Ser e ter são realidades diferentes que não se confundem necessariamente
As raízes jesuíticas e escolásticas coloniais das estruturas sociais mais fundamentais da sociedade brasileira, que estruturam ainda hoje a pirâmide social altamente afinada, no topo, em cima de uma base bem robusta, herança da sociedade escravista colonial, são responsáveis por certas distorções que quero apontar aqui nesta postagem. Entretanto, ao fazer esta dura análise crítica do sistema escolástico precocemente esclerosado implantado no Brasil desde o início da colonização, quero ressaltar que o problemático que questiono não é o avanço intelectual que Aristóteles e a filosofia grega, por exemplo, representam para a história ocidental, mas o escolasticismo decadente de início da Idade Moderna, no final do século XV, é preciso lembrar. Ou seja, não é a escolástica em si mesma que deve ser questionada, porque, no início, a escolástica, nos séculos XII e XIII foi um avanço intelectual numa Europa que não conseguia competir com os centros islâmicos da época (centros islâmicos que eram mais precocemente influenciados pelo pensamento grego clássico e que foram responsáveis pela transmissão do próprio pensamento grego clássico para a Europa Ocidental, via Península Ibérica, onde havia contatos entre as civilizações árabes e cristãs, em meio à guerra de reconquista promovida pelos reinos cristãos da Península Ibéria medieval).
O que se questiona aqui é a falta de criatividade, a falta de ousadia, o sistema burocratizante de ensino e pesquisa que engessa o pensamento crítico em uma esfera estéril que impede que a comunidade acadêmica seja ponta de lança no pensamento mais inovador, tanto na área das humanidades e artes, quanto na área das ciências e engenharias. Entretanto, não somos os únicos a apontar esta herança negativa do tradicionalismo patrimonialista brasileiro. Isto vem desde, pelo menos, a gestão do Marquês de Pombal, que era inimigo não tanto dos jesuítas, enquanto ordem, mas dos aspectos mais escolásticos e esclerosados do pensamento e sistema de ensino que implantaram em Portugal e nas colônias. Sistema escolastizante, em plena era das invenções científicas modernizantes da era pós Galileu, que impedia o pensamento inventivo em áreas estratégicas para o desenvolvimento da própria economia portuguesa, comparando-a à economia da Inglaterra, da Holanda e da França (que vivia sua fase de filosofia conhecida como Iluminismo pré Revolução Francesa).
Portanto, não estamos sozinhos nesta crítica e ela nem é original, porque é bem antiga em nossa história luso brasileira. Pessoalmente, além disso, não temos nenhuma animosidade com os jesuítas e pensamos até que há, por um lado, uma tendência equivocada de reificação maniqueísta das críticas do Marquês de Pombal aos jesuítas que não percebe que é necessário discernir os elementos essenciais desta crítica, distinguindo-os claramente de outros elementos presentes na ordem dos jesuítas que não eram prejudiciais ao ensino (afinal, eles eram grandes responsáveis pela implantação e cuidado do sistema educacional no Brasil e sua expulsão e extinção posterior não fez nosso sistema de ensino avançar, mas recuar). Não se trata da luta entre o bem, as proposições do Marquês de Pombal, contra o mal, a ordem jesuítica, portanto. Por outro lado, não temos uma visão que possa ser uma base tecnocrática da exaltação do poder absolutista da razão iluminista como base de desenvolvimento e progresso (aliás, também tecemos duras críticas a esta tendência que, em terras brasileiras, irá desembocar, posteriormente, na postura positivista também altamente danosa para as ciências e a educação no Brasil em geral).
Uma das grandes distorções facilmente perceptíveis na formação acadêmica é a de confundir o ser com o ter. Há muito que se fala nas diferenças entre os SERES HUMANOS e os TERES HUMANOS. Duas maneiras diferentes de estar e ser no mundo. Não podemos nem tecer considerações sobre a antiguidade destas duas maneiras de ser e estar no mundo, porque nosso foco aqui é apenas apontar que isto, na vida acadêmica, traduz-se em quem encara a formação acadêmica sem distinguir claramente entre o ser (um intelectual criativo e ao nível de contribuir com o avanço, nem que seja em pequenos elementos apenas, de seu campo de conhecimento, que é o teor intelectual da semática que está por detrás da titulação de doutor, por exemplo) e o ter (um diploma de doutor). Só para quem não está acostumado a discernir claramente diferenças intelecto existenciais é que confunde facilmente estas duas condições.
