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A geografia existencial paraibana que existe em mim II


Alagoa Grande PB. Gravura: Alberto Nasiasene

Minha tia Ruth, que me ajudou muito a viver fora de casa, quando eu fui estudante universitário morando em repúblicas e pensões em Campina Grande, entre 1980 e 1983, foi a dona do cartório do registro civil da cidade de Alagoa Grande (cartório este que ainda está nas mãos de minha família, atualmente, de um primo meu, o Aloísio Guerra, filho de um dos irmãos de minha mãe, que era uma criança de 10 anos quando eu estudava sociologia na UFPB e sempre aconselhava que ele devia estudar muito para continuar a ter o direito de ser o dono oficial do cartório, com todas as leis relativas a isto que foram se alterando aos poucos, ao longo dos anos e das décadas, porque, hoje, não é necessário apenas ter o direito hereditário de propriedade, mas também ser aprovado em um concurso público específico na justiça estadual; o que é um paradoxo típico de nossa sociedade). Portanto, pode parecer muito estranho tudo isto que estou dizendo, porque, bem ou mal, eu era socialista sim e ainda sou (mas sem dizer isto explicitamente para minha tia e minha avó maternas, velhinhas, porque mantinha minha militância no PT clandestina entre minha família, que era muito conservadora, no mínimo, para não ter que dizer de direita; o que eu ganharia provocando nelas a morte por infarto, caso vivesse contestando-as e agredindo-as ideologicamente?).

Alagoa Grande PB. Gravura: Alberto Nasiasene


Embora um cartório de registro civil (onde os casamentos, nascimentos e mortes são registrados oficialmente) não faça de ninguém, ainda mais em uma cidadezinha de interior da Paraíba, como Alagoa Grande, onde minha mãe e eu nascemos (junto com todos os meus irmãos, menos a caçula) rico (muito menos milionário), como pode fazer um cartório de imóveis (onde se fazem as escrituras, testamentos e se registram os imóveis etc., portanto, atividades burocráticas semi-estatais e privadas que dão muito mais lucro do que o registro civil), dá sim uma posição social privilegiada para quem o possui, dentro do contexto social, é claro, colocando seu proprietário na pequena classe média urbana do município (pequena burguesia).

Bem ou mal que seja, graças a minha tia Ruth (e a meu avô paterno Ademar, coronel reformado), pude estudar na UFPB. Isto a despeito de que eles fossem avessos à esquerda. Minha tia Ruth, católica por formação e opção (formada em magistério no colégio das Doroteias) era anti-comunista convicta (mas não completamente avessa à esquerda em geral, porque aceitava, em tese, o "socialismo democrático" de um PSB, partido ao qual pertenceu um dos Guerra, primo delas, filho do senhor de engenho herdeiro de meu bisavô, tio de minha mãe; como também havia pertencido o escritor José Lins do Rego). Já com relação ao meu avó militar (que foi um revolucionário em 1930 e, em 1932, veio combater as forças paulistas, em São Paulo, pelo lado das forças getulistas), as coisas eram bem mais complicadas (embora ele não tenha participado do golpe de 1964, porque já estava aposentado há muito).

Alagoa Grande PB. Gravura: Alberto Nasiasene


Meu avô era anti-comunista sim e não tinha nenhuma simpatia pessoal e afetiva para com a esquerda, mas era da geração militar nacionalista da Revolução de 1930. Portanto, uma geração varguista PSDista diferente da geração anti-varguista UDNista que tomou o poder em 1964 (aliás, suas ligações políticas eram mais com os políticos do antigo PSDgetulista, muito mais do que com o PTB, especialmente com o governador e senador Rui Carneiro, amigo pessoal dele, amigo este de meu avô que vi no apartamento de meus pais em Brasília, quando eu tinha 12 anos de idade e quando ele era o senador do MDB da Paraíba; em 1972, ano em que o senador foi fazer uma visita a minha avó paterna, que estava em estado terminal de câncer, momentaneamente hospedada no nosso apartamento em Brasília). Além disso, havia uma hostilidade latente entre estas duas gerações de militares (os varguistas e anti-varguistas) nos bastidores da política civil e militar desta época (coisa que, na época, era impossível que eu compreendesse, evidentemente).

