Vladimir Carvalho: o segredo está na estética cinematográfica, não no equipamento
Vladimir Carvalho dirigindo a filmagem para O Homem de Areia 1979
Só com a prática é que vamos entendendo como utilizar, ou maximizar, as possibilidades técnicas do equipamento que utilizamos, dentro de um estilo estético próprio. Nos projetos que tenho elaborado e realizado, implicitamente, está também colocada a discussão da própria utilização do equipamento que está em uso nas filmagens como conteúdo também focalizado nos documentários (para além dos motivos e personagens). Como já me referi, milhares de vezes (mesmo sem querer ser repetitivo e maçante), que escolhi o caminho do "Cinema Verdade" para enveredar na produção de documentários, desde o princípio, para além do próprio conteúdo e do estilo estético de fazer um documentário, tenho assumido, sem medo, a própria discussão da tecnologia digital que utilizo para as filmagens, em sua versatilidade, mas também em suas limitações técnicas (e estéticas). Em meu diálogo com Vladimir, no estilo "Cinema Verdade", para além das palavras e das imagens interiores da Cinememória, há também este aspecto que quero destacar: está na pauta do diálogo com Vladimir, o tempo todo, a própria discussão dos limites e das possibilidades não só de meu equipamento digital amador da Sony, mas também os limites e possibilidades das outras câmeras cinematográficas que ele tem em sua Fundação museológica a respeito do cinema. Ou seja, ele mesmo se dirige, algumas vezes, à câmera que estou usando, enquanto câmera, em comparação com as outras câmeras de filmar em 16mm e 8mm.
Há na Cinememória uma câmera filmadora em 35 mm exposta no acervo permanente, um tipo de câmera bem versátil, de mão, em que foi filmado Aruanda (a câmera do exército americano, feita para acompanhar as batalhas; já vi toda uma série passada na TV Escola com o resultado de anos de filmagens no cenário da própria Europa na Segunda Guerra Mundial; a série chama-se As Cores da Guerra). Entretanto, em meu encontro e diálogo intelecto-existencial com Vladimir (em que consiste o documentário, como argumento e como roteiro, em primeira instância), estou inserindo-me conscientemente, com a câmera na mão, também na discussão tanto dos equipamentos utilizados nas estéticas do cinema documentário e de ficção brasileiros, quanto dos diversos suportes tecnológicos onde estas estéticas foram gravadas (tanto nas câmeras cinematográficas em película, celuloide, quanto nas câmeras de TV de videotape que ele tem por lá) para serem reproduzidas (e aqui há uma discussão da metalinguagem do cinema documentário sim que também estou fazendo, em segunda instância). Isso só, já pode transformar este documentário (com todos os seus defeitos que não quero esconder) em algo de, no mínimo, valor histórico e dialógico, porque, o próprio documentário consiste em uma aula (gravada para ser veiculada para quem quiser e se interessar pelo assunto) que obtive de Vladimir (ele que foi, durante décadas, professor de cinema documentário na UnB).
Capa da biografia de Vladimir Carvalho lançada pela Imprensa Oficial de autoria de Carlos Alberto Mattos
Como nunca tive o privilégio de frequentar os bancos universitários, como aluno oficial do curso de comunicações da UnB, em Brasília, nas aulas de Vladimir Carvalho (porque quando fui aluno da UnB o fui no departamento de sociologia, não no de comunicação social), esta foi a primeira vez que tive uma aula, embevecido sim, confesso, sobre este assunto específico com Vladimir (e uma aula nos princípios paulofreireanos de dialogia). Meu relacionamento com ele, desde minha infância, foi um relacionamento de família, como disse outras vezes (a não ser de sua esposa Socorro, minha prima em segundo grau, é que fui aluno formal, no curso de escultura que fiz com ela, como convidado pessoal dela, junto aos outros alunos mais velhos que ela tinha naquela escola particular de classe média onde ela lecionou primeiramente em Brasília antes de fundar o Cresça). Portanto, por incrível que possa parecer, o documentário registra sim, no modo de cinema verdade, este meu encontro dialógico com a Fundação Cinememória e com a própria memória pessoal de Vladimir, enquanto ele ainda está vivo (por isto é que esta foi uma oportunidade que devo agradecer a Deus e a Socorro, em primeiro lugar, porque sem ela, e sem a vontade de Deus, eu morreria sem jamais ter tido esta oportunidade na vida), sendo que eu estou me colocando claramente como discípulo (aluno) de um mestre que tive desde minha infância (mas que nunca teve a oportunidade concreta de sentar no banco escolar diante do professor Vladimir para tomar uma aula sobre cinema documentário) no momento em que, pela primeira vez, estava maduro e minimamente qualificado para realizar este tipo de diálogo com ele.
