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Existe sim um cinema de arte que se contrapõe a um cinema meramente comercial



Disse a minha amiga Jacy do Val que, apesar de toda a argumentação que tenho escutado de importantes cineastas que sentaram no programa Sala de Cinema, veiculado na SescTV, não concordo que não devemos fazer distinção entre cinemão comercial e cinema de arte no Brasil e no mundo (aliás, esta distinção nem foi inventada por nós, mas por aqueles que defendiam um cinema de autor, artesanal, em contraposição a um cinema de estúdios, feito de forma industrial). Portanto, não existe, no meu entender, um cinema em geral, mas pelo menos três tipos básicos: o cinema como opção artística, o cinema como indústria de entretenimento de massas (chanchadas, Hollywood etc.), o cinema como modo de ganhar dinheiro e nada mais (pornochanchada, pornô etc. - aliás, a indústria da pornografia é a que mais movimenta somas astronômicas de dinheiro mundo afora).

Dependendo da proposta com a qual o cineasta está comprometido, o cinema pode ter uma dimensão artesanal (de um pintor ou escultor) ou uma dimensão industrial e comercial, feito em grande escala, com alto nível de especialização e grandes capitais financeiros investidos. Mesmo sem aplicarmos aqui juízos estéticos de valor, é bom não confundir estes caminhos como se eles fossem tudo a mesma coisa, porque não são; por mais que queiram empresários ligados ao cinema (que não conseguem ver seu negócio muito além dos números de espectadores e dinheiro movimentado nas bilheterias e vendas de DVDs) e intelectuais que convivem muito intimamente com estes empresários (seria bom para estes intelectuais um certo distanciamento crítico sim).

Não me incomodo de chocar os cultores do cinema marginal (afinal, ao ver a performance pessoal do Cláudio Assis no Festival de Cinema de Paulínia de 2011, um ano atrás, quando estive com Vladimir e equipe no mesmo dia, ao apresentar seu filme, Febre do Rato e ao ganhar a maioria dos prêmios da categoria de cinema de ficção, devo ter aprendido algo com ele; mas, como Vladimir, não fui dos que foram beijados na boca por ele, no palco, porque não estava lá - até o prefeito e o jornalista Rubens Ewald Filho o foram, sem escapar), da pornochanchada e da Boca do Lixo, nem os do cinema trash. E dai, se eles ficarem chocados com minhas afirmações (estou lúcido, não bebi nenhuma bebida alcoólica, nem fumei nada, porque sou abstêmio; portanto, sei muito bem o que estou fazendo)? Não gostam eles de chocar a sociedade e seus valores convencionais?... Eles, tendo ou não esta consciência, também fazem parte de uma sociedade específica dentro de uma outra sociedade maior que os envolvia, na década de 1960/70, e os envolve agora, no começo do século XXI. Então, devem aceitar (ou ignorar), o direito democrático e iconoclástico que todos têm (inclusive este que vos fala) de fazer suas críticas e autocríticas a tudo e a todos, se quisermos aprofundar uma reflexão estética sobre o cinema brasileiro. Isto faz parte intrínseca da história da arte e devemos estar muito acostumados com isto, pelo menos desde o século XIX. Se é que queriam mesmo criar novas linguagens, renovando o cinema e elevando-o a um patamar mais alto de realização estética, não poderiam ficar chocados com a contestação de seus próprios paradigmas sendo realizadas por outros que estão em período posterior a eles.

