São Paulo precisa assumir sua responsabilidade face ao cinema brasileiro com mais vigor
I. Nunca entendi direito porque os paulistas, tão dinâmicos em várias áreas, não desenvolveram um forte mercado cinematográfico de arte próprio depois do fracasso da Vera Cruz
Posso entender que a hegemonia industrial e econômica não seja garantia de hegemonia na indústria do entretenimento automaticamente. Bem sei que o desenvolvimento econômico ocorre de modo desigual e heterogêneo. Entretanto, nunca entendi direito porque São Paulo não assumiu a dianteira do desenvolvimento do processo produtivo cinematográfico, pelo menos a partir de meados do século XX em diante. O mercado cinematográfico paulista é o maior mercado do país, evidentemente, tanto por causa da maior população, quanto por causa do maior poder aquisitivo que lhe acompanha. Mas não creio que houve falta de talentos criativos no cinema paulista para além do sistema estabelecido pela Boca do Lixo ou do Cinema Marginal do Sganzerla e parceiros. É certo que o Cinema Novo teve o impulso decisivo do Glauber Rocha, no Rio de Janeiro, que era baiano, mas também não se pode esquecer de um de seus precursores paulistas, Nelson Pereira dos Santos (tudo bem que ele se mudou para o Rio, mas era paulista). João Batista de Andrade, que era mineiro, mas radicado em São Paulo, além do Luís Sérgio Person, ficaram em terras paulistas. Além disso, a ECA da USP, com Paulo Emílio Salles Gomes e Jean Claude Bernadet, esteve aqui o tempo todo, durante este período, oferecendo uma reflexão crítica e estimulante para o cinema.
Ainda não consigo entender porque a ditadura militar impediu o surgimento de um forte e criativo mercado cinematográfico em São Paulo, porque, na verdade, desde o final da fracassada experiência industrial da Vera Cruz com o cinema de estúdios, produzido em moldes convencionais e industriais não se viu, em São Paulo, o surgimento de uma onda de cinema autoral como haverá com a nova geração situada no Rio de Janeiro (excetuando-se aqui e ali, cineastas com luz própria, mas não integrantes de uma tendência coletiva, tais como Walter Hugo Khouri, Amácio Mazzaropi, Jorge Bodanski, Ozualdo Candeias etc.). Talvez tenhamos que reconhecer, como uma tautologia, que talentos (e movimentos artístísticos) não surgem só porque o dinheiro e as condições econômicas estejam disponíveis. O talento não pode sobreviver somente contando com suas próprias forças intelectuais, sem um mínimo de base econômica, mas não é a base econômica que gera automaticamente o talento e os movimentos culturais (não é a economia que explica a arte, mas a arte não sobrevive sem uma base econômica). Por enquanto, recuso-me a acreditar que o pragmatismo bandeirista (tosco e grosseiro em seus interesses imediatos), ou a timidez e o caipirismo provinciano paulista tenha sido o fator determinante que impediu o alargamento dos horizontes intelectuais da criação artística em São Paulo, porque, afinal, foi aqui que aconteceu a famosa Semana de 1922. Oswald e Mário de Andrade (além de Tarsila do Amaral e Anita Malfatti) eram grandes intelectuais que não só eram paulistas, mas permaneceram em São Paulo durante toda a vida. Pode até ser que a Ditadura do Estado Novo tenha reprimido muito do espírito criador do povo paulista, mas a USP não foi criada em pleno período autoritário varguista (e pela elite cafeeira desalojada do poder)?...
