Um grande artista não morre nunca e Renato Russo é um deles
Vladimir e Marcus Ligocki na produtora, trabalhando na edição final do filme Rock Brasilia. 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Neste mundo imagético no qual gosto de falar, aqui neste blog, existe um fenômeno que está na interface do mundo econômico e social, com o mundo artístico e estético propriamente dito. Ou seja, estou falando em um "capital simbólico." Já faz algum tempo que tenho falado muito sobre este conceito sociológico com Vladimir, demonstrando que ele tem um capital simbólico acumulado que não pode ser desprezado de modo algum, afinal ele é um dos mais importantes clássicos do moderno cine documentário não só brasileiro, mas mundial também (não foi uma surpresa, para mim, saber, na Unicamp, que um dos representantes da TV Unicamp que veio entrevistá-lo, um chileno, tinha defendido tese de doutorado exatamente sobre uma comparação analítica da obra de Vladimir e um documentarista boliviano), e que, neste mundo das falsas aparências capitalistas midiáticas onde vivo, aqui em São Paulo, o importante mesmo é a postura digna que devemos demonstrar ao público, sem sermos arrogantes mas evitando também uma falsa humildade. Isto é, devemos manter a dignidade da competência de quem se sabe seguro no que está falando e fazendo (ainda mais em se tratando de Vladimir Carvalho, que não é um amador iniciante), sem subserviência e sem complexos de inferioridade .
Marcus Ligocki na produtora, trabalhando na edição final do filme Rock Brasilia. 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Tenho observado, no meu entorno aqui em São Paulo, que os medíocres "atirados" sabem muito bem impor o que não têm, ou seja, comparando com uma linguagem muito empregada na economia, eles tentam impor "valor agregado" aos seus produtos (um valor agregado que não corresponde realmente ao produto que apresentam), ou seja, às suas obras (muitos sequer têm uma obra para mostrar, mas agem como aqueles que "comem ovo e arrotam caviar", como diz o ditado popular). Bem sei que é um fato raro alguém ficar milionário através do cinema no Brasil (já que, feliz ou infelizmente, como queiram, mas, no meu entender, felizmente, não temos uma indústria como Hollywood), mas isto não importa, para os verdadeiros artistas, porque também sabemos que as obras milionárias dos "industriais da indústria do entretenimento", muitas vezes, não chegam ao próximo século como patrimônio comum da humanidade e muitas vezes, aqueles artistas que morreram na pobreza ou quase pobreza (lembro-me de Glauber Rocha e de Michelangelo Merisi da Caravaggio, entre tantos outros grandes artistas, só para apontar, ligeiramente, alguns artistas), ou no simples ostracismo, sem fama alguma em sua época (como é o caso de Kafka, por exemplo), são os que geram as obras imortais que permanecem através dos séculos.
Vladimir, Marcus, Sérgio e Gabriela na produtora, trabalhando na edição final do filme Rock Brasilia. 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Portanto, o capital simbólico de que falo não é o mesmo capital do dono da Microsoft, por exemplo, neste novo mundo digital e virtual em que vivemos no século XXI. Ao usar tal linguagem conceitual, estou falando de um determinado tipo de valor agregado implícito no longo trabalho criativo que um artista de valor consegue imprimir à sua obra (e dentro destes valores agregados estão implicados muitos elementos e fatores sócio-econômicos, artísticos-estéticos, psicológicos, existenciais etc.). Fala-se muito hoje, em meio à era "pós-Industrial" (ou, como prefiro, dentro do processo maior da Terceira Revolução Industrial que vivemos desde meados do século XX), em valor agregado, querendo significar conceitualmente com isto tanto o conhecimento tecno-científico, quanto o grau de complexidade do trabalho empregado na fabricação de tal ou qual produto (e um país desenvolvido do primeiro time diferencia-se de outros países subdesenvolvidos exatamente porque produz valor agregado em seus produtos, enquanto que os países subdesenvolvidos produzem apenas commodities, ou seja, produtos sem valor agregado, ou, simplesmente, matéria prima).
