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Minha principal referência estética é o cinema, não a televisão


Neste novo século e dentro desta reviravolta midiática que estamos presenciando, posso dizer, decididamente, que a produção audiovisual que pratico não é de cunho jornalístico. Não tenho compromisso nenhum com conceitos jornalísticos de comunicação social, muito menos com os conceitos de publicidade comercial ou institucional. Nunca fiz e não faço vídeos institucionais, nem publicidade, muito menos jornalismo. Sou historiador documentarista. Portanto, os parâmetros imagéticos que adoto nada têm que ver com estes outros campos, legítimos, da produção e difusão de imagens e audiovisuais. Ou seja, os referenciais que adoto são parâmetros ligados ao cinema documentário e à produção historiográfica na área do audiovisual. Isto é, não estou ligado ao documentário jornalístico ou publicitário institucional, nem ao cine jornal ou foto jornalismo. Ao me negar a fazer o que não sei e não quero fazer, quero dizer apenas que tenho um referencial bem claro e distinto destas modalidades que indiquei acima. Isto é, estou ligado a uma das muitas correntes do cine documentário, um gênero de cinema documentário específico, diferente do cine jornal e do jornalismo televisivo, mas também do cinema de ficção, o Cinema Verdade, de Jean Rouch, mas não de modo dogmático e fechado, porque também dialogo com o poético e o pictográfico e não estou prisioneiro de escola alguma.

O Homem com a Câmera - Dziga Vertov, no início do cinema russo e início do cinema documentário. Depois haverá uma câmera na mão e uma ideia na cabeça, do Glauber Rocha, que me impactará muito mais do que Vertov. Vertov me impactou quando estava começando a trilhar meu próprio caminho cinematográfico documentário apenas a partir do olhar sobre o cotidiano na história vista a partir do presente, que apontava a câmera para os homens comuns, assuntos aparentemente banais que hoje são valiosos, porque revelam um cotidiano da vida da Rússia que não existe mais. Isto também procuro fazer, em meu cotidiano no início do século XXI, portanto, de certo modo, desde o começo de minha produção, dialogo também com Vertov, mas não compartilho com ele o entusiasmo pela máquina (que creio até alienante e sem senso crítico algum para com a indústria da Segunda Revolução Industrial, por um cineasta que estava para além da Revolução Russa e Soviética). Estou mais próximo à estética do Cinema Novo brasileiro e ao Cinema Novo francês de Truffault e Godard; além de Jean Rouch, é claro.

No final da segunda década do século XXI, com novos meios de captação digital de imagens, de transmissão de imagens, de fruição de imagens, muito mais baratos do que os da antiga indústria do cinema em película de celuloide, a já longa história da estética cinematográfica tem muito o que ensinar, a partir mesmo das escolas públicas, sobre a própria linguagem do cinema, do mesmo modo que se ensina a linguagem verbal e escrita da língua portuguesa, por exemplo, e da matemática, por outro lado. Numa era multi meios, como a nossa, é incompreensível que ainda haja a prevalência de padrões didáticos de ensino decoreba que utilizam apenas duas linguagens principais, pior ainda, com velhos e antiquados modos de ensino baseados no século XIX (com raízes que remontam ao ensino jesuítico e escolástico), quando os sistemas escolares começam a se democratizar. Não dá mais para continuar deste jeito, em pleno século XXI, é a posição deste autor, tanto aqui, neste site, quanto no outro site dedicado especificamente à temática da educação.


É incompreensível os velhos e obsoletos modos de pensar o cinema, cristalizados em um circuito fechado de salas comerciais de shoppings centers, Brasil afora. Claro que nem estamos focando aqui as múltiplas formas de produção e difusão do cinema analógico em película, existentes no século XX, como os cineclubes, festivais de cinema etc. Estamos focando apenas numa estreita visão comercial de cinema reduzida a pouquíssimas salas de exibição comercial, em um país que já ultrapassou a população de duzentos milhões de habitantes, com uma vasta rede de cidades que sequer possuem salas comerciais de cinema, como no passado, mas que, de um modo ou de outro, conseguem o acesso à difusão de imagens, seja por via televisiva, seja por via de internet (que está se alastrando ao ponto de já atingir muitas pequenas cidades do interior, Brasil afora). Não por acaso, pelo menos desde 2007, este site aqui vem refletindo sobre as novas possibilidades estéticas e técnicas a respeito da captação e difusão de imagens, na era digital. Dez anos atrás, ainda havia muito pessimismo na cabeça de cineastas e produtores audiovisuais, ligados à era analógica, que advogavam a tese de que o mundo digital jamais iria alcançar uma suposta perfeição técnica do sistema analógico (talvez, quem sabe, porque os velhos e antiquados modos de captação e difusão de imagens, no sistema anterior, analógico, fossem mais fáceis de ser controlados nas mãos de uma "panelinha" oligárquica de artistas e produtores...).