Tudo bem que a imigração italiana (e de outras etnias europeias) que veio para cá não era exatamente a fina flor da intelectualidade da Itália, mas uma grande massa de camponeses semi-alfabetizados ou analfabetos que veio substituir a mão de obra escrava nas fazendas de café (não adianta querer tapar o sol com a peneira neste quesito, porque a massa italiana que imigrou para São Paulo, com a passagem paga pelo governo dos fazendeiros de café, era uma massa de camponeses sem muita sofisticação intelectual, que foi importada para ser mão de obra barata nas fazendas de café). Esta corrente imigratória deu maior impulso à criação dos primeiros sindicatos e associações de trabalhadores do que que à renovação das artes (mesmo assim, é bom desmistificar esta tendência também, porque a maioria dos imigrantes italianos não eram muito politizados coisa nenhuma). A intelectualidade europeia que emigrava ia mais para os Estados Unidos do que para a América Latina, de modo que, por aqui, aportou, no máximo, uma pequeno burguesia não muito letrada (com raras exceções), em meio a uma grande massa de camponeses italianos. Anita Malfatti foi uma exceção que não nega a predominância do "elemento" luso português autóctone na geração dos principais líderes intelectuais da Semana de 1922. Os Amarais, os Andrade, os Prado etc. eram os que predominavam no mundo da criação artística.
Talvez o Rio de Janeiro, enquanto foi a capital do país, até meados do século XX, tivesse uma vantagem comparativa, porque ali se concentrava não só a elite do poder federal, mas a elite da intelectualidade (mas isto deixou de ser assim com a criação de Brasília nos anos finais da década de 1950). São Paulo poderia ter assumido a dianteira na tal "indústria cultural" do audiovisual, mas, ao invés disto, o Rio de Janeiro continuou a desempenhar este papel (talvez a criação da Embrafilme com sede no Rio, por razões políticas que precisam ser melhor analisadas historicamente, tenha evitado intencionalmente o predomínio de São Paulo na esfera do cinema). O que se desenvolveu, à margem do poder, em São Paulo, foi o cinema da Boca do Lixo e a pornochanchada vazia de conteúdo problematizador (que rendeu muito ingresso, rendeu, mas não gerou clássicos de arte que irão permanecer pelos séculos futuros, a não ser como curiosidade por mais que tentem dourar a pílula alguns analistas deste tipo de cinema). Talvez esteja aqui o segredo da ação da ditadura: ela matou o espírito criador de uma intelectualidade paulista mais ousada, assim como se viu em Glauber Rocha, que poderia suceder Vladimir Herzog (parceiro de João Batista de Andrade na televisão e possível cineasta importante). Ou seja, foi uma estratégia consciente da ditadura matar os líderes de um possível cinema novo paulistano, no caso, através da simbólica ação contra Herzog.
II. A economia do cinema no século XXI
Como vemos até aqui, claro que o espetáculo cinema deve ser distinguido do produto cinematográfico propriamente dito, porque nem sempre um filme é veiculado no chamado "circuito comercial" propriamente dito. São duas realidades distintas e devem ser analisadas separadamente. Muitas obras primas do cinema ficaram inéditas e só são acessíveis hoje por causa da revolução tecnológica da era digital. No início do século XX, duas áreas específicas de produção se interpenetraram para fundar o mercado de cinema como o conhecemos hoje: a área da produção de películas, câmeras, lentes etc. e a área de exploração comercial do entretenimento (cada uma destas áreas tinha suas raízes anteriores antes da fusão que não devem ser esquecidas). Antes mesmo do aparecimento e difusão massiva do rádio e da televisão, o cinema já havia se estabelecido como meio de expressão e entretenimento explorado comercialmente em uma infinidade de salas comerciais que foram se adaptando a este tipo de suporte (o teatro foi transformado em cinema, mas também as salas da paróquias e outros locais públicos).
