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Moro não está acima da lei


Na década de 1990, havia um ditado muito pronunciado na sociedade brasileira: decisão da justiça não se questiona, obedece-se. Todos pensavam que estávamos diante de um poder judiciário imaculado e puramente ético e técnico (no sentido de apurada interpretação das leis existentes). Não creio que era apenas ingenuidade, porque era cegueira ideológica intencional mesmo, tanto da direita, quanto da esquerda. Mesmo naquela época, quando já tinha passado por formação em ciências sociais, em teologia e posteriormente em historiografia, percebia claramente que não só a justiça brasileira não poderia ser tratada de forma tão acrítica como o ditado pronunciava, como qualquer justiça humana existente em qualquer país que seja pode ser tratada desta maneira tão acrítica. A justiça erra e, mais do que isto, pode ser usada de forma venal sim (juízes não estão imunes à corrupção e à manipulação de poder e prestígio pessoal vaidoso). Exagero pensar que a justiça humana mortal seja como a justiça divina dos deuses. Não é, simples assim.

Não que defendesse que as decisões judiciais não teriam que ser cumpridas, porque, afinal, não estava pensando que deveríamos fugir (para sermos foragidos da justiça, em um período democrático), enfrentando o aparato policial repressivo à disposição da justiça, ou afrontar individualmente os poderes existentes como forma de manifestação individualista de anarquismo (nunca tive simpatias para como o anarquismo, qualquer que seja, muito menos simpatias para com gestos vãos de confronto idiota com as armas opressoras). O que defendia era que as decisões judiciais deveriam ser questionadas sim, tanto por advogados de defesa (é o papel deles assim fazer), quanto pelo intelecto dos cidadãos em geral. Do mesmo modo que questionávamos todos os outros poderes, como o Parlamento e o Executivo, não poderíamos abdicar de questionar o Poder Judiciário, também formado por seres humanos não só falíveis, mas humanamente situados em contextos sociais, políticos, ideológicos e culturais claramente datáveis e contextualizados a determinadas conjunturas e estruturas existentes, que não estão acima de suspeição e de interesses nada justos, vindos de esferas ideológicas e econômicas quaisquer.

Afinal, numa república representativa democraticamente constituída, como a nossa, são os deputados e senadores, ou vereadores, no nível municipal, estadual e federal, como é o caso do Brasil, os que elaboram as leis, que os juízes de quaisquer instâncias, irão administrar e aplicar. Ou seja, o legislador não é ninguém do Poder Judiciário, mas do Poder Legislativo (sem nenhuma obrigação de ser formado em direito mas de representar o eleitor, base do poder e origem das leis, de acordo com a Constituição de 1988 e outras anteriores) que era e continua sendo tão criticado (afinal, tem que ser criticado sim, pelo bem da democracia; assim como a justiça necessariamente falível, porque humana). Não estamos mais nos tempos da monarquia absolutista por direito divino; pelo menos desde a Revolução Francesa de 1789 (e no Brasil, pelo menos desde 1820, com a Revolução Liberal do Porto). Na verdade, nem nos tempos áureos da monarquia absolutista por direito divino, tanto em Portugal quanto na Europa em geral, a justiça e as leis eram elaboradas assim ao bel prazer e arbítrio do próprio Príncipe (muito menos por juízes), porque, mesmo nestes tempos, havia um Conselho de Estado e uma legislação anterior que havia sido elaborada nos tempos que se perdiam nas brumas da formação de um determinado povo e uma nação.

Por exemplo, as Ordenações Filipinas que vigoraram no Brasil, como ex colônia de Portugal, até o início do século XIX, não foram leis que surgiram do arbítrio pessoal do rei Felipe II, mas, ao contrário, apenas uma coletânea de leis existentes em Portugal desde os remotos anos da Idade Média, reunidas, por ordem do rei, todas em uma coletânea mais coerente e mais acessível que passou a ter este título, Ordenações Filipinas porque foi durante o período do reinado de Felipe II que esta organização codificada de todas as leis existentes em Portugal foi feita. Isto quer dizer que nem mesmo os reis por direito divino eram tão arbitrários assim como podem parecer à primeira vista. Eles sabiam que se não seguissem as leis existentes em seus reinos, de modo justo, perderiam a legitimidade e a coroa (por rebeliões de nobres, burgueses e camponeses). Coroas foram perdidas muitas vezes, muito antes da Revolução Francesa, é bom não esquecer.

Entretanto, no fim do século passado, século XX, a democracia brasileira ainda não tinha se dado conta de que nenhum poder está acima da soberania democrática do povo, como no primeiro artigo da Constituição de 1988. Nem se pode dizer que isto seja uma herança mecânica de nossa longa tradição jurídica ibérica autoritária (que é autoritária e que é longa e vem desde a Península Ibérica, é mesmo). Não é mera questão de herança inercial não. É algo de mais grave, porque consiste em uma estratégia de poder pensada nos bastidores. A história de Portugal, em si mesma, está repleta de revoluções e rebeliões populares, como, por exemplo, a Revolução de Avis, em 1385. Portanto, as coisas não são tão lineares e a-históricas quanto podem parecer nesta visão simplória de uma justiça acima da normalidade dos mortais. São mais contraditórias e complexas a realidade histórica do que este simplismo de que não se pode questionar a justiça. Não se pode por quê? Nos tempos da monarquia absolutista se questionava sim. Além disso, nem nos tempos bíblicos isto acontecia, o não questionamento da autoridade judicial. Ao contrário, os profetas do Israel Antigo eram muito questionadores sim de como os sacerdotes administravam e exerciam a justiça da Torah e criticavam abertamente, como Isaías, a corrupção de juízes...

