A luta prossegue seu rumo e nem todos se libertaram ainda
Oswald de Andrade é um exemplo de como, em meio ao feudo paulista, mesmo alguns segmentos da oligarquia paulistana e paulista se rebelavam contra o stabshment. Não foram eles quem inventaram a busca das raízes brasileiras, porque esta tendência vem desde os românticos do século XIX, mas com os modernistas de 1922, mesmo ano em que se funda o PCB, com Astrojildo Pereira (que hoje é fundação de um Partido que veio, nominalmente, desta história, mas que a traiu, o deplorável PPS) que era, antes, anarquista. Por incrível que possa parecer, a história dos comunistas brasileiros está intimamente relacionada com a dos anarquistas italianos e espanhóis que vieram para São Paulo, principalmente, no bojo da grande imigração do final do século XIX e início do século XX. Ou seja, o PCB, em solo brasileiro, não surgiu espontaneamente como parte de um movimento social operário socialdemocrata, como na Alemanha de final do século XIX, nem como na Rússia, dos bolchevistas sociais democratas. Surgiu do grande impulso que os anarquistas deram à criação dos primeiros sindicatos e das primeiras greves, como a greve geral de 1917 que completa este ano cem anos. Este intelectual que serve de nome para uma fundação que nada mais tem de anarquista, nem comunista, como o Partido Popular Socialista de hoje, que apoiou o golpe de Estado de 2016, para colocar o primeiro presidente acusado de corrupção ativa e passiva, na história do país dentro do Palácio do Jaburu, na prática da presidência, com provas documentais diretas (no caso de Fernando Collor, em 1992, não era o presidente diretamente quem foi acusado, mas seu tesoureiro, e acusado pelo próprio irmão, Pedro Collor). Triste fim de Roberto Freire Quaresma, coveiro e traidor de uma história longa de lutas pela classe operária, que começa antes mesmo da fundação do partido, em 1922, que, nominalmente, hoje dirige (em proveiro próprio). Se Astrojildo Pereira fosse vivo hoje, teria entrado na justiça para que retirassem o nome da fundação do PPS. Oswald, que foi filiado ao PCB, seria um dos que estariam na linha de frente contra o golpe de 2016.
Quando se fala em "povo brasileiro" é preciso lembrar que não existe um "povo", de modo geral, em sociedades capitalistas como a nossa, mas setores específicos dele, em áreas distintas de nosso território. Por exemplo, é preciso saber o que o povo que mora nas favelas pensa sobre tudo isto que está acontecendo no Brasil (mesmo que saibamos que também não há um povo favelado homogêneo, que pensa e age igual, nas favelas cariocas, por exemplo). Uma coisa é certa, o povo paulista, que votou no Dória, não é o mesmo povo do estado da Bahia e o povo do estado da Bahia não é o mesmo povo do estado do Amazonas. As pesquisas estatísticas demonstram apenas uma vontade difusa espalhada pela sociedade, como amostragem meramente estatística, mas é preciso entender estas pesquisas de modo mais detalhado, sabendo-se que retratam apenas um momento fugidio de uma realidade socioeconômica e política muito complexa e muito dinâmica. Afinal, treze milhões de desempregados nesta altura dos acontecimentos estão, evidentemente, pensando em primeiro lugar em sua própria sobrevivência física (afinal, como poderão lutar e votar, se não estiverem vivos?).