Entretanto, é preciso ver que obter ou ter uma titulação de doutorado, por exemplo, no Brasil, diante das estruturas de pós graduação que foram geradas, especialmente nas últimas décadas do século XX e início do século XXI, não significa necessariamente estar em consonância com a semântica originária do conceito de doutorado desde que foi inventado nas universidades medievais europeias. Pior ainda, a condição de ser um mestre, não significa necessariamente ter um título de mestrado. Ser e ter, de acordo, por exemplo, com a imemorial tradição oriental de submissão dos discípulos aos mestres, são coisas bem diferentes.
Mas, por fazer estas duras constatações críticas quanto ao escolasticismo que não desapareceu no Brasil, apesar de Pombal, desde o século XVIII, ao contrário, proliferou como cogumelos depois da chuva, especialmente a partir da década final da última ditadura militar (em suas tendências tecnocráticas e, ao mesmo tempo, patrimonialistas não muito diferentes das antigas elites coloniais que viam a titulação formal como mais uma forma de ostentar status social do que de exercer as faculdades do intelecto de forma criativa e transformadora); não estou a desmerecer, dentro das academias universitárias públicas, todos aqueles intelectuais inovadores, generosos, pouco afeitos a burocratismos burros e estéreis que, por acaso, conseguiram manter em um mesmo fenômeno, dentro de si mesmos, o ter o o ser (ou seja têm diploma de doutorado, mas são realmente doutores inovadores e criativos, não temendo afrontar a escolástica estéril, nem os intelectuais meramente patrimonialistas que se contentam com o mero ter, por mediocridade de pensamento).
II
Aqui embaixo irei inserir um diálogo intelecto-existencial com uma nova geração de intelectuais que está nascendo e as velhas gerações nem percebem. Não porque seja um caso de desprezo consciente, mas porque não os percebem, cegos como são, em sua percepção social e histórica (ficaram presos a um mundo que já se foi e não perceberam ainda). Muitos, da oligarquia intelectual do século passado, não só não os perceberam ainda, mas são cruéis com eles, porque não lhes dão espaços generosos que possam romper velhos e superados monopólios e outros porque mantém os olhos, a mente e a atenção presos aos que nasceram antes deles e se esquecem de ver que uma multidão de jovens intelectuais, cientistas e artistas, de diferentes matizes, nasceu depois de gente como eu, que nasci em 1960.
Pior ainda é pensar que só os velhos nascidos antes de 1960 é que devem continuar monopolizando todos os espaços intelectuais de um país como o Brasil, com mais de duzentos milhões de habitantes e, pelo menos até pouco tempo atrás, a sétima ou sexta economia do planeta. Pensam e agem como se fôssemos ainda um país como o dos anos 1960 (esquecendo-se que somos muito mais do que o dobro de então, em termos populacionais e que nossa gente não vive mais na zona rural como vivia, predominantemente, quando eu nasci, em 1960; nossa gente é um povo predominantemente urbano e muito mais escolarizado do que era na década de 1960).
A mentalidade patrimonialista de parte considerável de nossa intelectualidade ainda é um forte resquício estrutural desta velha sociedade oligárquica que gerou um regime como o da ditadura militar de 1964. Eles não queriam conviver em uma sociedade mais democrática que estava em gestação desde o fim do Estado Novo (1937-1945). Chamavam aquele período democratizante de "período populista", pejorativamente. Ou seja, costumavam desprezar o discernimento cidadão das massas urbanas nascentes a partir dos velhos preconceitos que remontam aos tempos coloniais, em uma sociedade escravista em que não só se acreditava, mas estruturava-se todas as instituições com base no escravismo não só excludente, mas truculento no trato cotidiano com a massa populacional de trabalhadores que sequer tinham o direito mínimo da liberdade (muito menos o de escolher livremente os governantes, por isto é que, quando esta massa começou a ter este direito, especialmente depois de 1945, diziam que o povo não sabia votar; porque é claro, não votava neles, os supostos liberais, mas conservadores; bem típico das contradições alienantes colonizadas e dependentes de uma elite voltada para fora de si mesma, subserviente aos interesses metropolitanos).