Portanto, ao constatarmos como a percepção da justiça foi mudando no Brasil, desde o final do século XX, para o atual momento histórico, podemos dizer que houve um grande avanço neste quesito e ele é importantíssimo se quisermos restabelecer o equilíbrio institucional rompido pelas forças golpistas depois de 2014 que vai culminar no fatídico dia 16 de abril de 2016. Estes acontecimentos revelaram que a democracia brasileira estava assentada em bases muito frágeis exatamente porque não se questionava o Poder Judiciário; que não só permitiu o desenrolar do golpe de 2016, mas que, ele mesmo, Poder Judiciário, foi protagonista no golpe, através de seu braço jurídico-policial midiático presente não só na Vara de Curitiba, mas na Procuradoria Geral da República, que desequilibrou toda a institucionalidade constitucional da democracia de 1988 por concentração excessiva de poderes e desrespeito ao devido processo legal e penal e aos direitos básicos da própria Constituição de 1988. Em nenhum artigo da Constituição de 1988 lê-se que todo o poder das leis emana de interpretações pessoais do que as leis devem ser por agentes do Poder Judiciário. Ao contrário, lê-se que todo o poder emana do povo e que em seu nome deve ser exercido (a começar pela casa onde as leis são deliberadas democraticamente, por meio da representação democrática, pelos legisladores que são os deputados e senadores, por piores que sejam eles, juízes não são melhores, porque também podem ser acusados de mediocridade, parcialidade e corrupção como os legisladores).

Ao remontarmos criteriosamente a história deste desequilíbrio de poderes, em que o Poder Judiciário vai engolindo os demais poderes, iremos percebendo cada passo em que juízes, de diversas instâncias, desde os de primeira instância até os de instâncias superiores, foram usurpando competências legislativas que não lhes cabiam autocraticamente (aliás, é muito estranho, em um regime republicano democrático que se use esta expressão, tão usada em nossas cortes, decisão monocrática, que nem os reis absolutistas por direito divino ousavam fazer). Ora, em momento algum da história, mesmo da longa história autoritária ibérica, foi dado aos juízes este poder de se sobrepor aos outros poderes e à soberania da Coroa (ou à soberania popular, depois da Revolução Francesa) e aos poderes legislativos e executivos. Muito menos com base no arbítrio individual deste ou daquele juiz em específico.

É até injusto atribuir isto à tradição da Santa Inquisição, por mais que esta instituição tenha cometido abusos de poder e de perseguição (e os cometeu mesmo, de forma em que não se deve esquecer, muito menos justificar), mas ela não era uma instituição meramente arbitrária e ditatorial que estivesse fundada apenas na vontade pessoal de qualquer inquisidor, mesmo o Inquisidor Geral. Havia o direito canônico e a estrutura hierárquica da Igreja Católica que não permitia que um juiz em específico se sobrepusesse a todo um ordenamento jurídico, cruel e totalmente fora dos padrões de justiça como hoje o compreendemos, mas ordenamento que não nasceu da arbitrariedade pessoal de um só juiz. Entretanto, se eram abomináveis os termos das ações do Santo Ofício, não podemos dizer que tudo não passava da mera vontade pessoal ditatorial de um juiz ou inquisidor, por mais poderes que detivessem em suas mãos e em suas alçadas.

Por isto chegamos a este momento histórico atual: as aberrações jurídicas autocráticas surgidas na Vara de Curitiba são uma excrecência histórica que não têm raízes nem na longa e abominável tradição autoritária de perseguição do Santo Ofício, que perseguia implacavelmente os judeus e seus descendentes convertidos à força ao catolicismo (chamados de cristãos novos). Só na aparência externa podemos dizer que a sanha persecutória da Vara de Curitiba (estranhamente dirigida por um juiz de primeira instância com um sobrenome que lembra o longo passado ibérico, MORO) tenha semelhanças com a do Santo Ofício ibérico. Nosso caso é pior ainda. Mesmo que procedimentos muito usados na perseguição aos judeus, como o de confisco de seus bens, prisões arbitrárias e degradantes, esteja em uso do modo abominável por um juiz autocrático que age à revelia de todo o ordenamento jurídico brasileiro e à revelia da Constituição de 1988. No nosso caso, não é mera consequência linear de uma antiga tradição inquisitorial, porque é pior, já que o Santo Ofício tinha, por incrível que pareça, limites que impediam a autocracia de um único juiz. É uma postura pessoal de um juiz ditador pura e simplesmente.

Isto tudo quer dizer que a crítica ao sistema judicial brasileiro está no topo de nossa agenda na reconstrução do pacto democrático quebrado pelas classes dominantes brasileiras que nos levaram para este desastre. Mais uma vez, diremos aqui, estamos em um paralelo histórico que tem muito mais a ver com a Revolução de 1930, aprofundando-a, do que com a longa tradição inquisitorial ibérica. A falência do poder oligárquico provinciano da República Velha (da qual o juiz de Curitiba é herdeiro direto), causou o desmoronamento do próprio regime então em vigor. A República Velha da oligarquia agrário exportadora do café com leite caiu, em outubro de 1930, por causa de falta de legitimidade social, jurídica e política, das camadas oligárquicas que detinham os instrumentos de poder do Estado oligárquico vigente; detonada pela crise econômica de 1929 e pela fraude acontecida nas eleições em que impediram que Vargas assumisse com os votos majoritários que recebeu. Isto quer dizer que todo os poderes, por mais arbitrários que possam parecer aos seus próprios olhos, têm lá seus próprios limites históricos e que a história costuma ser bem cruel com os déspotas e ditadores (especialmente os ditadores pessoais e vingativos).


Alberto Nasiasene


Jaguariúna 19 de julho de 2017


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