Somos um povo heterogêneo de norte a sul e de leste a oeste deste território, mas que tem três matrizes básicas: a matriz lusitana, a matriz indígena e a matriz africana. Mesmo aqueles descendentes de japoneses ou italianos, que nada herdaram, geneticamente, destas três matrizes, foram inseridos em uma história e uma cultura que geneticamente é o resultado deste amálgama étnico e histórico (amálgama muito violento, não podemos esquecer). Nada mais brasileiro do que saber que, em São Paulo, por exemplo, há terreiros de candomblé que são constituídos por mães de santo de origem italiana, com filhas de santos também de origem italiana (com olhos azuis e cabelos louros). Por outro lado, nada mais brasileiro do que ver descendentes de escravizados de origem africana ou indígena que são praticantes do catolicismo popular ou do pentecostalismo espalhado nas periferias sociais Brasil afora. Este amálgama racial e cultural gerou paradoxos tipicamente brasileiros que dão uma força cultural contraditória à nossa sociedade diante de doutrinas fascistas como a do movimento "escola sem partido" (que não seja o deles). Muito difícil impor um pensamento único, como quer o movimento fascista importado da Itália e Alemanha, fora de época e de geografia, em um país tão heterogêneo, tão moreno e tão complexo, tanto em matéria de religião, quanto em matéria racial e política. Mas isto é que constitui nossa força, especialmente diante de doutrinarismos fascistas que não aceitam e não sabem conviver com as diferenças, com a miscigenação e com a pluralidade de concepções de mundo e de estilos de vida.
Treze milhões de desempregados (medidos pelos métodos oficiais que só levam em conta os que estão procurando emprego, não os que já desistiram de procurar emprego ou não estão procurando pelos canais normais e formais) querem dizer mais de trinta milhões de pessoas desassistidas econômica e socialmente. Isto é, se imaginarmos um pai de família, ou mãe de família, que sustenta pelo menos duas outras pessoas, mulher e filho, ou dois filhos ou mais, multiplicaremos este número de treze milhões por três (mas a conta pode ser maior ainda, porque não sabemos detalhadamente quantas pessoas são sustentadas pelos que procuram emprego e não o acham). Portanto, estamos diante de uma tragédia social, não de números e estatísticas apenas.
A conquista de nosso território não foi algo pacífico e imediato, mas muito violento e muito demorado. Bem ou mal que tenha sido, esta conquista violenta e demorada foi a que nos formou enquanto povo e nação. Todos nós somos fruto desta história, desde os povos indígenas remanescentes, até os imigrantes japoneses e italianos que para cá vieram em massa (todos, de mil modos, se integraram ao nosso povo, absorvendo a língua, os costumes e as tradições tipicamente brasileiras). Não há como fugir desta história e deste destino brasileiro sul americano e sul atlântico, fingindo que somos nórdicos e anglo saxões (nem o protestantismo implantado em nossa terra, por missões norte americanas, desde meados do século XIX, conseguiu erradicar de nós nossas raízes culturais latinas e isto é o que explica a explosão do movimento pentecostal dentro deste segmento, desde a primeira metade do século XX; é fruto de uma rebelião cultural inconsciente contra a hegemonia teológica e religiosa anglo saxônica). Enganam-se todos aqueles que pensam que podem submeter este imenso país tão complexo, em suas estratégias mecanicistas de dominação geopolítica. Não somos nenhuma Índia, com sua história morena milenar, mas, dentro das Américas, somos algo parecido, guardadas as devidas proporções. Só podemos ser comparados a sociedades indígenas como a mexicana, a peruana, a boliviana e a guatemalteca, em sua ancestralidade asteca, maia e inca. Neste quesito, perdemos o peso que estas outras sociedades latino americanas têm, mas o que dá o contra peso a isto é nosso tamanho geográfico e nossa densidade social, com o grau de desenvolvimento industrial socioeconômico que alcançamos durante todo o século XX.
