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A indigência intelectual


Muitas vezes ouvi, pasmem, pela boca de professores universitários de história, que não se podia COMPARAR (um dogma). Ou seja, não se podia comparar uma coisa com outra, porque uma coisa era uma coisa, outra coisa era outra coisa (e as comparações são impossíveis). Ora, isto é um nominalismo (tendência atribuída a uma interpretação equivocada do aristotelismo) ridículo em pleno século XXI. Por nominalismo estamos nos referindo ao fato, inspirado nas disputas medievais, de que as coisas, com seus nomes, eram coisas com nomes e nada havia nelas que pudesse ultrapassar a mera condição de coisa em si. Ou seja, um empirismo tacanho que não consegue abstrair nada, nem sequer a própria denominação das coisas. Já que um edifício feito com quartos para dormir, sala, cozinha e banheiro, normalmente é chamado de casa (independentemente de qual seja sua arquitetura concreta), isto quer dizer que é possível fazer sim uma abstração mais conceitual que crie um significado menos empírico para o termo, permitindo, portanto, que este termo seja empregado para designar vários tipos de construções que podem ser enquadrados no conceito casa (que, na Idade Média era a tendência oposta, os realistas; mas não como entendemos este termo hoje, porque eram os que defendiam a posição de Platão de que a verdadeira realidade estava no mundo das ideias pré existentes) que se expressa por uma simples palavra comum usada em várias situações para pelo menos indicar o mesmo conceito concretizado (os arquétipos que estavam presentes no mundo das ideias).

Parece jogo de palavras, mas é sim um jogo de palavras, porque a linguagem verbal é feita de jogos de palavras (e a própria linguagem passou a ser estudada pelos filósofos na Grécia antiga, a começar pela oratória e, depois, pela lógica que culminará em Aristóteles). E aqui entramos em um outro fenômeno, a linguagem oral ou escrita como veículo da ciência. Ora, é preciso esclarecer, desde o começo, que a linguagem oral ou escrita não é a realidade, mas apenas uma representação plausível da realidade. É até possível conceber a realidade inteiramente deslocada de sua base concreta quando ela deixa de ser uma representação mais ou menos realista da realidade e passa a ter vida própria numa realidade paralela (isto acontece na poesia, na ficção literária, nos mitos, nos sofismas ou nos devaneios de loucos).

Por isto mesmo é que quem escreve a historiografia, a escrita sobre a história, baseada em uma ciência histórica que creio ser as várias ciências sociais (porque, para mim, não há uma única ciência da história, em si mesma, mas algumas vertentes dela tais como a economia, a sociologia, a antropologia e algumas ciências auxiliares tais como a linguística, a filosofia, a geografia etc.), deve distinguir claramente se se está praticando ou não uma ciência. No mundo dos modismos de prefixos "pós" a granel, é necessário que se assuma que a disciplina que se está praticando é ou não uma ciência, ou mero gênero literário. Isto é importantíssimo, para que se evitem equívocos desde o começo.

Se por acaso, a definição de história do escritor historiográfico for a "pós" moderna e se auto definir, como ouvi da boca de uma colega de profissão, como um relato de "fatos verossímeis que não são a verdade" final sobre o que quer que seja. Então estamos diante de um gênero literário de ficção realista. Vários produtos com o rótulo de história podem ser vendidos em livrarias sob esta definição. Por exemplo, as memórias pessoais ou coletivas de um determinado tempo (mas nunca saberemos realmente se estamos diante de uma mera ficção verossímil ou de uma história mesmo; mas para quem se contenta apenas com literatura, tudo bem). As interpretações eruditas sobre acontecimentos hipotéticos (já que esta tendência tende a duvidar da existência de fatos em si mesmos, mesmo que fatos percebidos em vários ângulos por diferentes sujeitos agentes) podem ser mero passatempo para quem gosta de uma literatura mais sofisticada, mas também não esclarecem nada (mas talvez o objetivo seja somente este mesmo, o de entreter com uma literatura meramente sofisticada que não tem compromisso com verdade alguma).

Neste caso, a história deveria ser deslocada para mais um departamento de Letras qualquer de tal ou qual universidade da moda (nem por isto ela se tornaria mais relevante do que a literatura main stream mais consolidada) e se deslocar de seus nichos acadêmicos, delimitando claramente a sua condição não científica e deixando somente as chamadas ciências sociais com esta tarefa (mesmo que os historiadores acadêmicos, do departamento de letras, até consigam esconder seu desdém face aos seus colegas dos departamentos de economia, sociologia e antropologia, fingindo que eles praticam algum tipo de ciência), desacreditadas diante dos novos historiógrafos cheios de empáfia e snobismo acadêmico (mas, infelizmente, é muito frequente que os historiadores não tenham lá seu senso estético literário mais criativo e fica muito difícil competir com a qualidade dos textos dos romancistas propriamente ditos).

