o filme), já sabia que a maioria dos filmes de Vladimir Carvalho foram feitos sem um roteiro prévio (a não ser os primeiros, como Aruanda, feito a partir de um roteiro de ferro) por causa do tipo de documentário que ele construiu. Além disso, em minha prática fotográfica, minha abordagem sempre era a de evitar "a pose" fotográfica e a de me inserir concretamente no cotidiano para somente captar flagrantes do momento em ângulos que evitassem o convencionalismo. Por isto mesmo é que tive muita dificuldade inicial em elaborar um roteiro de ferro, em duas colunas. Quando fui pesquisar teoricamente o tema específico dos roteiros cinematográficos, lendo não só livros teóricos sobre a questão, mas roteiros propriamente ditos, como Central do Brasil, vi que, mesmo nos filmes de ficção, os roteiros publicados eram mais próximos do teatro escrito do que destes roteiros técnicos de edição.


Como eu ainda não tinha experiência de edição de planos de filmagem, claro, não poderia ainda ter um mínimo de vivência de construção de projetos de audiovisual. Como momento preliminar de aprendizagem, preferi começar a explorar as potencialidades do programa Movie Maker do Windows na criação de clipes de fotos, com trilha sonora. Esta prática intensa de criação de clipes, que comecei a levar para a sala de aula, foi o que me preparou para começar a fazer minhas tomadas com minha primeira câmera de filmar amadora da Sony. Isto quer dizer que, ao fazer minhas primeiras tomadas, não estava completamente na estaca zero, porque já sabia bem o que queria e o que não queria (e talvez seja isto o que explique os diversos projetos que já tenho em andamento; pelos meus cálculos atuais, são seis projetos, em menos de um ano em que estou com esta minha primeira câmera filmadora). De certa forma, ainda que guardadas as devidas proporções, minha experiência com a filmadora é uma continuidade do que eu já estava fazendo com a máquina fotográfica (se recuar até o primeiro momento em que comecei a fotografar, posso dizer sim que, sob a influência de Vladimir Carvalho, é uma continuidade com o que eu já estava fazendo no final de minha adolescência; se quiserem averiguar, vejam as fotos que fiz neste período em meu fotoblog http://velhascaminhadas.nafoto.net/). Eu estava, inconscientemente, ardendo de desejo de fazer o que estou fazendo agora desde minha adolescência (mas, ao começar o curso da pedagogia da imagem em 2007, não sabia ainda). Há especificidades de possibilidades técnicas e de diferenças de linguagens (porque a captação das imagens no tempo em movimento é um diferencial marcante entre uma câmera fotográfica e uma câmera filmadora), mas, por outro lado, há também continuidades (por exemplo, os princípios do enquadramento e os temas escolhidos para serem visualizados no visor).

O que sinto agora, em 3 de maio de 2009, é que já estou começando a criar um ritmo e um estilo próprios de realizar artesanalmente documentários digitais e caseiros. Já tenho alguma vivência, mínima que seja, para afirmar que estou até achando fácil fazer um roteiro técnico, a posteriori, de edição, mas, antes disso, de planejar o que vou querer captar (tenho todo o trajeto elaborado para fazer o Plantando o Saber que incluí como diário de campo escrito, junto com os arquivos de imagens e sons), porque, se por um lado, cinema verdade não se dá por meio de um roteiro de ferro prévio, por outro, não significa total falta de planejamento e busca aleatória de acasos (a não ser que se busque conscientemente isto mesmo, dentro de um projeto intelectual prévio que sirva de partida e que delineie o que se quer alcançar com uma busca aleatória, dentro de um contexto qualquer), porque está solidamente embasado em um solo teórico e de pesquisa (no mínimo, sempre temos vivências e conhecimentos prévios ao fazer o que fazemos no aparente improviso do momento; nunca se aponta o visor sem algum motivo, mesmo que inconsciente).

Nunca me esquecerei que foi de Vladimir que recebi um jogo de goivas (espécie de formões menores que servem para entralhar a madeira) para trabalhar a madeira e o via frequentemente trabalhando em suas matrizes de xilogravuras e em suas inúmeras esculturas em madeira, quando era adolescente. Por isto é que escrevi, aos 21 anos, quando ainda era estudante da UFPB, que fui moldado por ele e por Socorro. Ela me ensinou a trabalhar a pedra sabão, um tipo de rocha mole encontrada em Minas e Goiás, lá naquela escola de classe média onde trabalhou primeiramente, antes de fundar o Cresça, procurando encontrar na pedra a forma ideal que ela já sugeria. Isto é, a intenção de fazer uma escultura dialogando com a matéria-prima na qual ela seria plasmada é o que de mais importante ficou de meu aprendizado com minha prima Socorro, bem no começo de minha adolescência, aos 12 anos. Este aprendizado da dialética da criação artística, portanto, aprendizado essencial para a vida, aprendi foi com Socorro. Até hoje, em tudo que faço, vejo o resultado desta educação artística em minha vida; mesmo quando estou apenas dando aulas, porque, de alguma forma, como dou aulas na rede municipal de Campinas exatamente para esta mesma faixa etária que eu tinha em 1972, tento fazer o que eles fizeram comigo: quero ajudar a moldar vidas para a construção de um mundo melhor. Nas hecatombes que aconteceram em minha vida, especialmente depois que tive que fugir da Paraíba, às pressas, em 1983, para não morrer assassinado (pelos capangas de aluguel da oligarquia local), estas goivas se perderam, mas sinto ainda que, de alguma maneira simbólica, elas ainda permanecem comigo, em meu interior, mesmo quando estou praticando fotografias e filmagens digitais, porque o que produzo agora não deixa de ser uma gravura (a minha leitura pessoal e artística da realidade na qual estou mergulhado) e uma escultura virtual que se movimenta e fala.

Socorro e Vladimir Arte digital: Alberto Nasiasene


Este documentário, A Cinememória de Vladimir, caseiro e imperfeito que seja, é o retorno a um diálogo que mantenho com Vladimir, consciente e inconscientemente, desde minha adolescência. Portanto, além de tudo, é minha homenagem pessoal a ele. Talvez eu esteja falando mais de mim do que dele, através do documentário. Ou seja, ele expressa mais meu encantamento com a pessoa e a obra dele do que uma abordagem objetiva do que seria a Fundação Cinememória enquanto repositório de produções cinematográficas e suas parafernálias infra-estruturais.


Alberto


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