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Será mesmo que o documentário didático é chato? Ou, é preciso problematizar o dogma de que o documen


Robert Flahert. Imagens de internet

Uma das qualidades do cine-documentário (qualidade que o diferencia de outros gêneros de cinema e de documentário) é o tempo condensado que ele pode revelar. Isto é, como o vinho, um documentário que se torna clássico, geralmente, tem uma qualidade relacionada ao próprio tempo de maturação de si mesmo. Esta qualidade é o que distingue um cine-documentário (mais aprofundado e mais vivenciado) de um documentário jornalístico televisivo, por exemplo (que geralmente é mais superficial e menos vivenciado do que o outro tipo de documentário, porque o tempo empregado em sua confecção é bem mais curto). Sendo assim, este tempo condensado traz consigo uma série de questões implícitas que um documentário apressado jornalístico não pode trazer (o próprio tempo de pesquisa prévia que lhe deu sustentação, o preparo técnico na captação e a própria captação de imagens do cine-documentário, à medida em que a história concreta vai se desenvolvendo, é um elemento imprescindível de um documentário longamente maturado que o diferencia necessariamente do documentário jornalístico de ocasião).

Robert Flahert. Imagens de internet


Há também um tipo de documentário que vai além da imediaticidade do tempo, mas fica aquém da vivência mais densa do cine-documentário: o documentário para "fins didáticos", digamos assim. É preciso entender bem, entretanto, o que quero afirmar "para fins didáticos." Há uma ideia preconcebida (e muito injusta), que foi se tornando "clássica", sobre o documentário tido como "didático" (desenvolvida na academia e em cursos de cinema). Geralmente, afirma-se que este tipo de documentário é bem chato e monótono, a priori (sem investigar, na realidade concreta, se esta afirmação é confirmada pelos fatos). Entretanto, como educador que sou, sempre prefiro problematizar o tal aspecto "didático" nos tais filmes chatos. Ser "chato" e "monótono" pode ser uma característica de qualquer documentário (inclusive nos cine-documentários; especialmente naqueles mais formalistas e pretensamente mais vanguardistas e experimentais), seja lá em que estilo for (há muitos cines-documentários, e documentários jornalísticos muito chatos e monótonos e muitos documentários tidos como "didáticos" muito interessantes, instigantes e desafiadores), mas não porque seja "didático." No meu entender, e tenho milhões de razões para isto, certos documentários ditos "experimentais" são é muito chatos (com a desculpa de serem experimentais e vanguardistas, não passam de uma chatice mal feita mesmo, encantada com as formas, em si mesmas, esnobando conteúdos).

Robert Flahert. Imagens de internet


Ou seja, ser "chato" não é uma característica imanente ao ser "didático." Isto quer dizer que é necessário redimensionar corretamente o próprio conceito de filme documentário didático, porque já não vivemos mais, por exemplo, os tempos dos filmes jornais laudatórios dos grandes homens, antes do advento da televisão e na era do reinado absoluto de versões tradicionalistas de história focada nos "grandes homens" (versões que não podiam conviver com o senso crítico, nem com outras perspectivas distintas da oficial permitida por regimes autoritários). Este tipo de filme documentário jornalístico só predominou nos cinemas comerciais até a massificação das televisões. No Brasil, massificação ocorrida principalmente depois da década de 1970. No nosso caso, portanto, ou estes cine-jornais eram feitos durante a ditadura do Estado Novo, de 1937 a 1945, pelo DIP, ou foram feitos durante a ditadura militar de 1964 a 1985 (os próprios telejornais, um deles ainda existente, revelavam o mesmo tom positivista e a mesma perspectiva focada nos "grandes homens" ou na classe dominante mais conservadora, depois da redemocratização).

Nestes mais de cem anos de história do documentário, os pontos de vistas e os sujeitos que os fazem mudaram, além dos temas abordados, mas os clássicos do gênero estão no rol das obras representativas do cinema mundial, ao lado do cinema de ficção, como testemunhos de uma época que só o cinema pode fazer (afinal, tratam-se de imagens em movimento, que até então eram impossíveis de serem captadas e reproduzidas). A era digital transforma os suportes tecnológicos, mas não substitui as velhas imagens de Flahert, ao contrário, as preserva para os séculos vindouros. O que há de novo agora é que os próprios povos tribais passaram a assumir o protagonismo da filmagem e deixaram de ser meros objetos de curiosidade de plateias mundo afora, mas isto não se deu por causa das tecnologias eletrônicas e sim por causa da evolução subjetiva, na mente de gerações novas de documentaristas, de novas abordagens sobre o documentário e sobre o olhar do documentarista. Imagens de internet.