Por trás destes números escondem-se muitos dramas e muitas tragédias (como a daquele jovem, em Jundiaí, que cometeu suicídio nesta semana, por não encontrar emprego e por não conseguir mais pagar suas dívidas; quantos estão cometendo suicídio pelas mesmas razões?). Os corruptos que nos governam, a começar pelo presidente impostor, que alçou-se ao cargo por meio de um golpe de Estado parlamentar, de modo ilegítimo, são os responsáveis por tudo isto (aliás, na teoria do domínio do fato, são eles quem têm a responsabilidade política de provocar este desastre e este sofrimento ao povo brasileiro). Atrás de cada número de desempregado, oficial (fora os que nem aparecem nas estatísticas oficiais, como dizem especialistas, que beiram os 20% de desemprego da força de trabalho brasileira e fora os que estão tendo que se contentar com sub empregos e atividades econômicas informais e até ilegais, para sobreviver), há toda uma história pessoal de sofrimento e tensões familiares que está fazendo com que nosso povo se torne infeliz e desesperançado.
Há uma ética brasileira popular, profundamente marcada pelas três fontes e matrizes mencionadas acima. Isto quer dizer que ela não pode ser capturada facilmente em uma linearidade cartesiana e positivista e é por isto que ela dá nó na cabeça de quem tenta conhecê-la de modo superficial. É preciso incorporar o espírito dadaísta e surrealista dos modernistas para tentar entender a antropofagia cultural que nos moldou e que ainda conforma nosso arcabouço cultural atual. Neste caso, em específico, somos como a Índia, porque nenhuma doutrina, nenhuma teoria, nenhuma corrente organizada que venha de fora de nós pode sobreviver por muito tempo intacta. Logo a canibalizamos e a absorvemos, mesclando-a com nossa própria maneira de ser brasileiros. Avacalhamos e carnavalizamos sim, no melhor sentido e na melhor direção. Por isto, no fundo, somos um povo alegre que ninguém consegue abater. Da dor fazemos samba e carnaval; até como maneira de resistência espiritual a quem nos oprime.
É criminoso o que o senador Aécio Neves fez com o nosso país, ao não aceitar democraticamente o resultado das eleições de 2014. Um filhinho de papai corrupto e facínora como ele, que nunca trabalhou para sustentar a família, como o povo trabalhador assalariado faz cotidianamente, apoiado por uma oligarquia insensível, fruto de uma sociedade escravista, embotada em sua sensibilidade social, é sim o principal responsável, junto com todos aqueles que com ele se aliaram (e digo mais, junto com todo o eleitorado que votou conscientemente nele, porque foram as ideias dele e o programa que ele propôs que estão nos levando para esta tragédia social e política, sem falar no desastre econômico que estão provocando desde o boicote econômico e midiático à candidata vencedora nas urnas em 2014). Plantaram ódio ao país que lhes dá abrigo e estão colhendo este desastre comparável e uma guerra; que não é guerra declarada, mas guerra de fato e, pior ainda, guerra ao próprio povo (típico de traidores da pátria).
A maior parte de nosso povo não entende o discurso dos intelectuais (mas consegue entender o discurso do Lula, por incrível que pareça, por isto ele aparece como em primeiro lugar nas pesquisas de intenção de votos). Neste quesito não é tão difícil entender porque não entendem os intelectuais, já que a maioria esmagadora de nossa população não teve acesso ao nível de escolaridade universitário e, mesmo os que tiveram acesso a este nível, não têm uma visão crítica do mundo tão desenvolvida como nós intelectuais de esquerda, mesmo que simples professores de história do ensino fundamental como eu (devo confessar que boa parte de meus colegas professores de história também não tem lá esta consciência crítica que imaginamos deles; muito menos os outros professores que não são de história).
