A geografia existencial paraibana que existe em mim III
Última Estação da Mogiana em Jaguariúna, SP, onde moro hoje, chamada Centro Cultural
(há um museu ferroviário e a Maria Fumaça turística,
que vem de Campinas, para aqui). Foto: Alberto Nasiasene 2004.
Alagoa Grande PB. Correio. Ao fundo, vemos a casa onde está atualmente o museu sobre Jackson do Pandeiro.Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Não sei se este prédio, gigantesco para os padrões da época, já existia quando meu avô João Ignácio Cavalcanti de Medeiros era vivo (porque ele morreu em 1936). Quando eu era estudante de ciências sociais na UFPB, evidentemente, a formação teórica que estava recebendo não me ensinava a fazer este tipo de investigação especificamente historiográfica. Isto é, nem me passava pela cabeça a necessidade de ir às fontes documentais buscar averiguar datas precisas. É uma pena porque, na época, eu realmente tinha esta possibilidade concreta, porque minha tia Ruth, ex-dona do cartório, já aposentada, estava viva. O cartório de registro civil ainda continuava, e continua hoje, nas mãos da família, através de meu tio Joãozinho, irmão mais novo de minha tia Ruth mas mais velho do que minha mãe a caçula, e, agora, através de meu primo Aluízio, filho do meu tio Joãozinho, que já faleceu.
Alagoa Grande PB. Igreja Matriz. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Minha tia era amiga dos outros donos de cartório do município e do prefeito (que ela endeusava, o Dr. Bosco, como ela chamava). Este prefeito era da ARENA, posteriormente PDS (e é claro, eu queria distância absoluta, como o diabo foge da cruz), e, se não me engano, era o dono do cartório de imóveis (mas eu posso estar me enganando aqui, confundindo tudo, porque penso que ele havia sido o promotor de justiça local). Para minha tia, ele não era um preposto do usineiro Agnaldo Velloso Borges (o mandante do assassinato de Margarida Maria Alves e isto não sou eu quem diz, mas os autos do processo, é só conferir nas muitas páginas de internet sobre a líder sindical rural de Alagoa Grande), mesmo que fosse do mesmo partido, porque, na mentalidade dela, ele era adversário do tal todo poderoso; já que ganhava as eleições municipais através do artifício da sublegenda (os partidos podiam concorrer com dois candidatos, quando não houvesse acordo interno no partido). Isto é, o usineiro apoiava sempre outro candidato, contra o "Dr. Bosco", mas, ao final do processo eleitoral, quem ganhava, por maioria de votos, era o segundo candidato da sublegenda da ARENA (o que, no entender de minha tia, queria dizer que o povo de Alagoa Grande não se curvava à truculência do usineiro). Quando a ditadura militar acabou, ele migrou para o PMDB.
Alagoa Grande PB. Cetro antigo da cidade. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Observem uma casa amarela, na segunda foto, com portas e janelas azuis, à esquerda do prédio dos correios, do outro lado da rua. O cartório do registro civil era ali, em minha infância. Lembro-me desta época porque fui passar férias de verão, com meus pais, em 1966, quando eu tinha 6 anos de idade e ainda guardo algumas imagens, em meu cérebro, de quando minha tia um dia me levou lá. Não me lembro o que ela foi fazer, mas me lembro das cenas que ficaram em minha mente: ela fechando aquelas altas janelas (muito estranhas já, para mim, que estava morando em Brasília, onde não havia nada parecido com isto). Outro detalhe que me lembro, era a existência daqueles enormes livros onde os registros eram feitos.
Alagoa Grande PB. Casarão azulejado no centro antigo. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Um pouco à direita, ou à esquerda, não me lembro mais (porque, se não me engano, não existe mais), ficava o coreto da praça central de Alagoa Grande. Para mim, menino de 6 anos, junto com meus outros irmãos, era a grande diversão inusitada (que não tínhamos em Brasília nem em sonho), subir no coreto e ficar brincando dentro daquilo que parecia com um ringue de luta livre (tipo o Ted Boy Marinho que víamos na TV). Não queríamos mais sair de lá (isto me lembro desta viagem que seria a última de minha infância, ainda nos anos 1960). Nesta época eu ainda não tinha a menor idéia de que vivíamos em uma ditadura militar (e foi neste ano que o Ângelo Pessoa nasceu, não é verdade?; mas acho que estas férias foram no começo do ano, não no fim, portanto, antes do Ângelo Pessoa nascer; meu irmão caçula, na época, porque Maria Cristina só iria nascer em 1970, em Brasília, também tem o nome de Ângelo, só que Ângelo Giuseppe, e estava com a idade de mais ou menos 2 anos e meio).