Só para recordar, o povo trabalhador brasileiro, até o ano de 1888, era considerado, de fato e de direito, mercadoria, porque podia ser comprado e vendido, além de herdado. Esta mentalidade, mesmo que inconscientemente, ainda está presente na suposta elite que tomou o poder novamente, por um golpe de Estado, bem típico da América Latina (por mais que eles não se considerem parte da América Latina). Bem tipicamente, como na história latino-americana como um todo, esta elite está impregnada, aparentemente, de ideias liberais (em sua nova versão, neoliberal, já ultrapassada, como sempre, porque é sempre uma elite desatualizada face ao que acontece no pensamento dominante nas matrizes das Metrópoles). Mas este fenômeno, caracterizado por um crítico de literatura, como o de "ideias fora de lugar," típico do colonialismo alienante, é bem típico não só do Brasil, mas da América Latina como um todo.
Há coisa mais contraditória do que senhores escravistas, com muitos e muitos escravos, mas membros do Partido Liberal na Monarquia brasileira (que não só era contra a abolição da escravidão, mas que tudo fizeram para manter a monarquia sob as bases de uma pequena oligarquia agrária e escravista, embora fosse capaz de citar tais ou quais ideias liberais deste ou daquele filósofo ou economista europeu)? Por isto mesmo é que, no fundo, nas arcaicas estruturas sócio econômicas ainda presentes, embora em frangalhos, não é difícil entender a sanha com a qual atacaram não só um governo legítimo, consagrado nas urnas em 2014, mais uma vez, mas o ataque sistemático sobre as próprias estruturas democráticas e a constituição de 1988 ao darem mais um golpe de Estado como fizeram em 2016.
Por trás dos discursos aparentemente neo liberais de um ministro da saúde do governo golpista, por exemplo, é perfeitamente possível ver as semelhanças estruturais da antiga mentalidade escravista de uma classe dominante brasileira forjada no escravismo colonial. Tanto na concepção de que o direito à saúde popular é apenas uma mercadoria como outra qualquer (não é um direito social, assegurado pelo Estado e pela Constituição de 1988, mas direito econômico de possuidores do capital da iniciativa privada), no mercado de saúde; mas na concepção de que para a imensa massa popular, não há direitos iguais a uma pequena oligarquia que se considera a si mesma como "uma elite" detentora de privilégios que não podem ser tocados (mas bem distante desta elite ter algo de parecido com uma nobreza hereditária em um país que não teve nobreza autêntica propriamente dita, mesmo no período monárquico, porque os títulos nobiliárquicos eram vendidos e não se tornavam hereditários, muito menos como antes da Revolução Francesa; o máximo que podem ser, aos olhos da verdadeira nobreza europeia, era uma pequena camada de novos ricos que enriqueceram sobre o lombo do trabalho escravo e semi escravo). Bem coerentemente com nosso longo passado colonial (e não por acaso, as massas que estão por baixo dos direitos, são de coloração mais carregada de melanina na pele).
Estas são as mesmas forças conservadoras (mas conservar o quê e para quem?) que estão por trás das passeatas do verde e amarelo que pregaram e desejaram o golpe (com agregados como na época da Casa Grande, os pretos e pardos dos serviços domésticos e os interesseiros nos favores que vinham da Casa Grande, ou, como dizemos hoje, os puxa sacos de sempre, sem respeito próprio). Não por acaso querem a destruição da própria legislação trabalhista gerada na era Vargas, a CLT. Num mundo reorganizado pela ideologia neo liberal, desde o final dos anos 1970, primeiramente na Inglaterra, depois nos EUA, especialmente depois da queda da ex URSS, onde a escravidão voltou a ser um dos efeitos colaterais das políticas de des regulamentação sucessivas, não é de se estranhar que queiram mesmo voltar às velhas práticas escravistas ou semi escravistas mais "modernas" (especialmente em um país como o Brasil, com larga e viva herança escravista que ainda predomina sobre os anos em que a abolição da escravidão se deu)...