A trajetória do cinema analógico, durante todo o século XX, começou de um modo popular de exibição até atingir uma estagnação em salas comerciais focadas em um público adolescente e jovem até a idade de 24 anos (começou desde circos, até teatros populares, ou feiras mas ficou enjaulada agora em salas de shoppings centers), como é a produção hollywoodiana, que fabrica produtos pensando neste público específico, o público que costuma frequentar as salas de cinema de shoppings centers (onde o lucro não está apenas na venda de ingressos, mas de pipocas, refrigerantes, chocolates etc.). Muitos dos que pensam o cinema ficaram presos a este estreito paradigma comercial, que desembocou neste estreito universo de salas de cinema, parte reduzida da indústria de entretenimento que não consegue mais competir com a televisão, por exemplo, desde que as televisões começaram a se difundir no Brasil, principalmente a partir dos anos 1970 (as estatísticas oficiais indicavam que, no Brasil, no final do século XX, havia mais televisões do que geladeiras e lares, em grandes e pequenas cidades, em bairros nobres e favelas). Mas é sempre bom voltar à distinção entre a indústria de entretenimento do cinema comercial e a produção de um cinema mais artesanal de autoria (ou cinema de arte, adjetivo que os promotores da indústria do entretenimento não gostam que se use). Nem tudo pode ser espremido nesta dicotomia simplória entre o cinema comercial, de shopping center, e a televisão aberta (já em acentuada decadência com o aparecimento e consolidação da internet). Há universos paralelos que passam desapercebidos para aqueles que não conseguem se desprender dos paradigmas do século XX.

Novas formas de difusão do cinema estão surgindo com força neste final de segunda década do século XXI, tais como o cinema em streaming, via internet, que está invadindo fortemente o nicho das antigas televisões abertas e tornando o leque disponível para amplas massas muito mais variado do que o que havia em todo o século XX. É uma grande revolução na difusão do cinema e, por enquanto, está dominada pelo capital norte americano, mas deveria estar sendo seguida pelo cinema brasileiro de modo mais agressivo, antes que se reproduza o que aconteceu com o cinema brasileiro da era do cinema mudo quando os estúdios de Hollywood tomaram conta do mercado brasileiro quase de modo monopólico.

Evidentemente, o cine documentário nunca foi a corrente principal do cinema que frequentemente é confundido com a versão ficcional, como se esta versão fosse a única e exclusiva versão do cinema. Alguns até confundem cinema de ficção como uma forma de documentário da vida real (os tais roteiros baseados em histórias verídicas, mas representados por atores profissionais e em um roteiro mais literário do que documentário). Pior ainda, em tempos hegemonizados pela televisão, especialmente na segunda metade do século XX, confundem cinema documentário com documentário jornalístico presente em tele jornais, ou em programas televisivos supostamente documentários de obsoletas televisões abertas (e, posteriormente, na transição para o século XXI, em canais a cabo pagos). Por isto mesmo, torna-se necessário resgatar as velhas distinções conceituais e a história do cinema documentário, diferenciando-o bem claramente do cinema de ficção e dos antigos cines jornais (que tinham um conteúdo e uma forma mais afeitas ao jornalismo do que ao cinema). Cinema documentário não é cine jornal, nem é programa de televisão de cunho jornalístico, muito menos publicidade institucional. Além disso, dentro de uma história própria, o cinema documentário tem várias correntes e várias estéticas que não podem ser confundidas com fórmulas de jornalismo, quaisquer que sejam.

Os meios de captação e de difusão mudaram muito, desde que se inventou o cinema no final do século XIX, mas durante toda esta história, foram geradas novas linguagens audiovisuais (no início, mais visuais do que áudio, depois, com a invenção do cinema sonoro, linguagens audiovisuais). Nenhuma destas formas específicas de linguagens audiovisuais surgiu do nada, mas no curso de uma longa história da arte pregressa. Por exemplo, o cinema surge da própria fotografia, explorando dimensões que a fotografia já tinha descortinado e a fotografia surge do interior da própria experiência pictográfica secular da própria Europa, não só a partir do Renascimento, mas bem antes, remontando até mesmo ao período pré histórico do paleolítico. Entretanto, a linguagem especificamente cinematográfica (que não pode ser reduzida a uma gramática sistemática e dogmática) criou uma estética que o surgimento de novos meios de captação e difusão de imagens, da era digital, em pleno século XXI, não podem substituir, como se tudo estivesse recomeçando da estaca zero. Do mesmo modo que não se pode entender a origem da linguagem cinematográfica desconsiderando-se a história da fotografia e a história da fotografia desconsiderando-se a história da pintura, é um erro crasso pensar que a era digital descartou a longa história pregressa da estética audiovisual. Que os novos meios de captação tecnológica podem ensejar uma nova estética questionadora da tradição da linguagem cinematográfica, concordamos. Só que lembrando que, como na arte em geral, a contestação parte do conhecimento acumulado até o presente momento, para propor novas linguagens ou novos caminhos da linguagem, de acordo com novas temáticas, novas formas e novos conteúdos plasmados por via digital mas, direta e indiretamente, herdeiros da nossa longa histórica comum humana neste planeta.