Alagoa Grande PB. Casarão no centro antigo. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Somente neste século XXI é que estou compreendendo com maior profundidade a história específica e detalhada da Paraíba, inserida no conhecimento que já tenho de história do Brasil e história universal. Portanto, só agora é que estou começando a entender a importância estratégica dos correios nesta década de 1920/30, porque já li em artigo de análise histórica a ênfase que o governador do estado, o pivô da Revolução de 1930, João Pessoa, sobrinho do pai do Ariano Suassuna (portanto, se não me engano, primo dele), deu à estruturação dos correios na Paraíba (se não me engano, aquele prédio grande, que eu achava belíssimo, no centro antigo de João Pessoa, foi erguido na administração de João Pessoa; hoje é a sede da Prefeitura Municipal de João Pessoa). Devia ser por isto que houve a cobiça, após à morte de meu avô João Ignácio, a respeito do cargo vago aberto na gerência dos correios de Alagoa Grande (e houve a permuta, como minha mãe me disse; e eu só vim saber desta história quando estava estudando minha licenciatura de história e fiz uma gravação do depoimento de história de vida de minha mãe). Talvez esta situação só tenha se tornado possível, porque, na época, este cargo não era preenchido por meio de concurso público, mas por meio de nomeação do governador de estado (ou presidente da república). Era um cargo de confiança (como ainda existe hoje, mas em menor número e em instâncias menos abrangentes do que nesta época).
Alagoa Grande PB. Casarão azulejado no centro antigo. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Devia ser um cargo muito cobiçado, porque, deram em troca um cartório. Não sei como é que pensavam que minha avó iria substituir o marido falecido, ou um de seus filhos mais velhos, mas, para se prevenirem, fizeram a proposta (o famoso toma-lá-dá-cá aquela palha). Talvez porque vivia-se, na época, sob estado de intervenção federal, por causa da Revolução de 1930 (um dos interventores foi Antenor Navarro e o futuro general Ernesto Geisel foi o seu secretário de finanças; meu avô paterno conheceu Geisel em João Pessoa, o outro foi o próprio Rui Carneiro; vem daí a amizade de meu avô Ademar para com o futuro governador e senador Rui Carneiro, quem publicou o livro sobre a História da Polícia Militar da Paraíba de meu avô, pela editora do Senado Federal).
Alagoa Grande PB. Sobrados no centro antigo. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Embaixo, coloco mais uma foto do sobrado azulejado (o azul) que ainda pertence à família de meu avô Ademar Naziazene em Alagoa Grande. Por estranho que isto possa parecer, quase não falo deles, porque, mesmo quando eu era estudante da UFPB em Campina Grande, nunca tive nenhuma intimidade com este lado de minha família em Alagoa Grande (e isto não tem nada a ver com opções políticas, porque, os de meu avô, na época da ditadura militar, eram ligados ao MDB; um primo de meu pai não só foi vereador do MDB na cidade, mas também foi candidato a prefeito, derrotado, é claro, por causa das forças conservadoras da cidade divididas em duas alas vitoriosas, a do prefeito Dr. Bosco e a do usineiro Agnaldo Velloso Borges, o grande).
Alagoa Grande PB. Sobrados no centro antigo. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Em seguida, vemos o tal sobrado moderno, sem graça nenhuma, nem histórica, nem arquitetônica (sem estilo definido e sem arte), que surgiu onde antes ficava o sobrado pertencente à família de minha mãe. Quando eu era estudante na UFPB, o cartório de registro civil funcionava neste sobrado (de modo que, sempre que eu estava chegando de Campina Grande, para passar alguns dias na casa de minha avó, passava na frente do cartório e a primeira pessoa a me ver era meu tio Joãozinho, que sempre foi muito gentil comigo e nunca deixou de me cumprimentar, ao contrário de meu tio mais velho, que morava em João Pessoa, o pai do juiz Hermano, meu primo, que, se eu ficasse na frente, era capaz de passar por cima de mim, porque não me via, talvez ele me julgasse um perigoso subversivo).
