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Física quântica não é religião


Estudar e analisar a história e a cultura indiana significa que, inevitavelmente, temos que encarar o que se considera uma das religiões mais importantes da história da humanidade, o hinduísmo. Aliás, infelizmente, o que o brasileiro conhece mais é alguma coisa relacionada a este suposto hinduísmo. Mas, como diria qualquer historiador ou cientista social que investigue as relações de nossa cultura ocidental com as culturas orientais, o que se considera influência hinduísta indiana esotérica no Brasil nada mais é do que uma determinada leitura brasileira de aspectos do que se chama hinduísmo, evidentemente. Ou seja, é algo de bem brasileiro, com sua estrutura cultural judaico-cristã, muito mais do que algo indiano.

Portanto, preciso delimitar claramente aqui o arcabouço com o qual faço minha investigação científica, enquanto professor de história, a respeito da história da Índia. Em primeiro lugar, minha abordagem sempre é historiográfica, embasada em sólidos referenciais científicos das ciências sociais. Isto quer dizer que não advogo posturas espiritualizantes, esotéricas, espíritas, teológicas etc. Na verdade, tenho aversão cabal a tudo isto. Meu referencial é tipicamente ocidental, até no arcabouço conceitual com o qual faço minha investigação e análises, porque o faço a partir de uma herança intelectual humanista europeia e, mais especificamente, científica (nada em comum com os pontos de vistas dos indianos propriamente ditos, muito menos os que acreditam no universo cultural e religioso hinduísta).

O hinduísmo que conhecemos hoje, na verdade, é uma criação arbitrária que posteriormente foi sistematizada, apagando-se toda a sua historicidade contraditória. Mas isto não é um privilégio do hinduísmo, porque todas as grandes tradições religiosas também são assim. Só por motivos teológicos posteriores é que começaram a apresentar, equivocadamente, o hinduísmo como a tradição religiosa mais antiga da humanidade (claro, dentro do confronto anti colonial com a Inglaterra e países europeus, os teólogos hinduístas, consciente ou inconscientemente, procuraram fundamentar suas crenças em algo mais antigo que a tradição judaico-cristã). Mas, do ponto de vista da história, com fundamentos arqueológicos, não se pode dizer que o hinduísmo seja mais antigo do que a tradição judaica, mas paralela a ela (do mesmo modo que as tradições da China antiga). Isto só acontece ainda porque a história universal ainda é muito eurocêntrica e porque as histórias locais da Ásia não estão ainda suficientemente difundidas e comparadas com os marcos cronológicos comuns a toda a humanidade. Na medida em que vamos fazendo isto, descobrimos muitos padrões análogos presentes na longa duração, entre o oriente e o ocidente demonstrando uma história da humanidade à qual ainda não nos habituamos a encarar de modo mais amplo, mas sistemático e mais profundo.

Mas, é claro, não me levo tão a sério assim a ponto de não brincar comigo mesmo (como sempre digo, sou um ser em processo e não tenho compromisso dogmático com frases que vou escrevendo, porque não as encaro como verdades definitivas, nunca). Isto quer dizer que posso usar metáforas, metáforas, vejam bem, para fingir que utilizo os mesmos referenciais culturais e religiosos hinduístas. Mas, segundo penso, mesmo que eu acreditasse nisto, o que é impossível, não tenho nada em comum com a maneira especificamente indiana de ser no mundo, porque não sou indiano, não vivo por lá e, querendo ou não, sou integrante consciente do mundo ocidental até a medula (não poderia deixar de sê-lo). Por isto brinco com o conceito de reencarnação fazendo um trocadilho linguístico, chamo de reencadernação. Indicando, até pelo palavreado, que não compartilho intimamente destas crenças (na verdade, tenho aversão radical a elas).


Antes de obter minha formação historiográfica propriamente dita, a partir dos trinta e seis anos de idade, formei-me como bacharel em teologia, numa faculdade teológica protestante. Entretanto, quero chamar atenção para o seguinte fato de minha história pessoal de vida: quando entrei para o curso do bacharelado em teologia, já tinha tido uma formação intelectual acadêmica anterior na área das ciências sociais (isto é, sociologia e antropologia; não gosto de me referir a outra das supostas ciências sociais chamada de ciência política, porque, segundo penso, não há uma ciência política, mas teorias políticas que tem origem na filosofia desde a Grécia Antiga e uma especialização da sociologia que foi apelidada com este nome). Portanto, minha formação teológica propriamente dita se deu já com um olhar antropológico que seria impossível não ter desde os vinte e cinco anos.