Entretanto, nem tudo são flores para estas estruturas antigas neste país, porque o neoliberalismo é algo superado nas próprias diversas Metrópoles e está em ruínas diante de um efeito colateral inesperado: a China que cresce sem parar, mesmo depois do fim da ex URSS (paradoxalmente não podendo mais ser enquadrada nem nos velhos conceitos de comunismo nem de capitalismo, reinantes na Guerra Fria). A auto destruição do esforço industrializante nos próprios países centrais do capitalismo, como Inglaterra e EUA, fez com que a economia destes países se assemelhasse, paradoxalmente, a momentos anteriores historicamente vivenciados por elas, chamados de mercantilismo, mesmo que com aparências mais financeiras e menos comercialistas dos séculos posteriores ao XV e anteriores aos meados do século XVIII [Mas, no fundo, a única coisa que mudou tanto assim foi que agora não existe mais o padrão ouro e o padrão de valor virou algo simplesmente abstrato, lastreado nas forças militares que dão sustentação ao equilíbrio de poder e é aqui mesmo que este lastro que substituiu o ouro e a prata está se dissolvendo, não por causa da lei da oferta e da procura, mas porque o processo desindustrializante não está mais conseguindo sustentar a guerra prolongada que não acaba nunca e o povo originário, dentro das fronteiras das matrizes dos poderes financeiros globalizantes, está, cada vez mais, empobrecendo com a decadência das indústrias antes poderosas e que usavam mão de obra inglesa e norte americana]. Ou seja, a Europa e o norte Atlântico voltaram a ser sugados pela forte economia do Oriente, especialmente a da China, como nos séculos XV (que viu a corrida mercantilista dos países do ocidente da Europa para encontrar vias comercias mais lucrativas com o mercado do oriente). Só que agora é a China a nova oficina do mundo, como diziam da Inglaterra, no século XIX e dos EUA no século XX (o paradoxo equivocado do neoliberalismo globalizante está é aqui mesmo: ao acreditarem na quimera do poder indestrutível do dólar ou do euro, o que estimularam foi a industrialização avassaladora daqueles que iriam tomar o lugar deles no poderio econômico. Pior para eles, enquanto permanecerem desindustrializados, mas melhor para os países da Ásia, que se tornam a maior economia planetária sugadora de matérias primas, manufaturados e commodities diversas, mas também grande exportadora de produtos de alto valor agregado vendidos a preços imbatíveis (e com forças militares em linha para enfrentar o lastro econômico da Otan, por exemplo). Ora, isto já se dava, séculos atrás, desde antes do Império Romano, não vem de agora não. Isto quer dizer, por outro lado, que a era colonial está se dissolvendo porque metade do mundo já trata de igual para igual a outra metade que se julgava superior (inclusive porque absorveu, ao longo destes séculos, muitos dos mistérios tecnológicos dos ocidentais, reinterpretando-os dentro de suas longas tradições de invenções; coisa que o ocidente, muito preconceituosa e racistamente não fez com as antigas tecnologias chinesas, por exemplo). São duas grandes civilizações que, finalmente, se encontraram, mas de um modo mais pacífico, mesmo que turbulento, porque estão desestruturando velhas estruturas de intercâmbio econômico mundial.
O mundo ocidental da Modernidade (estou usando aqui este termo apenas como o marco criado pela historiografia francesa para a divisão tradicional da história universal: ou seja, o termo que é utilizado para definir o período de tempo que vai da tomada de Constantinopla, em 1453, até a Revolução Francesa em 1789) não consegue mais se sustentar a si mesmo com as velhas ideias conservadoras pré Revolução Francesa (despertadas por uma Tory como Margaret Thatcher - conservadora anti trabalhista, anti socialista e anti comunista defensora da suposta liberdade total de comércio; mas isto era o que a rainha Elizabeth I defendia, mas sem chamar o nome das coisas como pirataria, porque preferia dizer que seus piratas protegidos eram "corsários") sem incluir o Oriente também nos avanços alcançados tanto pela Revolução Francesa quanto por um dos possíveis desdobramentos dela, a Revolução Russa de 1917 que irá completar cem anos neste ano que estamos prestes a entrar. E não consegue mais se sustentar porque está ficando cada vez mais impossível sustentar uma guerra sem fim contra o mundo oriental, por exemplo, das sociedades islâmicas, quando o próprio território nacional norte americano se desindustrializou profundamente graças às políticas neoliberais de um suposto mundo globalizado. Além disso, não dá mais para subjugar economicamente uma China, como uma espécie de nova colônia. A China nunca permitiu isto, quando era mais fraca e não há a menor chance de permitir isto agora, quando já é a nova oficina do mundo, portanto, creio que o ocidente está condenado a desenvolver relações mais pacíficas com o oriente e mais equilibrada nas trocas econômicas (e nada impede que o Ocidente e o Oriente se tornem como o Yin, e o Yan, faces complementares de uma mesma esfera global planetária).
