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A Retomada e a estética cinematográfica do capital financeiro


Neste tempos de golpe, como nos tempos da ditadura militar que já vivemos, no momento em que o Cinema Novo e a obra do Glauber Rocha estavam desabrochando (Deus e o Diabo na Terra do Sol foi lançado em 1964), assistimos, estupefatos, não só a traição à democracia e aos direitos trabalhistas de um antigo partido comunista que mudou de nome (PPS), traindo sua longa história de lutas corajosas pela democratização da sociedade brasileira, iniciada no mesmo ano da Semana de Arte Moderna, em São Paulo, 1922, mas a traição de intelectuais que um dia se apresentavam como de esquerda, tais como Ferreira Gullar. Alguns deles dão apoio aberto ao golpe de 2016, outros apoio tácito; mas o que é pior de tudo é o apoio deles à invasão da Venezuela, país vizinho, por forças norte americanas para estabelecer uma dominação truculenta em um país da América do Sul. Antes, durante os governos Lula e Dilma, alguns deles queriam que o Brasil invadisse a Bolívia (agora temos a possibilidade de guerra dentro da América do Sul; com o apoio deles e, quem sabe, extrapolando o território da Venezuela para nos atingir também, ocupando, com tropas mercenárias ou marines, a nossa Amazônia, a começar por Roraima e Amazonas, e a retirando de nossas mãos - velho sonho acalentado por tantos inimigos do Brasil desde tempos coloniais).

Na verdade, neste caso, o de Ferreira Gullar, o fenômeno é mais complexo, porque, à medida em que ele ia ficando velho, descobríamos que, no fundo, ele nunca foi marxista coisa nenhuma e que seu envolvimento com o antigo PCB, na década de 1960, era mais uma questão de oportunismo pessoal do que uma opção ideológica claramente pensada e decidida. Depois da morte recente dele, importantes documentários biográficos e auto biográficos revelam o quanto estávamos diante de uma fraude intelectual construída durante tanto tempo e isto passamos a ver claramente comparando a biografia de Ferreira Gullar com a de Augusto Boal. Os dois mudaram muito, à medida em que a história foi seguindo seu rumo e chegou ao século XXI, mas em sentidos contrários.

Ferreira Gullar foi assumindo, cada vez mais, sem máscaras e com um oportunismo renovado (aliando-se à mídia de direita orientada pela ideologia neo liberal, até como maneira de ganhar dinheiro através de compadrio com o pensamento autoritário, anti democrático, anti socialista e anti esquerda dos donos desta mídia, por nós aqui neste site, chamada de oligarquia midiática decadente, porque os meios de comunicação estão passando por profundas transformações e os veículos tradicionais em que esta oligarquia predominava estão todos obsoletos), suas posições de direita, aliando-se aos tucanos, cada vez mais transformados em neo malufistas sem o sê-lo nominalmente (ou seja, o eleitorado que votava antes no Maluf, passou a votar nos tucanos em São Paulo) enquanto que Augusto Boal manteve sua coerência intelectual de artista de esquerda, permanecendo aliado do campo democrático popular e não renegando sua trajetória intelectual anterior de artista perseguido e exilado pela ditadura militar.

Eryc Rocha

A grandeza de um cresceu enquanto houve a apequenamento do outro, pelos motivos mais mesquinhos possíveis (porque o Boal nunca deixou de ter suas oportunidades profissionais, mesmo sem ter abandonado a coerência de sua vida anterior de lutas e suas convicções ideológicas socialistas dentro da tradição da esquerda brasileira). O que prova que não há um caminho único e linear a ser traçado pela intelectualidade de esquerda e que a feia verdade é que as traições acontecem hoje como sempre aconteceram ontem e nada diz que não continuarão a acontecer (felizmente, este fenômeno vale para os dois lados da disputa).

Mas este fenômeno também aconteceu no cinema brasileiro, paralelamente ao mundo da literatura e do teatro. No caso, para o poeta Ferreira Gullar, foi mais cômodo e oportunista mudar de lado, ou voltar ao antigo lado em que ele sempre esteve, nunca se saberá ao certo, porque os oportunistas são sempre dissimulados e porque ele vivia de expedientes em jornalões e Tvs comerciais controladas pelo grande capital e afinadas ideologicamente com o neo liberalismo. Gullar não era formado em nível superior e muito menos no curso de comunicação social, mas exercia a função jornalística como um favor dos patrões oligárquicos, seus compadres.