Quanto mais vou estudando a história da Índia, mais descubro que, na verdade, não estamos diante de uma história linear e única, mas de uma confederação de povos e culturas que nem falam a mesma língua e mantém uma mesma religião sistematizada. É difícil de entender isto, para um ocidental, mas dá para perceber que, na verdade, o hinduísmo é um leque muito amplo de tradições diversas que só de fora pode ser considerado como uma mesma religião. Não é uma mesma religião, mas um mesmo universo religioso, com algumas estruturas em comum, mas muitas diferenças (como, aliás, é o judaísmo e o cristianismo ou qualquer outra grande religião espalhada geograficamente no tempo, como também o islamismo).


Além de tudo, como tive sim um forte referencial marxista, como escolha própria, desde muito cedo valorizava a importância da história como metodologia de investigação que explica o presente. Portanto, meu conceito de história nada teve e nada tem em comum com o que anda nas cabeças, nas bocas e corações de pessoas que levam a sério o ponto de vista tradicionalista dos cronistas históricos e memorialistas ou saudosistas. Até leio livros de cronistas da história, geralmente identificados com o ponto de vista das classes dominantes e classes médias, mas sempre como fonte documental apenas (vistas através dos critérios científicos das ciências sociais que me dão embasamento teórico para olhar, ler, analisar e escrever). Portanto, por favor, não me confundam como um amador que fala da história como mais um gênero literário qualquer, como alguém que pensa que história é sempre a sua interpretação pessoal, em discussões de barzinhos, ou como alguém que quer apenas mostrar o quanto seus parentes eram importantes, conservando a memória deste saudosismo.

Ora, a cronologia que se atribui aos textos sânscritos chamados de Vedas, é paralela aos textos mais antigos da tradição hebraica que está na base da Torah judaica. Penso até que havia sim, de modos indiretos, contatos entre estes povos, com trocas culturais inevitáveis e que é um equívoco pensar estas tradições históricas completamente isoladas umas das outras. Portanto, há sim um longo caminho de pesquisa historiográfica e científica que possa desvendar, com critérios científicos e não especulativos, muito menos religiosos, um substrato mais antigo comum entre as tradições religiosas do Mediterrâneo Oriental e o rio Indo, bem como, recuando mais no tempo, entre as diversas levas de homo sapiens que saíram da África para ocupar diversas localidades geográficas no mundo de modo que, no fundo, temos todos uma base comum histórica que está entranhada, de modo quase que inconsciente, em nossas tradições religiosas. Afinal, somos todos da mesma espécie, embora sejamos tão diferentes hoje nos aspectos somáticos e superficiais de nossos corpos. Diante da história do homo sapiens, cinco mil anos de história não é nada. É que estamos muito acostumados ainda em lidar com uma história que não abrange, de modo mais detalhado, 100.000 anos. Por isto nos surpreendemos com elementos comuns em tradições religiosas, por exemplo, tão diferentes.


História, para mim, é algo que acontece fora de nossas mentes, no mundo social concreto em que vivemos, que nasceu muito antes de entrarmos no mundo. São os fenômenos sociais, econômicos, culturais e psicológicos que acontecem fora e independentemente tanto de nossa percepção subjetiva, quanto de nossas vontades. Isto quer dizer que já parto do princípio científico (tipicamente ocidental e humanista) de que a realidade externa é muito maior, muito mais complexa e muito determinante (mas nada que ver com concepções deterministas) face ao que acreditamos ou deixamos de acreditar. É o princípio de realidade.


Não há como não deixar de ser assim e por isto mesmo é que assumo explicitamente que investigar ideias não é crer nelas. É algo diferente. Além do mais porque o próprio conceito de ideias que tenho é o de que elas são, na verdade, fenômenos neurológicos que acontecem dentro de nossos cérebros biológicos por meio de sinapses bioquímicas. Simples assim, por mais que pessoas espiritualistas fiquem chocadas com estes princípios. Ora, não compartilho com elas as mesmas crenças nem referenciais teológicos, muito menos acreditando de modo fundamentalista em absurdos e fantasias (até acredito que as fantasias são importantes de serem investigadas e que acontecem mesmo, mas dentro do cérebro de quem as tem).

O ensino de ciências no sistema educacional brasileiro designado como ensino básico está ainda muito longe de absorver as contribuições da física de cem anos atrás. Na verdade, mal consegue ainda difundir as concepções de Newton, do século XVIII. Infelizmente. Na prática, Brasil afora, nosso ensino de ciências está mais para a escolástica medieval decadente, com lousa e giz (quando muito, usando um livro didático qualquer). Imaginem então se o movimento escola sem partido conseguir impor seu modo de pensar para todo o sistema educacional brasileiro. Aquilo que já é ruim, vai ficar pior ainda e teremos um enorme retrocesso histórico como ocorreu na Europa ocidental no fim do Império Romano. Para recuperar o país de tal estrago serão necessárias décadas.