Alagoa Grande PB. Gravura: Alberto Nasiasene


São os paradoxos da vida, dos quais tenho tanto falado. Meu avô, que era convictamente anti-comunista, em certos termos, tinha até mais abertura para certos enfoques da esquerda (pelo menos ele respeitava muito a erudição dos intelectuais de esquerda, como Jorge Amado, Niemeyer, Portinari, Vladimir Carvalho etc.) do que minha tia Ruth, que vinha de uma tradição de oposição aos varguistas, apoiando frequentemente a UDN nas eleições municipais, estaduais e nacionais. Somente recentemente é que fui saber que um dos tios de minha mãe, o tio Félix de Araújo Guerra, filho do "papai Guerra" senhor de engenho, foi prefeito de Alagoa Grande, antes da Revolução de 1930. Depois de descobrir isto, em conversa com minha irmã e meu irmão (os dois mais velhos que moram em João Pessoa atualmente), é que pude entender porque é que eles, os parentes de minha mãe, eram anti-Vargas (a ponto de se recusarem, até o fim da vida, de chamarem a capital do estado de João Pessoa, porque sempre diziam que era Parahyba), porque estavam vinculados às estruturas políticas oligárquicas pré-Revolução de 1930 do PRP (Partido Republicano Paraibano).

Alagoa Grande PB. O engenho Brejinho. Gravura: Alberto Nasiasene


Ora só estou dizendo tudo isto para tentar demonstrar duas coisas: porque é que a região do Brejo paraibano (com sua geografia e história específicas) está intimamente associada não só à história de minha vida, mas também à estrutura mais íntima de minha psiquê (porque, dentro de mim, edipianamente, sempre houve este conflito arquetípico entre estes dois mundos em choque permanente e isto é que explica certos paradoxos presentes em meu espírito) e porque é que, quando fui estudante de sociologia na UFPB, militante marxista revolucionário (ajudando a fundar o PT, mas ainda querendo ser membro do PCB neste início dos anos 1980), até por causa da simples sobrevivência física, ficava entre a frigideira e o fogo, ao receber as mesadas que recebia de minha tia Ruth e de meu avô Ademar; sem alternativa financeira própria enquanto estudante universitário da UFPB estudando no curso diurno, sem nenhuma possibilidade de conseguir autonomia financeira (portanto, ao contrário do que pensa minha esposa até hoje de mim, nunca fui filhinho de papai não, porque meu pai mesmo, nunca me ajudou em nada neste período de minha vida universitária; no início, sem a ajuda de meu avô e de minha tia, quando estava em clandestinidade absoluta, passei muita fome e só não morri de inanição, como já me referi em outras vezes, porque deve ter acontecido algum milagre da parte de Deus, já que fui internado pelo menos três vezes, que eu me lembre, no pronto-socorro municipal de Campina Grande, achando que estava morrendo por inanição, por causa da fome crônica; que eu mantinha secreta e não falava a ninguém, porque, afinal, estava em situação de clandestinidade e ainda não era filiado a partido nenhum, nem aos partidos clandestinos e proibidos pela ditadura).

Alagoa Grande PB. A Usina Tanques. Gravura: Alberto Nasiasene

Não é uma situação linear facilmente explicável tudo isto que estou falando aqui, para relatar a forte presença do Brejo e da Paraíba em minha subjetividade enquanto professor de história da rede municipal de ensino de Campinas, estado de São Paulo. Isto quer dizer que, eu era sim, radical e coerentemente, marxista socialista e não fazia nenhuma concessão ao pensamento burguês, ou pequeno-burguês, qualquer que fosse, mais progressista ou mais conservador (ao contrário, tinha um ódio arraigado contra este pensamento desde meados de minha adolescência rebelde em Brasília).

Alagoa Grande PB. Telhados. Gravura: Alberto Nasiasene

Isto quer dizer que de modo algum me deixava influenciar pela mentalidade de minha família (tanto a de minha mãe, quanto a de meu pai). Ao contrário, eu estava fazendo, nesta época, uma radical autocrítica marxista de mim mesmo e de minhas origens sociais e ideológicas. Por isto é que eu vivia numa radical solidão interior (que me fazia sofrer muito). De modo algum, eu deixava transparecer, na militância, esta origem pequeno-burguesa que, para mim, era um grande defeito a ser combatido e superado, não uma virtude social de snobes burgueses (eu era socialista e estava ajudando a construir, desde já, uma sociedade socialista com valores radicalmente diferentes daquela burguesia e pequeno-burguesia paraibanas). Além disso, não era lá muito pacífico este meu relacionamento doméstico com minha tia, em Alagoa Grande, e com meu avô, em João Pessoa (apesar de todos os meus esforços táticos de não irritá-los e não contrariá-los de modo algum, afinal, além de depender financeiramente deles, eu não era, e não sou ainda, um ingrato que cospe no prato em que come).