Desde o começo, duas maneiras diferentes de produzir e difundir cinema foram se desenvolvendo: a industrial (tanto no que diz respeito à produção do próprio equipamento cinematográfico em si mesmo, quanto no que diz respeito à produção do conteúdo a ser representado por meio da película) e a artesanal (no sentido de produção em pequena escala, feita a partir de um viés autoral mais do que industrial e a partir de um atelier artístico muito mais do que em estúdios). Houve uma intensa competição inicial entre a produção industrial da França, da Itália e dos Estados Unidos, por exemplo; mas, por "n" fatores que não irei detalhar, o cinema americano acabou ganhando e prevalecendo sobre os demais ramos industriais do negócio cinematográfico (não sem a contrapartida da intervenção estatal no mercado de cinema, como na França). O cinema, antes da era da televisão, passou a ser tão estratégico para a dominação política e cultural de um país avançado como as suas forças armadas (não por acaso a Alemanha nazista, nos anos 1930, controlou o tipo de cinema que se fazia nas terras em que nasceu o cinema expressionista progressista, criativo e questionador dos anos 1920).Durante a Segunda Guerra, o cinema que se passava na França (país onde nasceu a concepção tecnológica que deu origem à película) era produzido nos Estados Unidos (os ocupantes nazistas do território francês não iriam permitir que os franceses continuassem produzindo seu cinema, muito menos que ele fosse questionador). Entretanto, no pós-Guerra, este cinema americano, sem querer, acabou fertilizando o solo do cinema autoral (por exemplo, na pessoa de Antoine Truffault) francês e formou toda uma geração que será responsável pela Nouvelle Vague francesa. No caso, a predominância ocasional do cinema americano no solo francês não matou a alma cinematográfica francesa que conseguiu se reerguer depois da Guerra.
No Brasil, por incrível que possa parecer, o cinema logo plantou suas raízes e se desenvolveu de forma autônoma em nosso meio. Não é só a figura do Humberto Mauro que quero destacar, mas também a de destacados realizadores que manejaram criativa e originalmente a linguagem cinematográfica à la brasileira, tais como Mário Peixoto e Alberto Cavalcanti. Junto a estes luminares da criação cinematográfica autoral (artesanal), no início do século, houve também uma imensa produção industrial e comercial do cinema brasileiro, em picos chamados de "ciclos regionais", como o ciclo do cinema campineiro, o ciclo do cinema do Recife etc. A predominância do produto americano em nosso mercado cinematográfico não foi uma realidade imediata. Ao contrário, o cinema industrial dos Estados Unidos demorou a estabelecer o predomínio no mercado e só depois de ter montado toda uma estratégia comercial de distribuição e exibição é que conseguiu prevalecer, até sobre o cinema produzido no Brasil. Entretanto, país com uma dimensão continental e uma cultura pujante, o Brasil não viu a erradicação do espírito cinematográfico que havia em amplas camadas intelectuais (e de técnicos e homens de negócios especializados na exploração desta atividade econômica) e em amplos setores populacionais ansiosos por ver sua cara e seus problemas retratados na película. Por isto mesmo é que surgiram indústrias de cinema que utilizaram as mesmas estratégias que Hollywood usou, a produção de cinema em estúdios: a Cinédia, a Atlântida, a Vera Cruz
Desde o final do século XX, com o advento das novas tecnologias visuais digitais, o mundo do audiovisual como um todo passou e está passando ainda por um redimensionamento drástico que não tem mudado ainda todo o mercado tradicional de cinema comercial por razões que não terei tempo de explicar por enquanto. Isto é, como já afirmei anteriormente aqui, neste site, o reino da película como forma dominante de produção, reprodução e exibição de imagens e sons está por acabar. Mesmo que os poderosos estúdios não tenham permitido ainda a debandada final das salas de exibição de cinema tradicional em película, nas grandes salas tradicionais de exibição cinematográfica, algumas salas e modos alternativos de exibição cinematográfica já estão realizando, com sucesso, aquilo que já está disponível para as salas residenciais privadas. Os equipamentos de produção, reprodução e exibição de vídeos-filmes (ou seja lá o que se diga) estão fazendo a transição se apressar rapidamente e, se os cinemas tradicionais reclusos em shoppings centers não o fizerem rapidamente, logo teremos melhores formas de exibição nas casas particulares do que em circuitos comerciais maiores, em shoppings centers, independentemente da vontade de Hollywood e da velha indústria cinematográfica nos moldes da Segunda Revolução Industrial.