Isto quer dizer que, claro que não assumo o ponto de vista teológico da religião hinduísta, ou qualquer outra, quando estou investigando a história de um determinado país. O ponto de vista que assumo é o de um historiador que teve formação científica prévia para isto. Não é o mesmo ponto de vista do senso comum, nem o da teologia, seja lá qual for. Além disso, estou mais interessado nos fenômenos nos quais estas ideias estão inseridas e nas possíveis relações que estas ideias possam ter com outros contextos e fenômenos históricos e sociais do que nas ideias propriamente ditas.

Se pesquiso o que supostamente seria a religião hinduísta o faço apenas como um dos muitos objetivos prévios que me proponho. Não como um fim em si mesmo. Muito menos acreditando que estou descobrindo segredos (como os das ciências ocultas) ou supostas sabedorias esotéricas (sou muito avesso em relação a esoterismos). Além disso, a investigação que empreendo é somente uma metodologia que dá embasamento para prosseguir em minha atividade de professor de história. Nada mais.

A especulação religiosa, seja ela qual for, mesmo a tão badalada cosmologia hindu, se dá por outras vias que nada tem em comum com a moderna ciência, mesmo a ciência quântica. Podem ocorrer algumas coincidências metafóricas aqui e ali, mas é muito ilusório pensar que as teogonias e cosmologias hinduístas são mesmo uma antecipação das modernas teorias cosmológicas. O que se pode alegar em favor delas, até o presente momento, é que há similaridades entre estas teorias e a física quântica (mas só no estágio atual do conhecimento quântico que não irá ficar parado nestas atuais teorias). Aliás, quem faz estas analogias já está refletindo que foi buscar nestas cosmologias hinduístas um referencial e que a metáfora só ocorre porque causa do cérebro de quem as faz (cérebro que pode, no momento, dominar conhecimentos das duas diferentes formas de conhecimento, a física quântica, no estágio em que se encontra atualmente, e o conhecimento das cosmologias hinduístas, do ponto de vista atual, que é um mero ponto de vista teológico interpretativo). Por isto que fazer estas pontes, de modo dogmático, linear e sistemático sempre será um problema muito grande para a ciência e para a teologia. São ritmos de conhecimento que não ocorrem de modo articulado e cronológico necessariamente (a não ser que quem esteja a fazer tais analogias entre uma corrente de pensamento e outra tenha, dentro de si mesmo, o domínio constante das duas áreas de conhecimento, coisa que não se pode garantir). Por isto mesmo, penso que é bom alertar para o fato de que o pensamento teológico, qualquer que seja, tende a ser menos ousado e mais lento do que o pensamento científico propriamente dito e que a ciência não tem que ficar necessariamente atrelada aos ritmos do pensamento teológico sob o risco de inventar novos fundamentalismos dogmáticos como ocorreu no final da Idade Média europeia, que congelou o pensamento de Aristóteles transformado em mero intérprete das Escrituras sagradas judaico cristã. A ciência moderna surgiu exatamente aqui, se rebelando contra as amarras do pensamento teológico.


Portanto, que fique bem claro que não embarco nesta de que a física quântica é uma tradução da teologia hinduísta. Ao contrário, advogo o ponto de vista de que física quântica nada tem que ver com teologia. São dois tipos de conhecimento que diferem nos objetivos, nos métodos, nos enfoques e na própria dinâmica de pensamento. Além do mais, quero deixar bem claro a seguinte afirmação que faço: se tiver que fazer uma escolha entre teologia e ciência, fico com a ciência. Isto porque as teologias tem uma dinâmica interna de pensamento muito mais conservadora e tendem a bloquear a liberdade total de pensamento que a ciência precisa para que o conhecimento objetivo sobre a realidade na qual estamos mergulhados avance.

Isto não significa necessariamente que novas interpretações teológicas, que, para mim, sempre serão moldadas pelas estruturas culturais subjetivas e psicológicas do ser humano, metafóricas, não possam se dar; mas creio que a ciência deve permanecer na frente da teologia porque é muito sério lidar com a realidade concreta no modo moderno de conhecimento e não devemos deixar esta tarefa como monopólio de teólogos (todas as vezes em que isto se deu, foi uma tragédia para a sociedade e a liberdade social sempre é prejudicada por teocracias opressoras).


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 23 de setembro de 2017


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