Alagoa Grande PB. Sobrado que surgiu em cima do que foi derrubado e que era do século XIX. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
O casarão senhorial em dois momentos de minha vida:
Alagoa Grande PB. Casarão senhorial, fotografado por mim, em julho de 1979.
Eu era muito jovem, mas já estava fazendo a pesquisa que
continuo a fazer trinta anos depois. Foto: Alberto Nasiasene
Alagoa Grande PB. O mesmo casarão em julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Depois deste sobrado que foi demolido para construírem esta casa, havia também a casa paroquial de que falei, que pertenceu ao meu bisavô, "papai Guerra." Ainda é possível perceber que era uma casa, com alpendre, cercada por um pomar amplo (ele devia se sentir sufocado com espaços mais limitados na cidade, por isto que morava, quando estava na sede do município, fora do engenho, em uma casa com mais espaço livre, com árvores frutíferas à disposição e nos lados da casa). O terreno de trás da casa, também pertencia a ele, mas hoje, é uma rua desmembrada da propriedade original. Como ele doou tudo para a Igreja (e por esta e outras ações minha avó e minha mãe achavam e ainda acha que ele seja um santo homem que intercede por elas, no céu), a Igreja deu outros destinos sociais tanto para a casa (que agora serve como moradia para o padre), quanto para os outros terrenos (que ou foram doados ou vendidos, ou permanecem sob o controle da Igreja e da paróquia, não sei).
Alagoa Grande PB. Casarão senhorial. Julho de 1979. Foto: Alberto Nasiasene
A foto abaixo é importante para mim, porque representa a visão que eu tinha quando estava sentado no batente da porta da casa de minha avó, sempre que estava passando dias em Alagoa Grande (meditando filosófica e sociologicamente sobre este contexto urbano-social, tentando analisá-lo, com os conceitos que estava aprendendo em meu curso). Lá no fundo, vê-se o Teatro Santa Inês (onde meu avô João Ignácio costumava se apresentar, ora como músico, ora como ator, em peças locais). Bem ao fundo, aparece a área rural do município, uma colina sempre verdejante, com plantações periódicas, tanto de cana, quanto de milho e feijão (eu ficava observando o ritmo da atividade agrícola, ao longo do ano). A rua de minha avó ainda é uma rua muito estreita, com um calçamento originado do século XIX (tombado, junto com o calçamento do centro em frente; olhem o detalhe, as pedras são irregulares e não retangulares como nos paralelepípedos). Ainda hoje, só é possível passar um carro de cada vez (mas raramente um carro passava em frente à casa de minha avó). É a rua que dá acesso ao cemitério municipal. Ainda hoje não há velório público municipal na cidade e os velórios ainda ocorrem dentro de casa (portanto, minha avó Francisquinha e minha tia Ruth devem ter sido veladas dentro de casa mesmo). Aluízio é quem está subindo a calçada do lado oposto da rua (ele foi muito gentil comigo, porque foi ele que me levou para todo lugar, no carro dele, tanto para o Morro do Cruzeiro, quanto para conhecer, por dentro, a reforma do colégio das Dorotéias; como meu tio Joãozinho fazia comigo, se não fosse ele, eu nunca teria estado no interior da Usina Tanques, o "feudo" do todo-poderoso Agnaldo Velloso Borges - vide algumas das fotos de minha adolescência sobre a usina em http://velhascaminhadas.nafoto.net).
Rua Padre Luís. Julho de 2006. Foto: Alberto Nasiasene
Alagoa Grande PB. Este era o cenário que costuma observar quando
fui estudante de ciências sociais na UFPB. Foto feita em 1979.