Alagoa Grande PB. Casa popular, de taipa. Gravura: Alberto Nasiasene

É por isto que digo que vivi o meu Deus e o Diabo na Terra do Sol (embora não tenha vivido no sertão paraibano, mas na região do Brejo, em meu período estudantil universitário enquanto militante de esquerda marxista - comunista, mais especificamente falando). O que há de dramático (ou trágico, com o desfecho ocorrido já em Brasília, através do suicídio) aqui é esta forte tensão existencial, em meio ao contexto externo político conturbado em que eu vivia, enquanto militante fundador do PT (e é bom lembrar que ser membro do PT naquela época não é como ser membro do PT hoje em dia não, de modo algum; porque ainda era algo de muito perigoso e arriscado; muitos destes que estão hoje por aí no PT jamais iriam querer ser membros do partido nestes tempos em que não dava "status", ao contrário, podia até levar alguém a correr risco de morte, ou, no mínimo, de exclusão total do convívio social com a parcela mais bem situada da classe média, realidade de exclusão social concreta que vivi em meu período estudantil universitário de Campina Grande).

Alagoa Grande PB. O Cruzeiro do morro onde moram os trabalhadores da cana. Gravura: Alberto Nasiasene


Portanto, não por acaso, estou indelevelmente, mesmo que não queira, ligado ao Brejo e ao nome de Margarida Maria Alves. Não é mera expressão poética afirmar que moro hoje na casa de minha avó, em Alagoa Grande, e que sou um caipira desta cidade interiorana paraibana (que, dentro de mim mesmo, está aqui mesmo onde moro hoje, em Jaguariúna, no estado de São Paulo). Afinal, se falo em processo de re-construção consciente de minha própria vida tantas vezes estraçalhada, estou me referindo também a este resgate intelecto-existencial da memória de mim mesmo, num sentido sacramental religioso de volta ao passado através do futuro. Isto também quer dizer, simplesmente, que desejo continuar trilhando o caminho revolucionário que comecei a trilhar desde o final de minha adolescência, lutando ativamente por um mundo melhor, como tenho feito.

Alagoa Grande PB. Casas de taipa. Gravura: Alberto Nasiasene


Começar a realizar pequenos documentários, como pretendo fazer a partir deste ano (para ter um material audiovisual que pretendo começar a usar até mesmo em sala de aula), é só um projeto de vida que dá continuidade a toda esta minha trajetória anterior que vem de minhas origens paraibanas mais remotas. Além disso, quando digo que quero continuar a parceria com o Ângelo e a Mirza, isto também tem esta dimensão religiosa e simbólico-existencial de resgate de minha memória militante em direção à construção de um futuro que estou ajudando a construir, passo a passo, agora, junto com vocês. Portanto, isto não deixa de ser um re-encontro comigo mesmo (e por isto é que estou tão feliz e realizado como ser humano no início deste século que se inicia; se por acaso morrer agora, morrerei realizado e feliz, podem ter certeza, mas peço a Deus que isto demore muito e que eu consiga ultrapassar em muito os 90 anos de idade).

Alagoa Grande PB. Casa de taipa. Gravura: Alberto Nasiasene


Nos dias de aniversário, tenho feito, ritualmente, todos os anos, uma reflexão existencial e um projeto, diante de Deus, de como quero viver os anos que me restam, a partir do que já consegui, pela graça de Deus, realizar até agora. Este e-mail surgiu por causa deste ritual que faço.


Alberto

Alagoa Grande PB. Centro antigo. Gravura: Alberto Nasiasene



Jaguariúna, 3 de fevereiro de 2008, 48 anos de idade (faltam apenas 2 anos para completar meio século de existência). Pela primeira vez eu revelo, por escrito, qual é o dia de meu aniversário (porque esta data sempre é passada o mais discretamente possível, em minha solidão interior, dentro deste ritual que faço todos os anos, mas, pela primeira vez, estou pensando em sair de casa, com a Maria Ignez e a Loretta, para comemorarmos juntos em uma pizzaria; é uma comemoração de aniversário conjunta, entre nós três).

Minha mãe adolescente em Alagoa Grande. Acervo pessoal de família.


Minha mãe com meu irmão mais velho, em Alagoa Grande. Acervo pessoal de família.


Meu pai, quando chegou em Brasília, em 1963. Eu, minha mãe e meus dois irmãos menores iríamos no ano seguinte, 1964. Os mais velhos já estavam com ele, porque minha mãe estava grávida de meu irmão caçula e teve que esperar. Acervo pessoal de família.

Foto que tirei para transferir meu título eleitoral para Campina Grande e ajudar a fundar o PT no interior da Paraíba. 1981.

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