Nem vou falar de um suposto integrante do Cinema Novo, carioca, autor de filmes rodrigueanos no passado, que se considera descendente de uma linhagem antiga de aristocratas árabes-persas que remonta, quem sabe, até o Profeta das Arábias (é de rir tamanha lorota, para quem é historiador e sabe como as falsas genealogias eram e continuam sendo fabricadas, de acordo com a demanda do freguês). Acho ele muito enfadonho e nem quero perder meu tempo com alguém que abandonou o cinema para se tornar o jornalista opinativo de plantão das Organizações Globo e adjacências em papel... Quero falar dos cineastas propriamente ditos que não abandonaram seu ofício em prol do jornalismo puxa saco da ideologia neo liberal.

Claro, desde o fim da Embrafilme, no início da década de 1990, com uma canetada neo liberal amadora do ex presidente Collor, fala-se no tal renascimento do cinema brasileiro, ou Cinema da Retomada. Na verdade, o que houve, em grande parte, foi a migração de publicitários (atividade bem lucrativa em tempos de neo liberalismo dominante) de seu nicho anterior para a produção de filmes, tais como o gênero inventado, "favela movie". Se estudarmos detalhadamente a história de como isto se deu, veremos que, em muitos casos, houve uma pirataria, feita por publicitários importantes de agências de publicidade paulistas, de saberes acumulados por verdadeiros cineastas (que não vieram do mundo da publicidade). Estes donos de agências publicitárias, no vazio aberto pela extinção da Embrafilme, estavam desejosos de obter um prestígio intelectual que o Cinema Novo trouxe para autores como Glauber Rocha (mas é bom lembrar, que sem a estrutura empresarial da Embrafilme).

Renato Tapajós, cineasta que não renegou seu passado e continua coerente com sua estética questionadora da sociedade brasileira e propositiva. Não aderiu à ideologia neo liberal como outros, muito menos renegando toda a sua trajetória anterior. Lúcia Murat, não só não renegou sua trajetória anterior, mas faz filmes que abordam esta temática. São sobreviventes do Cinema Novo que não renegam a herança anterior.

É deprimente ver como o poder do capital comercial, no caso, originado do nicho publicitário, foi invadindo e tomando conta de uma área que não era a sua. Eles vinham com o dinheiro, mas sem os saberes estéticos e sem os posicionamentos políticos diante da vida e as vivências cinematográficas daqueles que a tinham, mas sem o dinheiro. Poderia ter sido um casamento justo e equilibrado, mas não foi. Os donos de agências publicitárias trouxeram consigo o DNA mais puro do capitalismo expropriador de trabalho e ideias, na medida em que colocaram para trabalhar, para eles, vejam só, para eles e não com eles, talentosos roteiristas de cinema, diretores de cinema e atores à medida em que iam se apropriando de saberes que estes donos de agência (formados, alguns deles, na ECA da USP, mas a partir da entrada no curso de arquitetura) não tinham. No resultado final, o produto cinematográfico é apropriado pelos donos do capital comercial publicitário e os verdadeiros autores intelectuais são despossuídos de sua autoria principal e o inverso é que passa a parecer para o público (de que aqueles filmes são daqueles donos de agências publicitárias metidos a diretores de cinema autoral). Ou seja, aqueles que não tinham a genialidade criativa de um Glauber, porque tinham, no máximo, experiência com publicidade que não é, nem de longe, a mesma coisa do fenômeno estético do Cinema Novo, passam a ser laureados por um público que os confunde como prosseguidores do espírito do Cinema Novo renovado e re atualizado ao século XXI.

O favela movie não empunha ideologia alguma que vá para além da mera constatação de uma sociedade cindida. Não questiona, não contesta, não propõe; apenas aproveita o visual e os personagens da tragédia cotidiana brasileira, mas a partir de livro mais questionadores que não são o que aparece nos filmes.


Nada mais falso. Não foi isto o que ocorreu com os principais sucessos, especialmente os do gênero "favela movie". O que houve foi a apropriação de formas estéticas (e fórmulas estéticas padronizadas feitas para captar a atenção fácil de plateias domesticadas há anos por estas formas através do cinema hollywoodiano) semelhantes, em alguns aspectos, ao mundo da publicidade, matando-se a alma criativa e contestatária, mas propositiva, do Cinema Novo. Não por acaso, o sonho deles passou a ser entrar em Hollywood, mais do que ganhar prêmios nos Festivais de Cinema autorais da Europa. Questão de mercado, mas externo. Queriam ingressar na indústria de entretenimento de massas hollywoodiana, com os dividendos financeiros que isto causa (afinal, trouxeram de seu nicho publicitário esta sede pura e simples de ganhar dinheiro, muito mais do que se expressar perante o mundo). Ou seja, era só mais uma forma de investimento financeiro aplicado a uma determinada indústria que visava mais retorno financeiro como outro negócio qualquer do mercado (agora endeusado, graças à ideologia neo liberal).

Há uma mão dupla aqui, tanto a favela absorve o cinemão, quanto a favela contesta o cinemão, apropriando-se da linguagem do cinema para mostrar sua visão sobre o mundo e suas proposições estéticas.


