Escolástica medíocre vazia de conteúdo
Ter um título hoje em dia, no Brasil, não quer dizer nada. O que é importante é a qualidade da obra de quem produz. Entretanto, no Brasil da república dos bacharéis, como diria Sérgio Buarque de Holanda, o diploma pendurado na parede parece valer muita coisa e ter conseguido um título de doutor ou mestre só engana ainda os incautos. Já faz anos que me desencantei com isto e não dou a mínima importância a estes títulos, só se vier acompanhado da qualidade da obra que dá lastro ao título. O título só, é papel e carimbo, como qualquer outro papel. Não quer dizer muito não (ainda mais agora que o nosso país está se inflacionando de títulos; segundo fontes confiáveis diversas, mais de 30.000 mestres por ano e mais de 11.000 doutores por ano; com a meta estabelecida de se alcançar 50.000 mestres por ano e 25.000 doutores por ano, segundo o Plano Nacional de Educação aprovado em 2014).
Darcy Ribeiro, que fundou a primeira pós graduação de antropologia no Brasil, criando também o Museu do Índio, ele mesmo, não fez nem mestrado (que não havia), nem doutorado. Entretanto, embora uma legião de antropólogos brasileiros sequer o mencionem, pelo despeito que tem do Darcy e sua projeção internacional, foi ele o maior antropólogo brasileiro do século XX. Intelectuais mais medíocres do que ele, especialmente depois do golpe de 1964, tomaram a cena, como um tal Gilberto Velho (e fazem questão de esquecer que não foram eles quem inventaram a pós graduação em antropologia na UFRJ, mas Darcy, que veio antes deles). Não perdoam ao Darcy a ousadia de se descolonizar, de dizer verdades inconvenientes, tais como a de que os antropólogos brasileiros do tempo da ditadura militar se contentavam em macaquear teses alheias do norte atlântico. Roberto da Matta não o perdoa até hoje... Mas Roberto da Matta não fundou nenhuma universidade, como a UnB, que foi obra do Darcy Ribeiro antes da ditadura militar se vingar destruindo seu projeto político pedagógico no pós 1964. Diz uma lenda que um dos orientandos do Roberto Cardoso de Oliveira, na UnB, teve a página de dedicatória arrancada e feita em pedacinhos só porque ele mencionou o nome de Darcy Ribeiro (para se ver o nível de relação ética que os antropólogos queridinhos da ditadura militar, os que assumiram os postos acadêmicos no pós golpe de 1964 - e sempre bom lembrar que, a despeito das exceções à regra, as ditaduras gostam muito da mediocridade que floresce sempre que uma ditadura está no poder). Roberto Cardoso de Oliveria era um dos muitos antropólogos, por exemplo, da UnB, universidade fundada por Darcy Ribeiro, que não perdoava as ousadias de Darcy Ribeiro, por exemplo, a de continuar defendendo as causas indígenas mesmo quando parlamentar (foi um dos que deu apoio ao cacique Juruna para ser deputado, enquanto que antropólogos como Roberto da Matta e Roberto Cardoso de Oliveira, ambos antropólogos iniciaram suas carreiras pelas mãos do Darcy e estudando índios que, depois, esqueceram por dedicarem-se mais às suas carreiras acadêmicas e assuntos outros que nada tinham a ver com os povos indígenas).
De cima para baixo, Robert da Matta, Roberto Cardoso de Oliveira e Darcy Ribeiro
O problema que aponto não está nos números, bem vindos, mas nos métodos de recrutamento de apadrinhados para as pós graduações, em todas as universidades. Não há exceções (nem as universidades que se auto consideram a si mesmas, mesmo que rankiadas por instituição internacionais, elas mesmas também não isentas do mesmo problema que apontamos aqui). Isto quer dizer que as universidades públicas brasileiras nunca foram atingidas pela Revolução de 1930, infelizmente, porque ainda se vive no universo deplorável, anti ético e anti intelectual dos apadrinhamentos, clientelismos e "cartas de recomendação" (pasmem, há este quesito constando dos critérios de seleção de mestrados e doutorados em história da arte, por exemplo). Mesmo aquelas universidades, especialmente as estaduais paulitas, USP e Unicamp, supostamente de elite, que tanto falam em ideologia de mérito, dominadas que são pela ideologia atucanada que impera neste estado há décadas, mas que muito pouco a praticam, porque se tornaram meras reservas de mercado para apadrinhados de certos estamentos sociais paulistas. Portanto, como vemos, os métodos de recrutamento dos mestrados e doutorados não têm nada que ver com mérito intelectual, mas com afinidades de interesses e com apadrinhamento puro e simples. Isto não comprova mérito intelectual algum, por si mesmo, ou seja, só pelo título conferido; especialmente se não vier acompanhado do lastro necessário da obra de qualidade antes, durante e depois dos tais mestrados e doutorados.
