O sonho que sonhei não sabia que se transformaria em realidade
Vladimir Carvalho na Cinememória. 6 de janeiro de 2010.
Foto: Alberto Nasiasene
Uma das grandes emoções que tive foi a de poder reconectar minha vida à trajetória intelecto-existencial de Vladimir Carvalho. Eu realmente não imaginava que isto fosse possível um dia, porque ele era (e ainda é) para mim um mito e um "monstro sagrado" habitando um mundo inacessível. Além disso, as melhores e as últimas imagens que eu guardava dele em meu interior eram as que tinham sobrado do traumatismo craniado que sofri ao ser atropelado voluntariamente em fevereiro de 1984, em Brasília. Quando despertei do coma, na verdade, pensei que estava no inferno, tal era a certeza de que, daquela vez, eu realmente teria morrido. Como eu era completamente ateu, nem sequer passou pela minha cabeça, nos primeiros segundos em que despertei do coma, que não havia morrido e que estava num hospital. Eu tinha uma certeza materialista (histórica e dialética) de que não havia vida após à morte e, ao retomar a consciência, o que surgiu em minha mente (tão atordoada e abatida pelo traumatismo craniano) foi a certeza de que já não estava mais no mundo dos vivos e que precisava me defender das terríveis acusações e punições que sobreviriam a mim por ter acabado com minha própria vida (como se tivesse penetrado num inferno arquetípico da Divina Comédia de Dante). Além disso, como já escrevi aqui neste blog, minha memória sobrevivente estava toda desarrumada e eu não conseguia fixar nada na mente. Demorou muito para que eu, depois de tantas perguntas seguidas aos que apareciam ao lado de meu leito hospitalar, percebesse que estava vivo e em um hospital, porque tinha sido atropelado (eu sempre ficava surpreso quando me afirmavam isto, mas não fixava esta informação na mente e tornava a perguntar novamente, sempre e sempre).
Vladimir Carvalho na Cinememória. 6 de janeiro de 2010.
Foto: Alberto Nasiasene
Então, acreditem em mim quando digo que perdi minha memória e comecei a viver uma outra vida que era muito diferente daquela que eu tive até os 23 anos de idade, no ano anterior de 1983. Fiquei religioso e paradoxalmente ingênuo, aos 24 anos, após o despertar do coma, como se estivesse me infantilizado, ou tivesse mergulhado mais profundamente em minhas memórias infantis (que foram as que mais permaneceram intactas dentro de mim). Foi quando abracei o evangelho (como um desejo antigo, de infância, de ser um clérigo, que estava, finalmente, se realizando). Logo depois eu viria viver num seminário protestante na estrada da Rhodia, em Campinas, estado de São Paulo, com 25 anos, em 11 de fevereiro de 1985 (mesmo ano em que o Brasil começava a viver uma outra fase histórica, depois da ditadura militar); abandonando ritual e existencialmente toda a vida pretérita. Estes dois fenômenos que vivi, o traumatismo craniano e o retiro religioso tardio (com o consequente deslocamento geográfico para uma atmosfera sócio-existencial em tudo diferente de minha vida brasiliense e paraibana), causado por um conversão a um novo sistema de valores que remoldaram minha vida, longe de minhas raízes e de minha família, é que podem explicar porque é que digo que Vladimir Carvalho passou a habitar permanentemente este mundo mítico anterior que só existia dentro de mim.
Vladimir Carvalho na Cinememória. 6 de janeiro de 2010.
Foto: Alberto Nasiasene
Acompanhei parte da trajetória pública de Vladimir Carvalho desde 1985, pela imprensa escrita e pela televisão, mas perdi o contato pessoal com ele (não com Socorro, com quem ele se casou nos anos 1960). Eu só não sabia que um dia ele viria entrar concretamente na minha vida como entrou em 2009 (muito menos que, por meu intermédio e do Batata, ele viria para prestigiar a Semana Vladimir Carvalho no Museu da Imagem e do Som de Campinas). Isso tudo era só um sonho longínquo que estava mais para um mera fantasia de menino paraibano sonhador do que para uma possível realidade concreta, já que Vladimir era para mim um mito inatingível, inclusive por causa da idade que ele já tem (75 anos) e a que eu já tenho (50). Não julgava ser ainda possível que um dia eu pudesse colaborar diretamente com ele, muito menos que iria conhecer a Fundação Cinememória pessoalmente em Brasília como conheci, guiado por ele mesmo, em pessoa (eu pensava que num futuro não muito distante eu poderia visitar a Cinememória quando ela estivesse aberta à visitação pública, mas Vladimir já não estivesse mais conosco).
Vladimir Carvalho na Cinememória. 6 de janeiro de 2010.
Foto: Alberto Nasiasene
Esta emoção do re-encontro com um mito que havia somente em minhas recordações de infância e adolescência (o pai que eu sonhei ter) é que explica minha pulsão para fotografar Vladimir como demonstrei aqui neste blog desde que pude ter fotos dele agora no início deste século, já com seus 75 anos de idade (mas firme e jovem no espírito, cheio de projetos de documentários, enquanto tenta organizar sozinho esta cinemateca no coração do pais). Como disse em meu documentário, que registrou o primeiro encontro que tive com a Fundação Cinememória, guiado pelo fundador, cresci em Brasília sonhando com a utopia do País de São Saruê e, portanto, era inevitável que eu quisesse "eternizar" estes momentos fugazes por meio de minha câmera digital fotográfica (até como prova, para mim mesmo, nos anos futuros, e para meus netos, se é que os terei, que Vladimir Carvalho, um ser bem concreto, realmente não só fez parte de minha vida infantil e adolescente, mas ainda me aceita como ajudante e discípulo temporão no início deste século).
Vladimir Carvalho na Cinememória. 6 de janeiro de 2010.
Foto: Alberto Nasiasene
Ele me disse, modestamente, logo que o vi entrar e exclamei, atordoado, que ele era um "monstro sagrado" para minha vida e não acreditava que estava tendo aquela oportunidade concreta de vê-lo pessoalmente, que "monstro" ele era, mas sagrado não. Quando eu era apenas um menino paraibano, ligado a ele, indiretamente, por laços de parentesco (por causa de Socorro), ele já era o mito que ainda é em mim, mas não por causa da obra dele (que ainda estava em gestação e eu nem conhecia, já que não era facilmente acessível) e sim por causa do ser humano que ele era e ainda é. O que há de novo aqui é que, hoje, já conheço toda a sua obra, digitalizada, e a ideia mítica que eu já tinha dele só se aprofundou, mas com uma nova visão que eu não tinha na infância, a visão do historiador que sou hoje. Aqui nestas fotos, vemos Vladimir me mostrando os inúmeros arquivos históricos que estão guardados na Cinememória. Quero ajudá-lo a organizá-los mais adequadamente (conservando-os e organizando-os mais tecnicamente do que estão organizados até agora) e a começar a explorar historiograficamente a riqueza deste universo que remonta não só à sua obra, mas ao cinema praticado em Brasília, desde os seus começos.
Alberto Nasiasene
2 de abril de 2010
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