Ao fim e ao cabo, as contradições despertadas pela ideologia meramente financeira do neo liberalismo globalizado se voltam contra aqueles que a criaram (primeiro nos EUA, em 2008, depois atingindo a Europa). Portanto, mesmo em nosso território sul atlântico, vemos que as oligarquias financeiras pós industriais se veem em uma realidade que está desabando por obra e graça de si mesmas e estão completamente desnorteadas com os novos personagens e as novas realidades pós Guerra Fria. Por isto mesmo é que o golpe de 2016, no Brasil, e a derrota de Hillary Clinton nos EUA, representam também um marco histórico parecido com o da Queda do Muro de Berlim em 1989 (duzentos anos depois da Revolução Francesa). Uma nova reconfiguração do mundo surgirá deste marco. Isto também quer dizer que 2016 não é 1964 (é até cansativo ter que repetir continuamente isto...).
O diálogo inter geracional:
[...] Grande parte de intelectuais que eram de esquerda nos anos 1960 [deixaram de o ser no final do século XX, especialmente depois da Queda do Muro de Berlim]. Ferreira Gullar, por exemplo, que morreu agora, com 86 anos de idade [foi um destes intelectuais que, tendo um passado intimamente relacionado com o antigo PCB, renegou sua própria história de uma forma abjeta para quem ainda continua lutando por uma sociedade mais democratizante, mas muito semelhante ao mesmo padrão político de nossas elites pós coloniais que deixaram de ser integrantes dos movimentos radicais liberais, do pós 1822, para aderirem, sem nenhum problema de consciência, ao conservadorismo que está na base da formação do antigo partido Conservador do II Império]. Não leio nenhuma poesia dele mais, porque este poeta virou um ser asqueroso...
Mas há também aqueles velhos conhecidos da atual direita, tais como FHC (que, quando eu era estudante de ciências sociais na UFPB, no início dos anos 1980, era considerado de esquerda também), Serra, que foi da Ação Popular AP [movimento estudantil de esquerda católica nos anos 1960] e presidente da UNE na época do golpe de 1964 (ele esteve ao lado do Jango no comício da Central, quinze dias antes do golpe), o senador, por São Paulo, do PSDB, Aloísio Nunes (não só foi de esquerda, mas participou da luta armada ao lado de Marighela, por exemplo), que hoje está na linha de frente da direita golpista etc.
É por isto mesmo que não tenho fé cega em ninguém que hoje se diz de esquerda. Não se sabe se estas pessoas continuarão, coerentemente, a manter posicionamentos de hoje no futuro [podem trocar de lado facilmente; mesmo os que compõem partidos de extrema esquerda, como o PSOL; o caso de Heloísa Helena é só um exemplo a mais...].
Na história do Brasil isto é comum, desde antes da independência em 1822.
Temos novos, por outro lado, "heróis" hoje ao nosso lado e você é minha "heroína" [para mim, o conceito de heroísmo, como verão abaixo, é mais prosaico e mais afeito ao povo comum, anônimo, que pratica cotidianos atos de heroísmos apenas para estar vivo e trabalhando, Brasil afora].
Você foi quem me apresentou o Criolo e hoje ele é um de meus heróis. Também conheci o René, portoriquenho [do grupo Calle 13]...
Temos que voltar nossos olhos para os jovens e não ficar olhando para trás, para velhos que mudaram de lado. Nem todos mudaram de lado. Chico Buarque não mudou de lado [as nossas atuais lutas sociais e políticas não são as mesmas do século XX, ipsis litteris, doutrinariamente, como a extrema esquerda marxista-leninista advoga equivocadamente, mas os princípios políticos norteadoras da luta continuam sim os mesmos, reconfigurados e recontextualizados aos novos contextos sociais internos e externos]...
Desde o final de 2014 e início de 2015 que comecei a me voltar mais decididamente para os jovens e para os artistas que você me apresentou. Foi bom para mim e ainda bem que tenho uma filha que é jovem e atuante (e me mostra uma vida de gente jovem bem interessante...).
Aprendi, ao longo da vida, que heroísmo é o do povo comum, cotidianamente lutando pelas batalhas do dia a dia. Por isto que é importante conhecer a cultura popular e os artistas populares de hoje. Nos anos 1990 as coisas eram muito piores, porque não havia estes movimentos sociais que há hoje e tínhamos que aguentar os ex intelectuais de esquerda que renegaram seu passado, usando como desculpa a Queda do Muro de Berlim e a falácia de que havia uma "nova esquerda" que aceitava os novos paradigmas do neoliberalismo (o Jabor é só um caso extremo, mas bem típico deste tipo asqueroso de intelectual; assim como o Ferreira Gullar, Zelito Viana, Chico Anísio etc.). Nem todos se renderam ao neoliberalismo, como o Chico Buarque, por exemplo. Antônio Nóbrega é um grande artista que faz uma arte de diálogo entre o erudito e o popular de modo profundo, como propunha Ariano Suassuna (que nunca se rendeu ao neo liberalismo também).