Esta é a rua de minha avó materna. O nome da rua é
Padre Luís, primo de minha avó. Foto: Alberto Nasiasene
As três fotos aqui embaixo representam uma cena muito sagrada afetivamente para mim, a cena dos burricos e dos meninos subindo a ladeira da minha avó. Não sei por que, mas sinto uma emoção e um exotismo que mexem muito com minhas entranhas, somente por ver estes burricos, também chamados de jegues (que existem em abundância em Alagoa Grande, tantos são que, dizem, ninguém quer ganhá-los sequer de presente; portanto, é o transporte de cargas mais popular ainda empregado como se vê na foto). Não sei a razão, mas ainda acho estes animais de uma estética belíssima (mais do que as mulas que também existem em favelas de Campinas). A impressão que eles me causam é a de que têm mais saúde e qualidade de vida do que os animais de Campinas que vejo nas ruas desta grande metrópole paulista (talvez seja por isto mesmo que esta cena me emociona tão profundamente).
Alagoa Grande PB. Julho de 2006. Fotos: Alberto Nasiasene
De algum modo misterioso, como tenho dito frequentemente, sinto que voltei a morar em Alagoa Grande, quando para Jaguariúna me mudei em 7 de janeiro de 1995. Há vários detalhes urbano-existenciais que me fazem sentir que moro, magicamente, em Alagoa Grande: a casa que comprei, que estava em ruínas, caindo aos pedaços, que fui reformando, aos poucos, tanto externamente, quanto dentro de mim mesmo; o fato de morar perto da matriz centenária de Jaguariúna (a matriz de Alagoa Grande é quase 50 anos mais antiga, mas também é do século XIX), o que me faz lembrar a casa de minha avó, que ficava na rua que passava em frente à matriz de Alagoa Grande (e isto é afetivamente importante para meu espírito, porque, tanto lá, como aqui, escuto, a cada meia hora, o sino da igreja tocando as horas e o auto-falante da paróquia anunciando as notas de falecimento); além disso, Jaguariúna, no horizonte (como na foto que há aqui em baixo), também possui estas colinas verdejantes sagradas para meu espírito.
Jaguariúna SP. 2008. A primeira foto acima mostra as colinas que vejo (e me fazem lembrar de Alagoa Grande), as duas outras, mostram a primeira Estação da Mogiana, inaugurada pelo imperador D. Pedro II, em 1875. As duas últimas são da segunda Estação, inaugurada na década de 1940. que hoje é o Centro Cultural. Fotos: Alberto Nasiasene
Portanto, como vocês podem ver, este contato íntimo e mágico com minhas raízes sócio-culturais e geográficas me cura de dores profundas, tornando-me um ser humano melhor. Mas nada disto adiantaria, se não tivesse obtido, da parte de Deus, a graça de poder conhecer vocês, que são o elemento existencial mais forte, porque humanamente concreto (e não apenas uma paisagem geográfica e urbana), que me liga ao meu passado militante de quando fui aquele estudante de ciências sociais solitário no interior da Paraíba (em busca existencial e poética de mim mesmo, exatamente porque tinha sido arrancado, sem que me perguntassem sequer se eu queria, deste solo sagrado de meus ancestrais, para ser enxertado no solo do Planalto Central onde vivi o resto de minha infância e toda minha adolescência e de onde saí ao encontro da Revolução, que quer dizer também uma re-vir-a-volta de mim mesmo; processo que ainda estou realizando aqui, como professor de história, militando por um mundo melhor, junto com vocês).
Jaguariúna SP. 2008. Museu Ferroviário, no Centro Cultural (onde estava a segunda Estação da Mogiana em Jaguriúna). Foto: Alberto Nasiasene e Maria Ignez Feula Nasiasene
Naquele batente da casa de minha avó, observando esta paisagem urbano-social, eu meditava muito, com critérios conceituais das ciências sociais (tanto a sociologia, quanto a antropologia) na frase do Tolstoi, a de que somente atingimos a universalidade, quando sabemos bem descrever a aldeia onde nascemos e ainda é isto o que venho continuamente fazendo desde então.
Jaguariúna SP. 2008. Cavalaria Antoniana, evento que ocorre em junho todos os anos. Fotos: Alberto Nasiasene
Alberto Nasiasene
27 de dezembro de 2009
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