Marcus Ligocki trabalhando na edição final do filme, em sua produtora. Brasília, 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Falo, em contrapartida ao valor agregado da economia material, aplicando este conceito ao mundo da criação artística (que é algo bem concreto, constituído de pessoas reais) e ao mercado onde esta arte é divulgada ou comercializada, que é, por contraposição, um mercado de economia imaterial (mas não estamos falando aqui de algo esotérico e metafísico e sim do mundo dos seres pensantes que estão "encarnados"), em um outro tipo de valor agregado, ou seja, em um valor agregado que não é diretamente relacionado ao mundo tecno-científico e industrial propriamente dito, da esfera econômica (ou, como diria Marx, da infraestrutura da sociedade), o valor agregado da criação artística que se manifesta de uma maneira diferente dos produtos meramente econômicos e utilitários do mundo industrial propriamente dito, ou seja, dos produtos que se manifestam por meio da esfera do simbólico (ou, como diria Marx, que existem no nível da superestrutura). Por isto é que falo em capital simbólico (não como metáfora, mas como realidade social e histórica bem concreta e dimensionável).
Serginho trabalhando na edição final do filme, em Brasília, na produtora Ligocki-Z. 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Ou seja, no fundo, capital, em Marx, não significa dinheiro, como a maioria das pessoas pensam, à primeira vista, nem é uma realidade meramente econômica, numa interpretação economicista do marxismo mais frequente, entre especialistas. No meu entender, quando Marx fala em capital (e isto fica claro, em uma leitura mais reflexiva e mais demorada e vivenciada de seu livro máximo, O Capital), está falando muito mais de uma relação social entre seres humanos, mediada pelas coisas (criadas pela cultura material e imaterial) e pela natureza do que em algo que possa ser reduzido a uma mera técnica de produção econômica e organização financeira e jurídica da sociedade, como geralmente se entende o capitalismo (realidade por demais abstrata que não existe em lugar nenhum, em estado puro, a não ser conceitualmente na mente de quem o pensa e analisa, já que o que existe de fato é a história concreta, contraditória, de cada sistema capitalista em específico, com suas conjunturas e estruturas próprias, em cada país em específico e é por isto que o capitalismo brasileiro não é igual ao capitalismo inglês, francês, alemão, japonês ou americano).
Serginho trabalhando na edição final do filme, em Brasília, na produtora Ligocki-Z. 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Portanto, deste ponto de vista, posso sim fazer uma analogia com o capitulo da obra máxima de Marx sobre a Acumulação Primitiva de Capital, com o conceito de capital simbólico acumulado de que falo, querendo focalizar um fenômeno bem típico da "superestrutura" quando tratamos de produção e consumo de arte, numa sociedade "pós-industrial". É por isto mesmo que gosto de analisar a história do cinema brasileiro através deste tipo de conceito e não estou sozinho ao fazer isto, é claro (Lukács e os pensadores da Escola de Frankfurt dedicaram a vida inteira a pesquisar e refletir sobre a questão da arte inserida em uma sociedade burguesa, capitalista ou socialista, stalinista ou não, mas não só eles, que eram marxistas, toda uma plêiade de pensadores e analistas da estética que não eram marxistas, tanto no mundo, quanto no Brasil). Este tipo de reflexão estética e histórica também contaminou o Cinema Novo brasileiro, não só a produção estética dos cineastas italianos, do neo-realismo, e dos cineastas franceses, da nouvelle vague (já que Glauber se refere claramente, em seus livros, a autores como Lukács, mesmo que tenha conhecido muito pouco sobre ele e sua obra e tenha abandonado e renegado esta influência estética posteriormente).