O cinema marginal, do Rogério Sganzerla, gostava de se contrapor ao cinema novo, do Glauber, até por questão de ciúmes e da mulher (num conflito freudiano), mas também por questão de bairrismo prosaico idiota entre São Paulo e Rio (e disputas quanto a patrocínios de fontes financeiras de produção). Mas não é só porque o cinema marginal se pretendia mais vanguardista em matéria estética de formas e linguagens que está além do bem e do mal e aquém de juízos de valores. O que produzia é também alvo de análises, racionais e irracionais que sejam, dentro de quaisquer propostas estéticas que sejam (ninguém escapa deste buraco negro chamado de modernidade crítica e contestadora de velhos valores). Como eu não estou competindo com nenhum dos dois, nem como espectador, nem como cultor (embora declare que prefiro o cinema novo, é claro, sem desprezar o melhor do cinema marginal), muito menos produtor, nestes tempos digitais de século XXI, não me intimido diante do prestígio de ninguém com seu séquito de seguidores, a não ser que a obra tenha algum impacto em mim (como costumo dizer, é a obra que tem que ser mais importante, não a pessoa do artista; porque a obra, se tiver qualidade, permanecerá viva, o artista não), como teve a de Cláudio Assis em Paulínia (mas, mesmo reconhecendo a grandeza artística daquele filme, não tenho vergonha de dizer que aquilo ali nada tem a ver comigo, porque prefiro mais a reflexão crítica sobre as questões sociais do cinema novo do que a exposição reichiana das questões sexuais do cinema marginal - mas isto não quer dizer que fico chocado, ou com falsos pudores, com a sexualidade tratada de modo anarquista e abertamente, desde que seja pela dimensão artística propriamente dita).

Carlos Reichenbach

Embora o cinema como expressão de arte possa até gerar grandes somas de dinheiro, por artes do destino e humores do mercado, sua dimensão permanece na esfera artesanal da obra de arte autoral. O inverso também é verdadeiro, embora o cinema da indústria de entretenimento possa ter movimentado muito capital financeiro e toda uma complexa máquina industrial, pode levar seus autores e produtores ao prejuízo financeiro (ou mesmo à falência) por se tornar um retumbante fracasso de bilheteria (a renda auferida não compensa os custos financeiros da mega produção). Por outro lado, como o dinheiro empregado na produção (e publicidade) de tal ou qual filme não é garantia de nada (como parece ter acreditado Fernando Meireles com o belo filme Xingu, só porque teve apoio da Globo Filmes), a priori, vemos na história do cinema, como tenho afirmado outras vezes, que filmes de baixíssimos orçamentos (feitos inteiramente de forma artesanal) são um sucesso de público (e podem até angariar um lucro imenso, comparando-se com a quantia gasta inicialmente; mas não necessariamente, porque sucesso de público, no mundo digital do século XXI não implica grandes lucros financeiros, mas grande capital simbólico e renome prestigioso que não devem ser desprezados em tempos de questionamento do próprio conceito de desenvolvimento e PIB).

Portanto, claro que não gostei da reação do produtor de Xingu (que foi também diretor da campanha publicitária, derrotada, em cima do muro, da candidata Marina em 2010, contra a continuidade do governo Lula) com o que ele considerou uma má performance, na primeira semana do filme Xingu, 300 mil ingressos vendidos (ele deve estar com os dólares fáceis subindo à cabeça, só porque agora é um cineasta internacional de sucesso; mas eu ainda prefiro a trajetória internacional do Glauber, exilado, na pindaíba, mais ligado à nouvelle vague francesa, ao neorrealismo italiano e ao cinema de Luís Buñuel do que ao cinema anglo-saxônico - 300 mil em uma semana não é nada mal na realidade brasileira). Para alguém que fez campanhas publicitárias para o PT, nos anos 1980, e fundou tanta coisa boa, na publicidade e na televisão, como a agência O2 e o Rá Ti Bum, como ele se gaba, lançando tanta gente supostamente boa, como o Marcelo Tas, no Rá Tim Bum; é de se estranhar tal atitude desrespeitosa tanto para com o diretor de Xingu, Cao Hamburger, atores e técnicos agregados quanto para com o público brasileiro de cinema de arte (o que ele esperava?...). Ele deve é estar muito magoado por não ter conseguido levar a Marina para o segundo turno somente com a boa fotografia da campanha presidencial (o povo brasileiro não deixou de se preocupar com os índios, o meio ambiente e a floresta como ele pensa, só porque não teve tempo e dinheiro para ir a shoppings) e a lenga lenga frouxa de defesa ingênua de um meio ambiente mítico. Se ele quer mesmo é ganhar dinheiro no cinema, que fique em Los Angeles, falando seu bom inglês, porque lá, quem sabe, ele terá a indústria a seus pés (mesmo assim, ainda lá, dinheiro e indústria do cinema, em si mesmos, não são garantia de nada).