A capa e a contra-capa do DVD O País de São Saruê
Se vocês perceberem, o tempo todo Vladimir dialoga com o novo mundo das tecnologias digitais e com as novas gerações que irão surgir (para quem ele também se dirige através de minha câmera) e que já estão completamente imersas na nova era digital, sendo ele um homem da película. Ele estranha sim os referenciais que estou utilizando e não tem familiaridade para com o uso deles, porque ainda continua filmando tudo em película (a não ser a telecinagem que ele usa, feita pelo laboratório, sua mente e sua prática estão intimamente associadas ao universo da película e do analógico e ele ainda não enveredou no mundo inteiramente digital; até sua escrita ainda se dá por meio de uma velha máquina de escrever manual, não por um computador que ele não tem). Entretanto, como aquariano que ele é (em termos de arquétipos culturais é que estou falando, não em termos de um fundamentalismo astrológico no qual nem ele, nem eu acreditamos), assim como eu, não penso que ele seja completamente refratário ao futuro e à tecnologia digital (inclusive porque já utiliza algo dela, por meio da telecinagem, quando está decupando seus filmes; isso fica bem claro no documentário, no final, quando ele chega ao seu ateliê pessoal onde trabalha em seus projetos e vai explicando para mim como se dá este trabalho, em sentido prático) que tende, cada vez mais, a predominar até que o mundo da película seja apenas mais uma peça de museu (como aquelas inúmeras máquinas de super 8 que ele mostra na Cinememória, como importantes elos de ligação que liga o nosso presente digital ao longo processo que nos antecedeu).
Apesar de tudo isso, o que quero destacar, para finalizar esta postagem, é que o segredo da obra de um Vladimir Carvalho (ou um Glauber Rocha) não está no equipamento técnico com o qual ele filmou seus filmes, nos diversos sets concretos de filmagens nos quais atuou, nem no suporte em película no qual ele fez todos os seus filmes documentários (e talvez o meu documentário seja mais uma maneira que encontrei de afirmar isso), mas nos princípios estéticos que ele assimilou em suas fontes de formação (e referências teóricas que interiorizou) e em seus motivos intelecto-existenciais bem particulares à sua história de vida (é isto que explica sua obra, em essência). Isto quer dizer que a riqueza de sua obra consiste muito mais nos conteúdos aos quais ele deu estruturas narrativas peculiares, em seu estilo estético pessoal cinemanovista de fazer cinema documentário (e aqui há uma diferença fundamental entre a sua carreira face à carreira do Eduardo Coutinho: Vladimir, desde o começo, só trabalhou e só quis trabalhar com documentário, nunca com ficção ou com televisão, como fez Eduardo Coutinho depois da experiência traumática do primeiro Cabra Marcado para Morrer, no qual Vladimir foi o assistente de direção do Coutinho) desde Aruanda até seu último filme (o que ainda será feito antes dele morrer).
Eduardo Coutinho com Cláudio Assis (diretor de Amarelo Manga e Baixio das Bestas)
Por isto é que sigo acreditando e afirmando permanentemente que não devemos ter nenhum fetiche face à máquina. Ao contrário, acho até que devemos ser iconoclastas em certo sentido (diante destas gerações de consumistas desenfreados que pensam que é suficiente ter dinheiro para comprar o último modelo, top de linha, lançado no mercado a cada ano e meio, para ir fazendo, automaticamente, bons filmes). O segredo da boa arte não está no melhor equipamento (e com isto não estou dizendo aqui que desprezo os melhores equipamentos e que eles não tenham nenhuma importância); o mais caro e o mais sofisticado (com uma parafernália de elementos). O segredo ainda continua sendo a velha criatividade e a cultura humanística de quem usa a máquina, porque estética não é um conceito que venha embutido em máquina alguma (nem nos futuros robôs planetários, ou androides; que nunca poderão ser, verdadeiramente seres humanos, com emoções, sensibilidades e sentimentos e, por isto mesmo, jamais serão verdadeiros artistas). Esta é a herança maior que sempre guardarei do marxismo e do humanismo que o antecedeu desde a aurora de nossa história ocidental (e nada indica que estes velhos princípios estão em vias de desaparecimento por causa da era digital que está, cada vez mais, assumindo nosso mundo, porque trata-se de mais uma inovação técnica com novos suportes que jamais substituirão totalmente nossa criatividade autenticamente humana).
Meu documentário sobre Vladimir, portanto, está cheio de erros e repletos de imperfeições técnicas, mas em momento algum estou querendo escondê-las, mas explicitá-las (faz parte de meu projeto de "Cinema Verdade"). As limitações maiores são: o microfone fixo na filmadora (que capta automaticamente qualquer som no meio ambiente, sem distinguir foco algum e sem estabelecer escalas de prioridades subjetivas e isto só poderei corrigir quando comprar outra filmadora, com microfone separado e protegido com algum material macio que não capte, por exemplo, o barulho do vento) e o foco automático (não há como ajustar o foco manualmente em minha filmadora, por isto é que, muitas vezes, a máquina fica "confusa" e causa certas imperfeições para as quais Vladimir me chama atenção o tempo todo, sem saber que estes "defeitos" estéticos ocorrem não-intencionalmente por causa do tipo de equipamento que estava utilizando; este tipo de defeito eu só poderei eliminar totalmente quando comprar uma outra câmera filmadora); há também, em alguns momentos, problemas quanto à granulação das cores, por causa da resolução e sensibilidade digital da câmera que, com baixa luz, não é lá nem sequer razoável (defeito que Vladimir, acostumado com a película, também indica, querendo me advertir, pensando que eu não estava vendo; isso não se dá porque é tecnologia digital, mas porque estava usando uma câmera amadora que é boa para certos propósitos, mas não para outros, mas foi a que, em meu atual orçamento, pude comprar e com a qual consegui fazer este documentário que sempre será, para mim, importantíssimo, como registro deste encontro existencial e como aula-diálogo que se tornará, para os que não estavam ali, além de mim e ele, uma aula-espetáculo também, usufruída no aconchego do sofá, para quem tem algum interesse em conhecer Vladimir e sua Cinememória).
Alberto Nasiasene
Jaguariúna, 28 de maio de 2009
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