Mas dá para perceber que todos estamos perplexos com o grau de desagregação econômica, social e política que estamos vivenciando (como se estivéssemos sendo invadidos por uma força estrangeira que nos derrotou de modo traiçoeiro, como os alemães nazistas fizeram com a França em 1940). Não sabemos exatamente o que fazer, depois que fomos apunhalados pelas costas, para que nossa vontade prevaleça sobre as instituições representativas que deveriam, em tese, nos representar. Já saímos às ruas, berramos, portamos cartazes, postamos na internet etc; desde 2015 (mesmo antes, na própria campanha eleitoral de 2014). Até agora, aparentemente, nada adiantou (mas cada ação destas que fizemos anteriormente foi preparando o terreno para que 95% da população diga que não quer o traidor e corrupto Temer; a despeito de toda a campanha midiática que lhe é favorável - se isto ocorre, é porque algo não está de acordo com o script e está nos dizendo que não há apoio social e político massivo ao golpe). Mas o que fazer? Sair nas ruas fazendo quebras quebras? Lutar como guerrilheiros para derrubar os corruptos? Mas, como, se nem sabemos como usar armas (a maioria absoluta de nós)? Queimarmos nosso próprio corpo, morrendo (e nada mais podendo fazer pelos que permanecem vivos)?
Podemos ter lá nossos traidores, como qualquer país os terá. Mas não se pense que somos passivos, todos, diante dos ataques de inimigos de nosso povo. Se sobrevivemos a quatro séculos de colonização e dominação escravista, intactos como território e como povo, falando a mesma língua, isto quer dizer que nossa força não é pouca não. Nossa sobrevivência ao ataque colonial e imperialista anglo saxônico vem de quinhentos anos. De mil maneiras, conseguimos sobreviver. A própria conservação da região amazônica em nossas mãos, diante de potências tão poderosas como as do século XVIII, é algo de assombroso. Região cobiçada, por forças do Norte Atlântico até hoje, felizmente, apesar de todos os traidores e colonizados mercenários que recebem propostas indecorosas de fora, a Amazônia é e continuará sendo nossa. Custe o que custar. Não a perdemos em situações conjunturais mais difíceis do que as que vivemos agora, porque a perderemos agora, mesmo com as bases norte americanas nos cercando? O Marquês de Pombal, com uma força militar infinitamente menor do que a das potências inglesas e francesas, a manteve em mãos da coroa portuguesa debilitada. Não conseguiram nos vencer, apesar de perdas momentâneas e táticas aqui e ali. O que importou foi o resultado geral da luta, não o resultado de batalhas específicas isoladamente.
Como resolver tudo, individual ou coletivamente, só com a mera vontade? Pelo jeito, o mero voluntarismo político de sair às ruas não está, sozinho, resolvendo os grandes problemas que estamos enfrentando. Mas isto não significa que o sair às ruas (e parar o país, como foi feito no dia 28 de abril) não tenha nenhum efeito. Tem. Empoderamento de cada um que saiu de sua zona de conforto para demonstrar capacidade de resistência e luta (afinal, no começo, era preciso ser bem corajoso para enfrentar o golpe contra a onda fascista). Mas ainda é pouco e isoladamente estes gestos, ações e atos públicos tem seus efeitos positivos sim, mas limitados. São parte de uma longa estratégia e um longo processo já iniciado pelo menos desde 2015 (portanto, estamos já no terceiro ano de lutas intensas).
Da raiva e do luto, em lágrimas, à luta. Estas fotos são fotos clássicas da resistência francesa. Nem todos os franceses corajosos aderiram tão abertamente à resistência como estes aqui. Entretanto, mesmo que muitos franceses tenham dado apoio aos nazistas, o que prevaleceu, ao final, foi a luta da resistência. Nem todos os franceses se entregaram ao domínio nazista de modo passivo e logo que eles ocuparam a França, começaram a se organizar para a resistência partisan. É o que está acontecendo no Brasil não só desde 2013, diante da escalada fascista, mas desde sempre. Somos um país com uma longa história de lutas sociais contra a opressão é bom não esquecer.
A luta cansa o guerreiro, mas não o derrota somente por causa do cansaço. Há momentos de pausa e trégua que não significam abandono da ofensiva. Ruas vazias de resistentes e combatentes, nem sempre indicam que há rendição. É simplório pensar que a luta só ocorre nas ruas. Ao contrário, quanto mais cansados estivermos, mais nos comprometemos com os motivos da luta e mais ficamos tomados pela emoção que nos motiva a prosseguir lutando. Quanto mais sofrimento nos impuserem, mais levantarão dentro de nós a vontade de lutarmos por nossa libertação, contra quem nos oprime.