Cidade de Deus, o grande sucesso do Fernando Meireles, não é filho, nem neto do cinema novo de um Glauber, porque falta algo mais naquela estética do "favela movie" por ele impulsionada: falta a visão social e política revolucionária que o Glauber (e toda uma geração de cineastas comprometidos mais com a transformação da realidade profundamente desigual existente no Brasil do que com o mercado em si mesmo) tinha. Cinco Vezes Favela, lançado décadas antes, era algo mais do que mostrar o mundo interno da favela, com muitos lances de ação e montagem dinâmica, para o mundo do asfalto (de que tanto gosta o "favela people" hoje em dia, depois de décadas de colonização mental, em DVDs piratas, pelos blockbusters americanos de Hollywood). Era uma visão generosa dos que estavam no asfalto (os cineastas) que viam aquela realidade social (num ponto de vista externo, é claro, mas isto não desmerece a qualidade estética do que faziam) não como simples constatação antropológica, mas sob a máxima em vigor, na época, entre jovens inquietos, de que era preciso lutar contra a exploração do homem pelo próprio homem e que mais importante do que ver e interpretar, compreensivamente, a realidade do outro social, era necessário estar engajado coletivamente em um processo político, mesmo que só como artista, de transformação daquela realidade rumo à diminuição drástica das desigualdades sociais. Se hoje, pós Queda do Muro de Berlim, é fácil criticar os equívos e os delírios revolucionários daquela geração, não se pode olvidar que eles foram realmente guerreiros corajosos (não marqueteiros interesseiros apenas em dinheiro), como muitos outros na longa tradição cultural iberoamericana, que lutaram contra a opressão mais do que quiseram se associar às classes dominantes para auferir grandes lucros no mercado globalizado do cinema.



O cinema autoral, de jovens autores, não comercial, que está sendo produzido no Brasil neste novo século XXI, já surge em diálogo crítico com uma vasta herança anterior desde o período do cinema mudo, porque o cinema autoral brasileiro não começou com o cinema novo. Isto dá a ele uma maior massa crítica (de onde sairão grandes diretores e grandes filmes) na qual pode se alicerçar solidamente, sem ter que imitar o cinema americano, por exemplo (porque é ridículo um país com uma cinematografia tão rica, e tão reconhecida internacionalmente enquanto tal, imitar o modo de fazer cinema americano). Fico entusiasmado com o vigor crítico e estético do cinema que está sendo produzido a partir do Recife, por exemplo, com o sotaque pernambucano só deles (e peço a Deus para que eles nunca percam este sotaque e se acarioquem ou se apaulistem; muito menos que se americanizem). O que surge ali é mais uma prova que o artesanal de qualidade autoral pode suplantar facilmente, em valor estético, o tal cinemão remake, no falso eixo Rio-São Paulo, que tenta reproduzir as fórmulas televisivas de "sucesso" (como dizem por lá, em televisão, nada se cria, tudo se copia).

Embora muita gente ainda saia de casa para pagar um ingresso e assistir, em alguma sala de cinema de shopping, uma versão cinematográfica de novelão da Globo, isto não pode se sustentar, como enfrentamento pesado ao cinemão hollywoodiano, pelas décadas que estão diante de nós neste novo século XXI. Tudo irá mudar, inclusive a película (e o cinemão de Hollywood; afinal, nem tudo produzido por lá é lixo cultural puro, porque por lá também há cinema autoral de boa qualidade), em extinção já acelerada, com a qual projetam estes cinemões comerciais de entretenimento em seus projetores de shopping e massas de jovens de celular, internet e milhões de formas de expressão e comunicação técnica, que ainda nem imaginamos, irão surgir cada vez mais, é claro, afinal, todos nós, mesmo os que são jovens hoje em dia, iremos morrer para dar lugar a estas novas gerações (e é bom levantarmos nossos olhos também para além do horizonte do presente histórico, tentando dialogar com futuras gerações que nem nasceram ainda, pensando muito além dos lucros financeiros imediatos). Com certeza, estas gerações futuras ainda irão cultuar o cinema novo e o cinema marginal, mas nem irão ouvir falar de certos filmes que dão muito ingressos hoje (e lucros astronômicos para seus produtores) que só serão conhecidos em algum dicionário histórico de filmes produzidos no Brasil no início do século XXI.