Como historiador afirmo, é claro, que mesmo este tipo de cinema laudatório das versões autoritárias de poder, no Brasil e no mundo, serve como documento de uma época a ser analisado criteriosamente, porque, pelo método analítico que os historiadores foram desenvolvendo através dos séculos, é possível ver para além das aparências e descobrir realidades escondidas por meio deles. Além disso, nada mais adequado para se entender e analisar uma ideologia de poder do que vê-la articulada de forma audiovisual (unindo discurso e imagem, duas dimensões poderosas de poder, de opressão e controle, não só de diversão). Portanto, não me contento com a categórica declaração de que são simplesmente chatos e, por isto mesmo, não são dignos de nenhuma atenção (a maioria dos documentos históricos, sejam quais forem os seus suportes, com os quais um historiador trabalha, por si mesmos, não são nada atrativos para um adolescente frequentador de cinema de shopping com acompanhamento de McDonald posterior).

Joris Ivens. Imagens de internet


Portanto, mais do que o fato de serem cine-jornais, o que os tornavam massantes era o fato de serem construídos com a intenção oficial de legitimar (a palavra legitimar, aqui, nada tem de pejorativa, em si mesma, porque ela tanto pode ser usada para legitimar uma ditadura, quanto uma democracia), muitas vezes, regimes políticos autoritários e sempre a partir de uma concepção positivista de história que não problematizava nada (não só escondendo as contradições e opressões sócio-econômicas e políticas, mas dando apoio implícito ao regime de força anti-democrático instalados por meio de golpes de Estado). Ao contrário, estes regimes viam qualquer tipo de problematização como subversiva. Além disso, os fatos eram apresentados de maneira linear e cumulativa, sem reflexões e aprofundamentos analíticos.

Joris Ivens. Imagens de internet

Muitas vezes a chatice de tais documentários, supostamente didáticos (quando, na verdade, são anti-didáticos), não vinha dos fatos históricos unilaterais em si mesmos que eles abordavam, mas da total falta de comunicação e identificação do público para com aquele ponto de vista (no nosso caso brasileiro, muitas vezes um ponto de vista positivista autoritário e militarista, bem alheio ao modo tido como normal de um cidadão comum encarar o mundo; especialmente os das classes mais populares e de setores da classe média mais progressista e mais intelectualizada e inconformista). Ou seja, mesmo que só inconscientemente, o público não conseguia ligar sua alma àquelas imagens e àquela maneira de apresentar a realidade política que ele vivia cotidianamente, mesmo que não soubesse explicar direito porque isto acontecia (era mais fácil dizer que aquilo era chato). Entretanto, não se pode esquecer dos cines-jornais que falavam do futebol, como o Canal 100, por exemplo. Estes sim, atraiam a atenção do público, não só por causa de uma certa estética melhor trabalhada, mas também porque iam direto ao encontro da paixão pelo futebol, não apresentando o ponto de vista estritamente político das elites ditatoriais no poder (o que prova que havia algo mais do que o meramente "chato" e isto não se dava por causa de um suposto didatismo daqueles cines-jornais, mas por outras razões).

Joris Ivens filmando. Imagens de internet


Mesmo antes da invenção do videocassete, da TV a cabo (ou por satélite) e por segmentação de público e assuntos, havia um determinado tipo de filme didático feito para preencher um determinado nicho de mercado: universidades e escolas particulares (mas, em alguns casos, também para o sistema público de ensino, onde havia mais verbas e melhores condições de ensino). Ora, dependendo do assunto abordado e da metodologia empregada na exposição do assunto, o filme poderia até ser chato (especialmente em questões mais abstratas, quando não acompanhadas pelo espectador que se desinteressava logo delas; mas, mesmo aqui, como educador que sou, é preciso dosar esta afirmação com a faixa etária correspondente), mas não necessariamente por ser didático. Muitos destes filmes não são chatos e ainda permanecem válidos, como documentação histórica, de como o saber científico e artístico, nas mais diferentes áreas, por exemplo, foi avançando durante o século XX e permanecerão importantes como referenciais para futuras pesquisas.