No século XXl, está cada vez mais possível a produção e edição de produtos audiovisuais de forma "caseira" (ou artesanal, como no atelier de um artista erudito) com qualidade estética que pode sim reinventar os padrões da sétima arte neste novo contexto. Isto quer dizer que novos padrões de negócios e novos modelos de negócios têm que se adaptar rapidamente ao novo contexto antes que aconteça com o cinema o que aconteceu com a indústria fonográfica no final do século XX (o mundo digital tragou o gigantismo industrial da produção em LPs e Cds feita nos moldes da Segunda Revolução Industrial em prol de multinacionais ou em prol do grande capital, que comandava este tipo de mídia em proveito próprio, não em proveito dos autores e artistas). Assim como no mundo econômico, estrito senso, as novas realidades digitais e criativas da esfera da produção digitalizada e automatizada estão redimensionando todas as esferas econômicas do mundo industrial antigo, tornando o parque industrial convencional menor e mais aparentemente artesanal, sob o controle de uns poucos (não que o grande capital não esteja no comando das transformações, mas afirmo que novas possibilidades não monopólicas e mais democratizantes de acesso a formas de produção estão disponíveis para camadas sociais que estavam alijadas deste processo), no mundo da indústria de entretenimento de massas, as novas tecnologias digitais estão tornando possível o acesso a milhões de pessoas, que estavam de fora do processo industrial, da produção e fruição da cultura de massas nos moldes da Segunda Revolução Industrial.
Não que as possibilidades de democratização do mercado de cultura possam ser garantias automáticas de qualidade estética, mas que tornam possível novas dimensões democratizantes da produção, reprodução e difusão da cultura de massas que nunca se havia alcançado anteriormente, não se pode negar. Não adianta querer parar a roda da história em prol de formas superadas de produção e difusão em um mercado que, querendo ou não querendo os que ainda o dominam, está em rápida transformação. O que pode acontecer, se novos modelos de negócio e novas formas de exibição antenadas com as novas gerações e os novos tempos, é o que aconteceu com os cinemas de bairro quando a massificação das televisões passou a concorrer com eles: o fechamento, porque as pessoas preferiam ficar em casa para assistir a televisão, do que sair de casa para pagar um ingresso, por mais barato que fosse, em um daqueles imensos cinemas de bairro (construídos em outro contexto histórico, adequado a um outro tipo de público).
Não creio que os problemas não resolvidos no mundo comercial sejam da sétima arte, em si mesma, mas de interesses econômicos que se tornaram resistentes às transformações, por inabilidade de pensar o novo e falta de ousadia em aceitar novos desafios diante de um novo tipo de mercado em surgimento (o capital sempre foi refratário à criatividade do artista, porque os parâmetros do empresário e do artista são divergentes, mas não necessariamente). O campo econômico e social é vasto para os novos tipos de audiovisuais, especialmente se levarmos em conta o fenômeno da confluência de mídias: a televisão, o cinema, a internet, o teatro, a música, as artes plásticas etc. nesta era digital, estão confluindo para formas e conteúdos que se mesclam cada vez mais, na medida em que o novo século vai se diferenciando, cada vez mais, do século XX. Assim como o cinema nascente, no final do século XIX, soube criar para si um novo nicho de produção, exibição e entretenimento, disputando ao teatro e ao circo, parcelas ponderáveis do público (criando as formas clássicas de narrativa cinematográfica, primeiro copiando da literatura, depois, criando sua própria maneira de ser), o cinema na era digital irá se recriar a partir de sua própria herança, mas incorporando novas linguagens que não lhe impedem de ser o que já é: uma forma específica de narrativa audiovisual que dialoga com um imenso público (maior até do que o público de literatura).
Alberto Nasiasene Jaguariúna, 23 de maio de 2013
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