Penso que valei a pena estar vivo, porque estou construindo minha obra e porque tenho uma filha que é minha parceira e meu orgulho...
Os jovens universitários de hoje, especialmente os das federais, são meus heróis...
Há um conceito muito importante, para analisar a obra de arte, que foi Marx um dos primeiros a inventar: vitória do realismo sobre a consciência do autor (ele dizia isto para explicar porque amava a obra de Balzac, apesar das opiniões conservadoras dele). Por isto é que digo que a obra de um Geraldo Vandré, especialmente a que ele criou nos anos 1960, não vai deixar de ter seu valor só porque ele se tornou um canalha hoje em dia. Até mesmo a obra do Ferreira Gullar não deixa de ter seu valor por causa do mau caratismo posterior dele (mas é claro que só com o passar do tempo é que irei reler as poesias dele, porque no momento estou muito enojado do último Ferreira Gullar...).
Não fico deprimido com isto porque sei que o tempo dele já passou (depois dos oitenta anos um artista só cria algo de valor se não renega sua obra anterior e se dedica a dar os últimos retoques nela, que não foi o que o Gullar fez). Coerência de vida é essencial na construção de uma obra de arte (e de uma obra científica também). Os contextos mudam, a idade avança, mas o que fica como coerência é a trajetória, dentro de certos princípios que se mantém estáveis e coerentes em sua evolução (isto ocorre na maioria das obras de artistas e cientistas, de modo que não há porque desacreditarmos da arte e da ciência).
Somos nós quem mudamos, mas nem tanto assim, porque mantemos uma coerência básica com nossa própria personalidade e nossos projetos de vida que vão se constituindo à medida em que a vida vai avançando (você já fazia parte de meus projetos de vida mesmo antes de nascer, porque já desejava ter uma filha como você para que continuasse seguindo em frente depois que eu não estiver mais aqui nesta vida humana; afinal, este é o conceito que tenho de reprodução bio social e cultural). Haverá, sempre, muito de mim (e de sua mãe) em você e isto é um mistério que me faz ficar sempre encantado com a vida e, apesar de todos os dramas e tragédias pessoais, acreditar ainda que vale a pena ter vivido o que vivi até aqui e vai continuar valendo a pena continuar vivendo ao seu lado, como pai que sou até o fim de meus dias...
Ainda bem que tenho uma filha...
Sou um cidadão comum, simples e a vida toda me acostumei a andar de ônibus (não mata ninguém não...). Aliás, vivo a andar de ônibus ainda [é não só um prazer pessoal, mas uma grande oportunidade de pesquisa sociológica e antropológica, porque imersos na realidade cotidiana dos transportes públicos apreendemos muitos elementos das mentalidades históricas sempre em mutação; por isto mesmo é que aprendo muito na observação participante cotidiana de tomar ônibus para ir e voltar do trabalho ou para viajar para o Rio de Janeiro, por exemplo]. Nós é que vamos nos adaptando às condições, incluindo-se o transporte disponível.
Pior era no tempo de meus avós, tempo que não tinha sequer ônibus, porque ainda era frequente andarem a cavalo e de carruagem. Também não havia luz elétrica, o que dificultava ainda mais as coisas [imaginem as gerações de hoje, todos nascidos na era digital com seus aparelhos de celular mil]...
Não havia sequer telefone e o jeito era ficar na rua mesmo [se por acaso perdêssemos o último ônibus ou o último trem]...
Em 1985, quando cheguei a Campinas, perdi o último ônibus que saía do Mercadão, para o Restaurante da Titia, por dez minutos (o ônibus é que saiu adiantado e eu perdi, vendo-o partir só porque minha noiva, na época, que não era sua mãe, ficou me segurando depois da igreja, no domingo). Resultado, fiquei muito traumatizado, porque eu era um caipira de Brasília e não conhecia direito Campinas e não sabia sequer ir para a estrada da Rhodia à pé (não sabia por onde andar e que ruas deveria seguir). Isto me fez ir, instintivamente, para a rodoviária, porque era relativamente perto do Mercadão e porque eu sabia o caminho (pensei que seria mais seguro ficar por lá, com muita gente por perto, para passar a noite e esperar o primeiro horário do Restaurante da Titia).