Serginho trabalhando na edição final do filme, em Brasília, na produtora Ligocki-Z. 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Mas isto é uma longa história que, aos poucos quero ir destrinchando, como pesquisador e historiador que sou. O atual cinema brasileiro que vemos surgir, na verdade, não é um fenômeno que nasce de um vácuo, após a era Collor, mas uma continuidade, depois de um curto intervalo produtivo (mas não criativo), com muitos novos cineastas iniciantes, a partir de um capital simbólico já acumulado desde o início do século XX, em obras como a de Humberto Mauro (como já dizia Glauber em seus livros). É por isto que não vejo o cinema brasileiro como uma descontinuidade histórica de ciclos fechados, mas como uma continuidade histórica de momentos, ou fases, de maior ou menor produção, num fluxo contínuo que nunca parte do nada, mas de um solo comum já alcançado (mesmo no início, no final do século XIX, porque o solo comum era o da fotografia pré-existente ao cinema). A obra de Vladimir Carvalho, como se sabe, é uma continuidade coerente, desde o início, na fase do Cinema Novo. Embora ela não seja uma continuidade linear, é uma evolução interna de um estilo próprio de fazer cinema que inicia desde o fim dos anos 1950, com sua participação decisiva na produção e direção de Aruanda, que chega ao século XXI em Brasília, onde ele está radicado desde 1970, como contribuição sua ao cinedocumentário brasileiro problematizador das profundas realidades sociais e culturais nas quais o Brasil está mergulhado, mas também como o registro poético de uma militância por uma sociedade melhor, em meio a este capitalismo excludente e cruel em que vivemos socialmente, como país específico que somos, com uma complexa e riquíssima herança histórica própria (e nisto está a modernidade de seus filmes que pode sim ser filiada à modernidade de um Mário de Andrade).
Serginho trabalhando na edição final do filme, em Brasília, na produtora Ligocki-Z. 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Gostei muito de ver estes jovens produtores, em Brasília, trabalhando no projeto do filme mais recente de Vladimir Carvalho, Rock Brasília - ninguém segura a utopia, desde o primeiro momento em que os vi, em janeiro de 2011, no setor de rádio e televisão sul, a convite de Vladimir e, de certa forma, as últimas postagens que escrevi neste blog (logo estarei incluindo material novo no site da Fundação Cinememória assim que tiver acesso aos bastidores técnicos que ainda não posso acessar, porque o site ainda está em construção) são não só mais uma forma de divulgar a obra de Vladimir, mas também dos jovens brasilienses cineastas em quem acredito. Vejam o segundo teaser do filme aqui.
Vladimir Carvalho, na produtora Ligocki-Z, em Brasília, 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Toda uma nova geração de cineastas e artistas está criando uma acumulação de capital simbólico em Brasília, mas eles não partiram do nada, porque já encontraram um capital simbólico acumulado que existe, por exemplo, na obra de Vladimir Carvalho e na própria estética urbanística modernista da cidade de Brasília, como afirmei em outras postagens deste blog. Mas é claro que não quero ser injusto com os outros cineastas que estiveram ao lado de Vladimir Carvalho nesta tarefa, desde os começos. Se falo mais dele, neste momento, é porque conheço mais profundamente a obra e a pessoa dele (e porque tenho um vínculo pessoal e existencial com ele desde minha infância, já que ele ainda continua sendo "o pai que eu sonhei ter" e somente nestas alturas da vida, especialmente depois desta forte crise depressiva pela qual passei e ainda estou passando, descobri que estive, a vida inteira, à procura não de um Profeta Prometido, mas de Vladimir Carvalho que já existia em minha vida desde a infância; só Freud me entenderia), mas também pretendo conhecer e me aprofundar, cada vez mais, na obra e no conhecimento dos artistas do cinema em Brasília e no Centro Oeste (e também dos outros artistas, das artes plásticas, por exemplo).
Marcus Ligocki e Vladimir Carvalho, na produtora, em Brasília, 18 de janeiro de 2011. Foto: Alberto Nasiasene
Como já disse em uma outra postagem em um outro blog, não sou especialista na história da música brasileira, muito menos do rock, mas, de modo genérico, sinto muito interesse sim em conhecer, cada vez melhor, a obra e a biografia de Renato Russo, por exemplo, entre tantos outros músicos que tiveram a ousadia de inserir Brasília na rota do rock nacional nos anos 1980. Além disso, mesmo que eu jamais tenha sido um roqueiro, porque preferia o que se chamava, na época, entre a juventude universitária, MPB, especialmente a MPB de protesto político-social, não posso deixar de fazer alusão ao fato de que tenho a mesma idade que o Renato Russo teria se fosse vivo (e sinto muito por sua morte prematura). O rock que ele fazia, não era, de modo algum, colonizado, "imperialista" e alienado politicamente, ao contrário, era bem comprometido com uma crítica político-social também, assim com a MPB de que falo
Um grande artista, não morre nunca. É isto que sinto que o filme quer também tratar.
Alberto Nasiasene
21 de maio de 2011
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