Joris Ivens. Imagens de internet

Portanto, como é preciso perceber claramente, não posso endossar acriticamente a ideia preconcebida de que os documentários didáticos sejam necessariamente chatos e monótonos. Não ponho lenha na fogueira da deslegitimação do documentário didático (ainda mais porque sou educador de história e gosto sim de boa reflexão crítica sobre o pedagógico das imagens e nas imagens). Não penso que um documentário didático não possa ser instigante e interessante. Entretanto, claro que há uma dimensão própria que diferencia um documentário didático de um outro documentário de cunho mais cinematográfico que não renego.

Joris Ivens. Imagens de internet

Como exemplo, cito a qualidade da pesquisa e da estética de alguns dos documentários produzidos ou veiculados, por exemplo, pela Discovery, pelo National Geographic, pelo The History Channel (embora, em postagem anterior tenha falado que a programação deste canal esteja muito ruim, isto não quer dizer que esta seja uma condição permanente, porque lembro do excelente nível de documentários já apresentados anteriormente pelo History Channel e pela Discovery; tenho para mim que o que está acontecendo é que eles estão procurando acumular dinheiro, via patrocínio, ampliando o público com assuntos menos sérios cientificamente, para investirem em mais documentários de qualidade intelectual e científica) ou TV Escola, entre outros (só para citar alguns dos muitos canais de TV a cabo que veiculam o chamado documentário didático - entretanto, são documentários didáticos em lato senso, isto é, não são didatistas tratando o espectador como um débil mental, porque, em pleno século XXI, com mais de um século de reino de audiovisual, a cultura geral mínima dominada pela sociedade é maior, comparativamente, de que a cultura média das sociedades europeias do século XIX).

Joris Ives. Imagens de internet

Não estamos a dizer que devemos aceitar acriticamente tais documentários, nem que não precisamos esperar deles um aperfeiçoamento tanto dos conteúdos, quanto das formas. Estamos afirmando que não são chatos só porque têm sim sua dimensão didática e inteligente (mas, no nosso entender, mesmo um documentário cinematográfico de um Jean Rouch, por exemplo, Joris Ivens, Vladimir Carvalho, Eduardo Coutinho e Robert Flahert, tem também sua dimensão didática). Um filme como Cabra Marcado para Morrer, por exemplo, para além de todas as questões estéticas que propõe e repropõe, questiona e se questiona, é também um conteúdo que pode ser usado didaticamente em sala de aula de história, por exemplo (tanto que já o usei, com alunos da EJA) como maneira de situar, no ponto de vista do destino de amplas camadas camponesas, a ditadura militar brasileira, em diálogo com as experiências de vidas de alunos que, muitas vezes, vêm também do mundo rural (e os alunos respondem bem ao debate sobre o filme em questão, de modo que, querendo ou não querendo, o Coutinho imprimiu no filme, mesmo que ele seja rebelde a esta questão do documentário didático, uma dimensão também pedagógica e seria interessante ele entender o pedagógico na perspectiva de um Paulo Freire).

Joris Ivens. Imagens de internet

Não é pecado nem heresia aprender através de um documentário. Aliás, não é problema algum aprenderatravés de qualquer tipo de documentário. Aqui é que reside a diferença principal entre os diferentes tipos de documentários. Um cinedocumentário que é construído (e destilado) ao longo de anos e anos de reflexão, tem uma dimensão que pode ser comparada ao vinho de qualidade maturado por anos. Percebe-se claramente que há algo de diferente entre este tipo de documentário cinematográfico e um documentário jornalístico realizado por uma equipe de TV para alimentar o telejornal diário, semanal ou mensal. Este "algo de diferente" é o próprio tempo condensado no documentário (alguns cine-documentários levam 30 anos para ficarem prontos). É a maneira de lidar com esta qualidade intrínseca de um documentário que dá tanto o estilo, quanto a qualidade estética do documentário e um bom documentarista deve ser capaz de dizer, como o poeta mineiro, "o tempo é a minha matéria/o tempo presente, a vida presente, os homens presentes."