Só me lembro que fiquei muito traumatizado, por causa do medo de ser assaltado etc. Até hoje, fico apavorado com a possibilidade de perder o último ônibus, por causa desta experiência quando eu tinha vinte e cinco anos.
Já fiquei uma vez na rodoviária do Rio, porque não havia mais passagem para Jaguariúna, você deve se lembrar. Mas, neste caso, fiquei lendo (já tinha experiência e sabia que estava em um lugar seguro).
Vida de mochileiro, como chamávamos aos viajantes sem frescura, nos anos 1980 e 1990 (coisa que ainda sou até hoje, por isto é que não gosto de levar [...] ela é mala sem alça e não tem o espírito de aventura e simplicidade que tenho de explorar o mundo).
Esperei você crescer porque sabia que, com você, poderia fazer excursões desbravadoras para gerar fotografias e filmes (coisa que estamos fazendo até antes de você ir para o Rio de Janeiro como estudante).
Só que já estou às portas dos sessenta anos e tenho que aproveitar enquanto há tempo, porque, quando chegar perto dos oitenta anos sei que já não será mais possível, para mim, fazer este tipo de aventura e não poderei mais fazer as viagens que faço agora com você.
Olhe, a USP disponibiliza artigos escritos por estudantes de antropologia que estão disponíveis por meio da internet, exatamente do jeito que fazemos no site Rota Socioambiental:
Aqui.
Aqui é possível ter acesso às revistas de publicações científicas on line de estudantes da USP (creio que a UFRRJ pode fazer algo parecido, porque estamos fazendo isto com o site Rota Socioambiental, até para demonstrar que não é o fim do mundo e viajar na maionese não...). Aliás, tudo o que fazemos tem esta intenção, mesmo os nossos documentários, que faço questão que sejam feitos do modo mais simples possível, porque o importante é o resultado (não a performance técnica chamativa que as pessoas imaginam).
Aqui.
As revistas estudantis de que falo (são muito boas e de altíssima qualidade técnica e científica, feita por estudantes, dependendo do caso, ou de pós graduação ou de graduação mesmo).
Quem duvida, que verifique o que estou afirmando aqui:
Aqui.
Os cadernos de campo, revista dos pós graduandos em antropologia social da USP está aqui (é muito bom para quem se interessa por pesquisa etnobotânica, por exemplo):
Aqui.
Vou mostrar um pouco mais detalhadamente o interior desta revista, na página de rosto geral da publicação:
Aqui.
Números publicados da revista de pós graduandos de antropologia social:
Aqui.
Já baixei todos os artigos que me interessam em toda esta coleção.
Hoje em dia é possível estudar estes assuntos, sem ter que se deslocar pessoalmente para as bibliotecas destas universidades, como era necessário fazer em minha época de estudante de ciências sociais no início dos anos 1980. Se eu tivesse estas oportunidades que temos hoje, teria feito muito mais do que fiz na época (mas é bom poder fazer o que não podia fazer na época somente agora, porque já tenho uma longa trajetória de vivências em pesquisas na área das ciências sociais que me ajuda muito em minha docência de história e também em minhas pesquisas atuais que faço até para fazer os documentários que fazemos juntos).
Olhe aqui um exemplo do que disse a respeito da capacidade de estudantes de graduação escreverem excelentes artigos científicos. Vou mandar o link da revista eletrônica de artigos científicos feitos por graduandos de história da USP:
Aqui.
Na verdade, em ciências sociais. História é um curso que só vim fazer quando tinha trinta e seis anos de idade. Depois de minha formação no bacharelado em ciências sociais [falo em formação, não em formatura, porque minha carreira estudantil foi interrompida da forma mais brutal possível, em 1983; ainda vivíamos sob a ditadura militar], fiz o bacharelado em teologia, com pós graduação em educação cristã, como você sabe e só depois é que voltei aos bancos escolares para fazer o curso de licenciatura em história, que me dá hoje a oportunidade formal de ser educador de história em uma rede pública de ensino (coisa que nunca pensei que seria formalmente, mesmo que amasse a história desde a adolescência, por causa da influência marxista, é claro).
Ou seja, como costumo dizer para você, tudo vai convergir, anos e décadas depois, de modo que mesmo não sabendo como será nossa vida profissional futura, tudo já colabora com ela, porque nenhuma aprendizagem e nenhuma vivência será desperdiçada, quando temos um desejo intenso de aprender e uma visão interdisciplinar da ciência e da arte.