Por enquanto, até agora, estamos fazendo o que é possível fazer, afinal, uma greve geral ocorrida no dia 28 de abril deste ano, a maior greve geral ocorrida na história deste país, com a abrangência numérica e territorial que obteve, não é pouca coisa e revela que nosso povo (e nossos trabalhadores que ainda têm emprego) não está tão passivo assim. Ao contrário, está revoltado. Mas a revolta emocional apenas não resolve muita coisa. Não depende só de cada um de nós, mas temos certeza que depende um pouco de cada um de nós e estamos inventando modos novos de reagir ao assalto ao poder (eles imaginavam, desde 2015, que não haveria reação corajosa nossa e que aceitaríamos como fato consumado as barbaridades que queriam cometer contra nossos interesses maiores enquanto nação).
Nestes momentos de crises históricas, políticas, econômicas e sociais profundas não adianta apenas análises intelectuais de bom senso e acurada capacidade analítica expressas em papers. Também não adianta apenas ações descontroladas, num país tão imenso como o nosso (desperdiçando energias psicológicas, sociais e políticas inutilmente). Mas ambas as coisas estão acontecendo. Só não vê quem não quer. Há uma confluência social e política que está em processo e devemos tentar perceber em que direção ela está se dando e propor, sempre, alvos simples e concretos que possam ser entendidos por todos e que possam ser feitos por cada um, desde uma dona de casa aflita, porque o marido e filhos estão desempregados, até intelectuais de academia (e artistas diversos).
No meu entender, o que está acontecendo é uma repactuação deste bloco histórico de final dos anos 1970 (que se esgotou desde 2014), com o contexto de século XXI pós três governos do PT). Em 2013, conseguiram implantar uma cunha ofensiva que chegou ao poder, finalmente, em 2016, via golpe; como nas estratégias militares da II Guerra Mundial. Talvez esta ofensiva de direita, desencadeada em 2013, possa ser comparada mais à Batalha das Ardenas do que à Batalha do dia D. Portanto, precisamos saber que estamos em uma ofensiva semelhante, em alguns aspectos, ao que acontece depois do desembarque das forças aliadas contra o nazi-fascismo na Normandia, França. Pode não ser imediato o processo, mas, como processo, ele tem um impulso forte que está indo em uma direção de vitória. A Alemanha nazista será derrotada, mas haverá luta até o final e eles não irão se entregar tão facilmente assim sem lutarem, rua por rua, homem a homem, mulher a mulher e neste último momento é que ocorrerão mortes que não prevíamos e não queríamos a começar pela nossa, que está em jogo.
Creio (e não é de agora) que estamos imersos em um processo revolucionário que só entenderemos melhor quando ele se completar (como diria Florestan Fernandes, a Revolução Burguesa no Brasil não foi como na Europa, é um processo longo e demorado demais, mas é um processo revolucionário, mesmo que não nos mesmos moldes da Revolução Francesa; porque a história não segue modelos prévios, já que se desenvolve dentro de contextos diferentes, com atores diferentes e territórios diferentes). A Revolução Russa, que completa neste ano cem anos, não foi um mero mudar da folhinha do calendário, como costuma pensar o senso comum, mas um processo contraditório, confuso e muito pouco compreendido, pelo povo russo da época, no calor dos acontecimentos, em seus diversos segmentos, a não ser aos poucos. Embora os fatos estivessem acontecendo, num país continental como a Rússia, em meio da uma Grande Guerra, como foi a Primeira Guerra, nenhum fato isolado, sozinho era suficiente para entender todo o processo que estava se desenrolando de modo paulatino (por mais que doutrinários marxistas leninistas tendam hoje a pensar que tudo era um process mecânico e automático como o virar da folhinha do calendário).