Neste mundo futuro que se aproxima, somente as boas obras de arte, criadas pelos cineastas autorais, irão sobreviver como patrimônio cultural comum não só dos brasileiros, mas também como patrimônio cultural cinematográfico universal (talvez sobreviva algo do cinemão de entretenimento brasileiro, mas como mera curiosidade museológica que contextualiza as grandes obras, não como clássicos do cinema que jamais serão). Até defendo que algumas obras de cinematografia têm que ser tombadas pelo IPHAN como patrimônio imaterial comum do povo brasileiro (embora saiba que ainda nem exista este conceito, sei que ele irá surgir um dia, porque, do mesmo modo que se tomba o patrimônio cultural imaterial das paneleiras de barro no Espírito Santo, o jongo, como dança, etc. está na hora de se tombar as obras de Humberto Mauro, Mário Peixoto e, por que não, Vladimir Carvalho). Alberto Nasiasene Jaguariúna,11 de julho de 2012



PS. Não tenho procuração de ninguém para defender as ideias que defendo aqui. As faço de moto próprio (a própria concepção e administração do site da Fundação Cinememória é minha contribuição pessoal, mesmo morando longe, para a preservação e difusão do cinema de Vladimir em meio à era digital). Por exemplo, quero esclarecer que minha opinião pessoal sobre os novelões da Globo (uso propositadamente a expressão novelão em alusão ao palavreado que o próprio Glauber usava face ao cinema comercial de quinta categoria, o cinemão; que tinha muito público, mas nenhuma qualidade estética) é somente minha (minha esposa discorda radicalmente e não perde capítulo algum dos tais novelões, eu é que não suporto a porcaria estética que são os tais novelões, mesmo sabendo do tal ibope que elas conquistam; claro, não preciso de emprego na Globo, nem sou ator de TV; além disso, meus referenciais estéticos nada tem que ver com o padrão global de televisão, que acho muito cafona; se o Cláudio Assis pode falar publicamente o que pensa, detonando falsos ícones do cinema atual, eu também posso; prefiro até, para chocar mesmo, os seriados americanos, que são muito melhor construídos esteticamente do que estes tais novelões). Quando falo em tombamento, por outro lado, é só uma ideia minha e sei que nem se coloca isto na agenda cultural ainda, mas um dia se colocará, porque creio que o cinema é muitas coisas, ao mesmo tempo, inclusive documentação histórica de uma época. Por isto, não por acaso defendo a importância da preservação do cinema documentário de Vladimir: o cinema dele é uma documentação preciosa (claro, não se esqueçam que sou historiador acostumado a lidar com o conceito mais abrangente de documento histórico) não só de questões políticas, sob a truculenta ditadura que vivemos (1964-1985), em tempos de Comissão da Verdade, mas de questões profundas da cultura popular, muitas vezes desprezadas ou ignoradas pela própria esquerda em geral, oferecendo, para as gerações futuras (e para os futuros historiadores) não só uma etnografia de tradições populares, desde meados do século XX, mas uma reflexão, de fundo marxista sim, mas sem mecanicismos sstalinistas, sobre nossas longas tradições culturais, de origem colonial, de modos de vida, de construção de casas, de garimpos, de comidas, de danças, tradições religiosas etc., sem preconceitos eruditos face ao fenômeno cultural popular (mas com um profundo respeito baseado em uma longa tradição erudita de reverência pelas tradições culturais populares presentes num Bakhtin) e penso que aqui reside um dos elementos mais preciosos desta obra que precisam sim ser preservados do mesmo jeito que o IPHAN preserva, através do tombamento, as técnicas de produção, popular e artesanal, das panelas de barro do Espírito Santo, como patrimônio imaterial de nosso povo - A UNESCO também faz isto em nível mundial e Vladimir, com alto custo pessoal, sem grandes recursos e patrocínios, fez isto ao longo dos seus mais de cinquenta e três anos de cinematografia e isto tudo "no olho do furacão" - em Brasília, sem nenhum patrocínio oficial da ditadura é claro, ao contrário, sob perseguição constante; isto só, já é, em si mesma, uma trajetória heroica que deve ser preservada pelas instituições dedicadas à memória histórica em nosso país)


Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

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