Ao ler os artigos científicos dos estudantes de graduação desta última revista, lembro-me da seriedade e compromisso que tínhamos, na UFPB, então campus II, em Campina Grande, interior da Paraíba, onde obtive minha formação em ciências sociais (que vivo revisitando continuamente, porque costumo pensar que o que obtive ali foi uma abertura geral para a vida que deveria trilhar, ano a ano, com o passar do tempo, se quisesse mesmo ser um cientista social, coisa que sou realmente hoje). Ainda penso que é mais importante ser (um cientista social) do que ter (títulos de mestrado ou doutorado e pós doutorado, por exemplo); desde que o ser se revele no fazer, no caso, na obra que vamos criando, dentro ou fora das instituições universitárias.
Hoje em dia, felizmente, nosso país é uma sociedade mais complexa do que era no início dos anos 1980, quando entrei para a universidade, de modo que é mais fácil entender que para ser um pesquisador sério, em qualquer área, não é necessário fazer obrigatoriamente uma carreira acadêmica em alguma universidade de valor (não que eu despreze esta possibilidade). O que penso é que é possível também ser um pesquisador de qualidade em outras instituições, como museus, centros de pesquisas (e até certas empresas), poder público (por exemplo, as prefeituras, Brasil afora, sempre precisam de cargos que precisam ser ocupados necessariamente por agrônomos, em suas secretarias de agricultura).
Minha própria área de atuação profissional, que é a história, não se resume necessariamente à carreira docente, seja ela universitária ou no ensino básico. Podemos ser profissionais da história em museus e outras instituições de que o Rio de Janeiro é rico. Por isto penso que você está em um dos melhores lugares para perceber isto e por isto faço tanta questão de levar você a conhecer mais destes lugares, realizando nossos documentários exploratórios. No futuro você entenderá melhor a importância que tudo isto terá para sua formação intelectual enquanto pesquisadora da área agro ecológica, por exemplo.
Tenho trabalhado muito em parceria com museus (especialmente os de Campinas, é claro, porque Campinas é uma cidade que possui sete museus municipais e eu sou parceiro deles).
Sou até fundador e membro da Associação dos Amigos do Museu da Cidade de Campinas.
Também estou sempre fazendo parcerias com o MIS Campinas, como você sabe.
III
Caro amigo, os dias são difíceis, no país, como você sabe, mas prefiro me concentrar em meu trabalho (até como terapia ocupacional, para não cair em depressão; embora tome comprimidos anti depressivos faz anos seguidos e não possa deixar de tomá-lo por diversas razões, entre elas, porque tive traumatismo craniano quando era estudante de ciências sociais, lutando contra a ditadura militar). Ao invés de me abater, por causa do contexto deprimente em que vivemos, prefiro preencher minha mente com o conteúdo de minhas pesquisas (talvez isto é que explique porque me dedico tanto, porque, ao fazer isto, não deixo que a depressão me abata, porque permaneço internamente motivado e concentrado em criar uma obra de qualidade que posso compartilhar com outros em prol de uma causa comum).
Eu já fazia isto durante a ditadura militar, através da própria arte, de modo que vejo a arte como uma válvula de escape construtiva e por isto mesmo é que estou indo ao encontro das experiências de museus de favelas no Rio de Janeiro, porque trabalhamos com favelados em nossa escola e continuo tentando me aperfeiçoar e criar válvulas de escapes que passem longe do tráfico de drogas, da pobreza-miséria-alcoolismo, da criminalidade em geral etc. A arte pode ser uma destas válvulas de escape, como vejo na experiência dos museus de favela no Rio de Janeiro (isto é o que me motiva, por mim, por minha comunidade e por meu país, que amo muito; o amor talvez seja minha herança judaico-cristã, porque depois do traumatismo craniano, com todas as consequências que ele me trouxe, diretas e indiretas, tornei-me um clérigo, ao vir para Campinas, com 25 de idade morar em um seminário protestante, sempre a partir de uma opção preferencial pelos pobres - portanto, não é de agora, vem de muito cedo em minha vida que sou assim mesmo, inspirando-me não só em Francisco de Assis, mas nos profetas do Antigo Testamento, ou Tanach judaica, também).
A principal riqueza que pretendo deixar para meus futuros netinhos será esta, a herança de luta por uma mundo melhor, mas através de ações concretas e pela obra que vou deixando para trás (com dignidade humana que prova que o dinheiro não é a principal fonte de motivação).
Obrigado por sua compreensão.
Alberto Nasiasene Jaguariúna, 30 de dezembro de 2016
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