Foi um engodo que não resiste ao tempo, na comparação com a obra de Glauber Rocha, feita, por exemplo, como em Deus e o Diabo na Terra do Sol, sem contas bancárias próprias polpudas como a destes donos de agências de publicidade, resultado de acumulação capitalista anterior com publicidade. Glauber, a despeito dos aspectos artesanais e não industriais de sua estética da fome (sem os grandes capitais advindos da atividade publicitária) ainda é mais. Tem raízes mais profundas na história brasileira e com uma proposta de arte semelhante à da Semana de 1922. Encarna a utopia antropofágica de Oswald de Andrade, porque não se insere de modo passivo e inquestionável diante do espetáculo do capitalismo brasileiro, com espírito contemplativo. Ao contrário, o problematiza impiedosamente a partir da própria utopia do inconsciente coletivo popular e a partir de toda a tradição artística contestatória presente na arte brasileira não comercial.

A digitalização e democratização do acesso aos meios de captação, edição e produção simplificada de filmes digitais é uma das maneiras pelas quais passa a revolução estética e popular que o cinema brasileiro já vivencia e irá vivenciar ainda mais na medida em que este século for avançando e se desprendendo definitivamente das amarras do século passado com sua indústria do cinemão comercial em película e salas de shoppings centers.

Não se tratava meramente de vender ingressos e competir com a bilheteria do "cinemão" comercial (expressão muito usada por Glauber, para se contrapor às Chachadas da Atlântida e a cineastas udenistas cariocas, tais como o tal Manga). Era muito mais. Era a expressão de um artista revolucionário, não somente em relação à estética, mas em relação a uma realidade social que ele via de modo crítico e na perspectiva de sua transformação rumo a uma realidade mais justa e humana. Não parou no fetiche da mercadoria, porque via sua obra como manifestação de arte que ela ainda é, muito mais do que o mero entretenimento comercial de bilheterias da Atlântida (a precursora da Rede Golpe de Televisão, por suas raízes udenistas e comerciais alienantes e dominadoras).

Só depois que percebi este fenômeno é que também me dei conta porque a estética documentária de um Eduardo Coutinho foi mudando, gradualmente, desde o Cabra Marcado para Morrer, para os últimos documentários em que ele expressamente declarava que não queria nada mais do que mudar a própria forma do documentário e já não acreditava em mudar nada na realidade do país (ao contrário, aprendeu como explorar também o gênero "favela movie" mas em proveito próprio, em Santo Forte, por exemplo). Sempre me questionei como poderia explicar esta guinada de ponto de vista de criação face ao mundo, ao assistir as entrevistas antipáticas (carregadas de nicotina) do Eduardo Coutinho. Ele sempre mantinha um tom professoral de superioridade, sem paciência, irritadiço, do alto de sua superioridade formalista cinematográfica para com o entrevistador; pontuando dogmas de como o documentário deveria ser, já que ele se considerava o supra sumo deste tipo de cinema em nível mundial. Pensava que este fenômeno estivesse mais ligado ao contexto ideológico da pós Queda do Muro de Berlim, mas, aos poucos, fui vendo que não era isto. Augusto Boal e tantos outros cineastas novos, como Cláudio Assis, revelavam que não era o contexto, com o desencanto ideológico do final do século passado, que explicava a estética formalista do Eduardo Coutinho, totalmente esvaziada de conteúdos, mas a fonte de financiamento que ele obtinha para seu filmes (a Vídeo Filmes, subsidiária do Unibanco, já que o dono é um dos herdeiros deste banco que hoje está fundido ao Itaú).

O monopólico das câmeras caras e inacessíveis está cedendo lutar para novos e mais versáteis equipamentos que tornam possível a criação de novas estéticas e novos circuitos de produção e difusão de cinema digital fora do circuito do cinemão comercial. Aqui é que vemos que o capital financeiro é totalmente desnecessário.

Ou seja, o mecenas (a quem ele passou a puxar o saco, consciente ou inconscientemente) era o capital financeiro que hoje faz parte do Banco Itaú, o maior banco privado do Brasil (como um retrocesso à era Médici de Florença renascentista). Ou seja, os irmãos Salles, herdeiros do Banco Unibanco que se fundiu ao Itaú (sem pagar os impostos bilionários devidos, que deveriam ir para a educação do Zé povinho favelado; sabendo-se que isto foi uma das motivações para que estes banqueiros sócios, do Itaú principalmente, dessem o golpe na democracia em 2016). Isto quer dizer que não se pode ter a liberdade artística que o Glauber teve, de enfrentar o sistema, corajosamente contestando, de modo criativo e contundente, através de suas obras de arte cinematográficas, o sistema opressivo de um país como o nosso, com o rabo preso com o capital financeiro autocolonizado brasileiro; na periferia de uma sociedade explorada e em vias de ser recolonizada assim que possível, como começou a acontecer a partir de 17 de abril de 2016.