Joris Ivens com Picasso e, abaixo, com Vladimir Carvalho

Que homens e que tempos e lugares são estes é o que nos interessa conhecer enquanto espectadores que somos. Como o conhecimento é um tipo de poder (em sentido político do termo), claro que o documentarista, independentemente do tipo de documentário que ele pratica (e independentemente de sua própria consciência sobre isto), lida com a questão do poder e da existência. Sua atividade intelectual é, em última instância, política, em uma dimensão mais ampla do que o meramente conjuntural e partidário. E tempo é poder; poder de seduzir, em primeiro lugar, a atenção daquele com o qual se dialoga através do filme (que tanto pode ser o documentário cinematográfico, quanto o didático e jornalístico).

Jean Rouch, o fundador do cinema verdade. Imagens de internet



Afinal, para que documentar e por quê? A resposta nunca é para si mesmo. Como documentar, esta é uma outra questão. Às vezes o documentarista não tem noção explícita de como ele faz sua documentação. Entretanto, na medida em que ele vai percebendo, pela reflexão que faz do seu próprio trabalho, que o olhar da câmera não é a extensão automática de seu próprio olhar biológico, a própria natureza das imagens que são manipuladas por ele vai assumindo outra dimensão, uma dimensão menos ou mais reflexiva, mas uma dimensão pensada e que faz pensar. Isto implica que o documentário raramente se presta para a mera diversão e o mero entretenimento (até podem haver casos de documentários de entretenimento, que não seriam chatos para uma plateia de adolescentes de shoppings centers, mas, não tenho conhecimento deles). No meu entender, é claro, documentário, de qualquer tipo, é para fazer pensar, por mais belo e ameno que seja o seu tema.

Jean Rouch. Imagens de internet

Talvez seja por isto mesmo que os documentários, quando inseridos no circuito comercial, raramente ultrapassam os números de bilheteria dos filmes de ficção de puro entretenimento (e olhem que estou falando dos filmes de entretenimento que alcançam a renda mais baixa, não dos blockbusters). Isto também quer dizer que os documentaristas, especialmente os que só se dedicam a este gênero de filmes (no caso do Brasil, são poucos, porque muitos cineastas de ficção também fazem documentários, mas, no meu entender, não podem ser considerados documentaristas porque não têm dedicação exclusiva e seus documentários são acessórios em suas obras, não a linha principal), não são os cineastas que enriquecem através de seu ofício (se alguém quer atingir a fama fácil e ficar milionário através do cinema, não será por meio deste gênero de filmes; muito menos no Brasil).

Jean Rouch. Imagem de internet

Felizmente vivemos agora em um momento histórico em que estão surgindo novas possibilidades de circulação de documentários que não se restringem às salas de cinema comercial, aos cines clubes, às TVs à cabo ou às televisões abertas. Há inúmeras possibilidades não só com a internet e o YouTube, mas também com os DVDs que circulam livremente, de mão em mão, com os pen-drives e as televisões LCD e LED (e com a tendência de confluência de mídias, por exemplo, entre a internet e estas televisões mais modernas). Mas estas novas possibilidades de circulação não eliminam toda a experiência já alcançada em mais de cem anos de existência do cine-documentário.

Imagens de internet

Ao contrário, como já disse aqui neste site outras vezes, não começamos uma nova era digital de imagens da estaca zero, porque herdamos uma longa história anterior de realizações que precisamos absorver como referenciais próprios que devemos ter para novas criações que serão as nossas contribuições pessoais a este patrimônio cultural comum. Portanto, aqui rendo minha homenagem pessoal a estes documentaristas clássicos, que nos antecederam, importantes para a definição consistente da autonomia deste tipo de cinema face ao cinema de ficção (especialmente a Vladimir Carvalho, que faz parte de minha vida desde minha infância, por uma relação familiar de parentesco, e a Jean Rouch, que nunca conheci, é claro, mas que me inspira muito a realizar um documentarismo, artesanal e autoral, sim, nem por isto menos importante, de cunho antropológico e historiográfico porque o nicho societário que quero atingir não se confunde, de modo algum com shoppings centers, com todo o respeito ao cinema comercial).

Imagem de internet

Os documentários que ainda pretendo fazer são militantes, mas não panfletários (e a dimensão militante que espero imprimir neles vai além da política partidária, mas de modo algum é uma militância supostamente "pós-moderna" e "pós-ideológica" porque é uma militância sim, socialista, em termos mais generosos, por um mundo melhor e em defesa das boas causas da preservação do patrimônio material e imaterial de nossa condição humana, além do patrimônio natural que nos envolve e nos absorve). Alberto Nasiasene Jaguariúna, 15 de agosto de 2012

Jean Rouch. Imagens de internet



Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

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