Voltemos agora ao nominalismo exacerbado dos cultores das palavras descontextualizadas de uma realidade maior. Aqueles que têm dificuldades de aceitar que casa não é casa e que pedra não é pedra; porque não se pode comparar casa com casa e pedra com pedra (a falta de embasamento teórico deles é tão ridícula que quando a expressamos até parece que estamos diante de um discurso de um ser que não consegue sequer pensar). Se formos levar a ferro e fogo tais conceituações, começaremos a ter problemas em construir frases que façam sentido, porque sujeitos, verbos e predicados não serão mais sujeitos, verbos e predicados. Por causa da teoria do "não se pode comparar coisas diferentes" como, por exemplo, "Ivo viu a uva" com "João ama Maria". Diriam eles, coerentes com a lógica do não se pode comparar: "onde já se viu, Ivo não é João e uva não é Maria"... Além disso, diriam, "quem pode dizer que "viu" seja uma mesma realidade com "ama"... Somente mentes despreparadas academicamente no último modismo de pós graduação poderiam dizer que não há semelhanças entre João e Ivo (nomes inteiramente diferentes e, pior ainda, pessoas diferentes). É ridículo. João e Ivo são aqui sujeitos da frase, além disso, no conteúdo, são seres humanos e também homens. Portanto, é sim possível comparar.

Ora, sendo assim, se não for possível comparar, não só a ciência não seria possível, mas até mesmo a comunicação entre seres humanos, quaisquer que sejam (mas, como ninguém é de ferro, os centros espíritas kardecistas estariam cheios de gente pós moderna e pós verdadeira tentando não só se comunicar com os espíritos, mas com outros seres encarnados...). Se o pensamento mecanicista, nominalista e estritamente empirista não pode estabelecer relações nenhuma entre si, então o conhecimento, neste plano da vida, não é possível (e olhem que este é um postulado sério veiculado por algumas correntes filosóficas e não é de agora não, vem de séculos estas divergências); só o conhecimento revelado nos centro espíritas abalizados da moda é que tornariam algum tipo de comunicação e conhecimento.

Esta longa digressão me ocorreu ao me lembrar de certas aulas de história, em sala de aula, em que os professores, pós modernos, resistiam a fazer simples comparações (mas por despreparo teórico deles, não porque as comparações não fossem possíveis). No começo pensava que era por causa das opções metodológicas que eles fizeram, mas depois fui percebendo que não se tratava de opção epistemológica alguma. O que acontecia é que eles não tinham qualquer concepção gnosiológica ou epistemológica e ficavam muito inseguros em fazer simples comparações (porque não dominavam minimamente noções de sociologia, de antropologia, de economia, de ciência política etc.). Como ficavam inseguros, por desconhecimento, diziam que não se podia fazer comparações. Total indigência não só epistemológica, mas de domínio sólido de conhecimentos e intelectual mesmo...

Este é um dos frutos do patrimonialismo luso tupiniquim que toma grande parte das instituições universitárias brasileiras. O importante não é saber, é ter um diploma de doutor que dê oportunidade de exercer tal ou qual cadeira ou posição acadêmica dentro das estruturas universitárias, institutos de pesquisa ou departamentos (e, para os alunos que são forçados a sentar em tais carteiras, é um verdadeiro suplício ter que aguentar um semestre inteiro fingindo que se está aprendendo alguma coisa com tais epistemólogos pós modernos que acreditam que não fazem ciência, mas um determinado tipo de discurso literário, medíocre e sem criatividade alguma, bem longe do talento de um Mário de Andrade, por exemplo).

Por isto é que penso que precisamos sim de uma Semana de 1922 nas universidades brasileiras (porque falam muito em pós moderno, mas porque gostam de imitar a Europa, sendo que aqui nem chegamos ainda na Semana Moderna de 1922, com os métodos de apadrinhamento, com cartas de recomendação, como meio de seleção de candidatos ao mestrado e ao doutorado em história da arte, como é na Unicamp, por exemplo).

Ora se a ciência tem que se reduzir a um mero empirismo tosco e imediatista, de nada vale mais a capacidade analítica, nem o uso da razão. Basta o pensamento fotográfico que não consegue mais estabelecer abstrações conceituais, nem que 2 + 2 = 4 (porque isto seria uma abstração completamente fora de propósito, já que não se pode comparar dois números parecidos, mas não iguais, transformando em um outro completamente diferente). Sendo assim, estamos diante de mais um dos efeitos da influência escolástica jesuítica que tenho criticado aqui: a universidade se contenta consigo mesma sem pensar-se criticamente a si mesma e, por isto mesmo, tende a cair em um dogmatismo estéril e irrelevante. Falta a ela aquilo que é essencial na ciência e nas artes: inventividade, ousadia de afrontar dogmatismos e verdades estabelecidas que não se sabem verdades estabelecidas (nenhuma verdade é permanente diante de um universo em mutação constante) .


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 3 de janeiro de 2017


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