Isto quer dizer apenas que se temos uma casta de medíocres acadêmicos que pensam que podem impressionar as irmãs mais novas da velhinha de Taubaté (porque a própria velhinha já morreu faz tempo), encastelados em postos dentro das máquinas de produção de currículos Lattes pomposos, mas medíocres e em série, o que teremos será a reprodução do mesmo padrão dos mestres e doutores (porque a seleção dos projetos de mestrados e doutorados se dá como um pente fino em que se excluem, de antemão, os dissabores que possam, porventura, criar questionamentos aos orientadores que, no fundo, só querem alimentar seus próprios currículos Lattes com o número de orientados o que, em tese, significaria a importância acadêmica de tal ou qual acadêmico).
Além disso, é importante perceber que o Brasil já não é o mesmo país dos anos 1970, ou dos anos anteriores, nas décadas de 1950 e 1960, em que uma defesa de tese, como a de Florestan Fernandes, por exemplo, era um acontecimento histórico. É só comprar e ler estas teses que se tornaram hoje clássicos da literatura brasileira para comparar com o que se produz, em série, hoje. O nível de densidade e de profundidade das teses de mestrado deste período de 1950 e 1960 estão bem acima do nível de doutorados defendidos hoje. Algumas dissertações de mestrado, para mim, mais parecem trabalhos bimestrais de graduação. sinto vergonha pelo orientador que orientou uma porcaria destas e pela instituição, mesmo que seja Unicamp ou USP que deu a chancela para um trabalho medíocre destes (muitas vezes inferior ao que alunos de graduação, em universidades Brasil afora, que serão barrados na seleção prévia de projetos de mestrado e doutorado, fazem com muito maior valor e qualidade intelectual nas diversas áreas do saber e do fazer).
O que há de positivo, segundo penso, entretanto, apesar de tudo isto, é que hoje o país já tem um amplo leque de instituições, muito além das universidades públicas e particulares, que produzem pesquisa e conhecimento científico nas três áreas agrupadas da ciência (as sociais, as biológicas e as físicas) que possa ser igualado às teses de que falo, nos anos 1950. Por exemplo, os próprios partidos políticos, sindicatos e centrais sindicais, este veículo aqui, do jornalista Nassif, museus diversos, instituições de ensino básico (como a rede pública municipal de Campinas, onde trabalho como educador de história do ensino fundamental) etc. Pesquisa e produção de conhecimentos, felizmente, não são mais monopólio de universidades ou instituições acadêmicas por maior que seja o renome que tenham. Hoje, com a difusão da internet, é possível produzir pesquisa e reflexão teórica de qualidade dentro de casa (claro, que, guardadas as devidas proporções, mais em umas áreas do que em outras).
Por isto, o mais importante não é saber a quantidade de doutores ou mestres que um país forma anualmente (bem vinda a quantidade, desde que repensada e que democratizada de forma mais abrangente e menos clientelista, com critérios mais objetivos que vão muito além das preferências pessoais deste ou daquele orientador que usa as universidades públicas, especialmente, como aparelhamento de sua carreira irrelevante historicamente; porque, seguramente, uma geração depois, ninguém mais se lembrará dos nomes destes orientadores, a despeito da quantidade de teses e dissertações medíocres realizadas através de sua orientação, porque não deixaram obras relevantes e de qualidade). O mais importante é conferir, antes de ver o carimbo e o papel timbrado, a qualidade de suas produções nos campos artísticos, científicos diversos, jornalísticos, institucionais etc. O critério de avaliação aqui não é o quantitativo, mas o qualitativo (embora não seja daqueles que despreza elitistamente o quantitativo, porque sei que também é possível ter pequenas quantidades de nulidades). Como avaliar a obra e a importância de um Van Gogh, que nem teve oportunidade de cursar algum curso superior em sua época? Claro que não pelos títulos que ele portava, mas unicamente pela qualidade da obra que ele gerou. Como avaliar a qualidade e importância da cinematografia de um Glauber Rocha, que não terminou sequer seu curso de direito na Universidade da Bahia? Certamente não seria pelo curso superior, no caso dele, de direito (incompleto). Caetano Veloso e Chico Buarque de Holanda não terminaram seus cursos, de filosofia, o primeiro, e de arquitetura, o segundo. Entretanto, a qualidade da obra destes artistas não se compara a muitos destes pós doutores que estão na Unicamp e USP (é até covardia compará-los).
Felizmente, a sociedade civil brasileira do século XXI já não se contenta mais com a simples aparência e com a ostentação pavoneante de títulos de doutorado. O que se quer é uma produção de qualidade, relevante para o avanço do conhecimento não só de nosso país, mas do mundo; com título ou sem título, pouco importa.
Alberto Nasiasene
Jaguariúna, 16 de junho de 2017
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