Nenhum processo histórico é como o virar da folhinha do calendário. Não acontece desta maneira. As transformações só parecem ser um processo contínuo e homogêneo, sem contradições, sem obstáculos e sem interrupções momentâneas em discursos historiográficos que tentam captar, sinteticamente, apenas os elementos essenciais dos acontecimentos de modo a não cansar o leitor. Portanto, uma coisa é ler sobre qualquer Revolução ocorrida no planeta, outra bem diferente é vivenciar estas Revoluções. Nada é imediato, muito menos semelhante a um simples virar de página.
Acerta quem tenta dialogar com as fontes culturais mais profundas de nosso povo, que são, gostem ou não, judaico-cristãs. Isto o Lula consegue fazer, afinal, o próprio PT surgiu de uma aliança de centro esquerda e esquerda entre setores da Igreja Católica popular, inspirados pela teologia da libertação, e setores operários sindicalizados, com setores da intelectualidade de esquerda e progressista no final da década de 1970 e início da década de 1980. Esta aliança de trinta e sete anos atrás foi o que impulsionou mais rapidamente o desmoronar da ditadura militar e a construção da atual Constituição de 1988; mesmo que o PT nem tenha chegado ao poder na época (era ele o catalizador da força política e social que dava impulso mais forte para a abertura mais radical da sociedade brasileira para uma democracia mais plena e isto é o que explica porque a oligarquia econômica que ainda está aí nunca aceitou plenamente esta constituição, a mais avançada que nossa história já teve).
Isto quer dizer que devemos lutar pela preservação de nossa Constituição de 1988, não por outra Constituição (com o risco de vermos uma nova constituição pior do que a de 1988). Os ataques do golpe de Estado de 2016 estão sendo dirigidos exatamente contra a Constituição de 1988, passo a passo, de modo que, passo a passo, nas nossas trincheiras e ruas e becos, devemos resgatar tudo o que eles estão destruindo na nossa Constituição de modo anti democrático. Do mesmo modo que devemos lutar pela CLT ferida de morte por este governo corrupto e golpista, devemos lutar pela manutenção de nossa Constituição neste momento histórico (no futuro poderemos lutar para melhorá-la em sentido progressista, aprofundando a democratização que ela indica; mas agora, nosso objetivo básico tem que ser preservá-la).
Nossa vantagem estratégica é que estamos ao lado dos principais interesses estratégicos e existenciais de nosso povo trabalhador, que é a maioria esmagadora de nosso país. Representamos, por isto, o desejo popular por liberdade, mais justiça social e mais democracia inclusiva; não o contrário. Quem tem o ônus de lutar contra tudo isto são as forças golpistas e, por isto mesmo, por mais poder de fogo que tivessem, ao derrubar um governo eleito diretamente, este poder declina a olhos vistos dia a dia (como era declinante o poderio militar dos nazistas que ocupavam a Europa em 1944). Irá declinar mais rapidamente à medida em que este ano se acabe e à medida em que o próximo ano se aproxima.
É um avanço lento demais para o voluntarismo, mas é um avanço que, para o ritmo da história, até que está sendo rápido (não serão necessários vinte anos para derrotar este golpe, como o de 1964). O Brasil já não é o mesmo de 1963, nem a sociedade brasileira (que, na época, era majoritariamente rural e nem tinha televisão, muito menos internet para saber um mínimo do que se passava). Somos uma sociedade que teve o gostinho de avançar socialmente um pouco mais, no próprio padrão material de vida. As forças contrárias querem que retrocedamos a um patamar mais abaixo e este é o principal calcanhar de Aquiles deles: querem que nos contentemos com o suicídio, como o do rapaz de Jundiaí, nos oferecendo desemprego e desesperança (com novos contratos, limitados, de trabalho, precarizados e intermitentes).
Alberto Nasiasene
Jaguariúna, 4 de agosto de 2017
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