Sempre haverá espaço para a boa dramaturgia e para o cinema autoral contestador. Não é porque os equipamentos passaram a ser mais acessíveis que automaticamente irão substituir a autoria de domínio criativo e problematizador da linguagem e a boa dramaturgia.


Era por isto que o Eduardo Coutinho já não tinha mais o vigor iconoclasta de um Cláudio Assis e não se preocupava mais em mudar nada no mundo (nem à sua volta, ou dentro de casa e a morte trágica que teve tem a ver com isto). Não se rende culto ao capital financeiro impunemente, especialmente em um país como o nosso... Ele cobra, como diz o ditado popular, a alma de quem lhe presta juramento e vem buscá-la como no mito do Fausto.

Aliás, depois que foram buscar o Brasil profundo, depois de Terra Estrangeira a la Win Wenders, sem o sê-lo, em filmes como Central do Brasil, o que os irmãos Salles encontraram? A si mesmos, não só como descendentes das antigas oligarquias, mas como herdeiros do grande capital financeiro que acabou por derrubar um governo de centro esquerda e que é um dos responsáveis pela miséria dos grotões Brasil afora e Rio de Janeiro adentro? O que era o filme da eleição do Lula em 2002, feito por João Moreira Salles (uma variante de San Tiago, o mordomo da família)? Na verdade, ele esperava ter filmado a vitória do Serra (como isto não ocorreu, vai a vitória do Lula), prefigurando a figura do pai dele, o embaixador banqueiro do PSD (PSDB)? E Retratos de uma Guerra Particular? O que era aquilo? Qual guerra? da Globo contra o Brasil favelado ou do Brasil favelado contra a Globo? Era só para aparecer na telinha da Globo na hora do Fantástico?

O círculo cinematográfico está se alargando, mas sempre haverá nichos específicos dentro do universo maior mas é muito bom que haja hoje este universo maior do que uma mera panelinha de uns poucos gatos pingados. O cinema está se tornando, cada vez mais, uma realidade de massas, não apenas como massas receptoras, mas também produtoras de suas próprias obras.


Afinal, o que pensam e defendem, nestes dias conflagrados, os irmãos Salles, supostos grandes cineastas, pilares importantes do Cinema da Retomada, a respeito do golpe de 2016? Nada podem dizer? Será que é porque seu irmão administrador do antigo Unibanco, fundido ao Itaú agora, fez parte, direta ou indiretamente, do complô do grande capital financeiro, capitaneado principalmente pelo Itaú, contra os avanços sociais ocorridos no Brasil na era Lula e Dilma? Qual a relação interna de família deles, já que os filmes vão em uma direção, mas os negócios de família (que garantem os filmes) em outra? Nenhuma rusga? Estão todos de acordo? Com o golpe? São cúmplices pura e simplesmente, ou pós modernamente irão dizer que nada tem a ver com isto (embora os lucros financeiros de família sejam decorrentes exatamente da retirada de direitos do povo trabalhador brasileiro na ordem inversa)? Lavam as mãos?...


Não é o equipamento que faz a boa obra, mas quem usa os equipamentos. Entretanto, por estarem cada vez mais acessíveis, mais versáteis e mais baratos, estes novos equipamentos estão gerando um universo imagético que seria impossível no século XX.


Felizmente, o cinema brasileiro, na era digital, está se democratizando e novos cineastas, com menos de trinta anos, com meios mais modestos e sem necessidade de serem herdeiros de grandes bancos (mancomunados com as classes dominantes opressoras deste país) estão aí para renovar e recriar o espírito do Cinema Novo brasileiro (até nas mesmas condições históricas em que o Cinema Novo nasceu, sem apoios financeiros e nadando contra a correnteza do cinemão comercial e contra uma ditadura nascente).

A favela tem muito o que falar e falar para si mesma (cerca de 40% da população das grandes cidades brasileiras podem ser consideradas favelas ou algo perto disto), porque é um imenso público que não só quer sua voz e vontade ouvida e atendida, mas sua própria auto imagem vista do modo que quer que seja vista. Favela não é mera mercadoria no mercado internacional hollywoodiano e não quer ser modismo em sistemas cult de faculdades de cinema. Favela é sujeito digno, não objeto.


Glauber iria gostar destas novas gerações e da cinematografia que está nascendo.


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 11 de agosto de 2017


Rota Mogiana de Alberto Nasiasene é licenciado sob uma Licença Creative Commons Atribuição-Uso não-comercial-Compartilhamento pela mesma licença 3.0 Brasil.

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