Com o Cinema Novo brasileiro e francês aprendi que o mais importante não é o equipamento, mas quem usa o equipamento, desde que se saiba dominar a linguagem do cinema. Eles deram prosseguimento ao avanço da linguagem do cinema sobre novas condições técnicas, saindo dos estúdios e indo para locações reais, com câmeras mais baratas e mais versáteis que estavam à disposição deles. Portanto, interessa-me fazer o que eles fizeram, inovação estética, não imitar fórmulas que eles nem estabeleceram. Além disso, a invenção deles só se tornou possível porque eles tinham uma vasta cultura cinematográfica e também escreviam muito sobre cinema, de modo crítico, em publicações específicas sobre estética cinematográfica. Não eram amadores e diletantes, muito menos imitadores das gramáticas cinematográficas até então estabelecidas como cânones pelos estúdios.Por outro lado, o ponto de vista existencial deles era crítico face ao mundo e seus cinemas não eram uma apologia conformista ao existente no mundo ocidental.

Por outro lado, exatamente por causa deste referencial, mutante, embasado nas novas tecnologias digitais mais acessíveis e mais versáteis, os limites de tempo de minhas produções não são os mesmos dos parâmetros jornalísticos e publicitários, porque referenciam-se em uma já longa tradição estética de linguagem documentária cinematográfica que tem pelo menos uns cem anos. São mais largos os meus referenciais, não porque não aceito a legitimidade da existência destes outros limites de tempos, mas porque os parâmetros do cine documentário estão mais próximos aos parâmetros da tradição do cinema em geral. Ou seja, a duração clássica do cinema, desde sua origem, na passagem do final do século XIX para o século XX, estabilizou-se nos três formatos: curta metragem, média metragem, e longa metragem (porque o sistema de captação das imagens em movimento implicava em metros de celuloide, que compunham um rolo). Neste caso, mesmo dentro de um parâmetro de tempo padronizado em três modos, ainda assim, há muita flexibilidade porque um curta pode, em tese, durar de um minuto a 30 e um média, em tese, de 30 minutos a 60. Por outro lado, um longa metragem ultrapassa os 60 minutos (mais de uma hora) e pode atingir mais mais do que 180 minutos (os filmes indianos costumam ser os mais longos).

Os referenciais que utilizo na direção e produção de meus filmes são artesanais e de um modo bem consciente e planejado como tais. Por opção pessoal feita desde o princípio de minha atividade cinematográfica documentária, não quis nenhum compromisso com a indústria do cinema de entretenimento (não que ela não tenha seu valor, mas não é meu nicho). Por outro lado, dentro da tradição histórica do cinema documentário, desde Dziga Vertov, passando por Jean Rouch, posso afirmar que o cinema que busco é um cinema corpo, não um cinema olho. É um cinema inquieto, feito de corpo e alma, que não está preso à dimensão da percepção puramente retiniana e cartesiana e que se rebela conscientemente contra uma suposta gramática cinematográfica academizada (mas não a partir de critérios pós modernos; que rejeito). É um cinema em que a câmera se insere na cena, como protagonista, de modo algum de forma passiva e contemplativa e distanciada da trama (muito menos como uma mosquinha na parede, como na ilusão declarada do cinema documentário direto norte americano), porque é parte dela (é o olhar, dentro de um corpo, que dialoga e se relaciona socialmente com os outros personagens reais). Como na proposta antropológica de Jean Rouch, cinema corpo que anda, que sente, que se relaciona, dentro da cena, com os personagens, porque também é um personagem e que não se esconde por trás de uma suposta neutralidade positivista da máquina ou da lente.

Busco um cinema descolonizado (que não tem medo de encarar os rostos, bem de perto, e focalizar os corpos, ou partes de corpos, em sua dramaturgia coreográfica) por padrões estéticos dogmáticos, interiorizados do cinema de estúdios holywoodianos que geraram uma gramática da linguagem do cinema (em planos abertos, planos americanos etc.) que prefiro desconstruir para voltar às antigas lições de Eisenstein, por exemplo, não para copiá-lo, mas para dialogar com ele e retomar velhas maneiras de encarar o estético, no cinema, maneiras muito ligadas ao teatro e à pintura, mas redimensionando-as para um novo meio de expressão que não se confunde com o teatro e a pintura. Como nos filmes inovadores no início da era da linguagem cinematográfica, busco um cinema corajoso, anti convencional e ousado, na inventividade, no espírito de um Oswald de Andrade, de um Mário de Andrade, mas também de um Van Gogh e um Picasso; mas sempre em busca de um diálogo com as artes contemporâneas da segunda década do século XXI, momento em que vivo. Portanto, não busco um cinema para alimentar a indústria cultural do entretenimento de massas. Ao contrário, busco contestá-la. E daí que este cinema nunca tem e nunca terá grandes audiências? Ele não busca audiências das massas, como mais uma mercadoria qualquer, produzida na linha de montagem da grande indústria. Ele busca, ao contrário, resgatar a dimensão artesanal da sétima arte, reconectando-se com a produção pictográfica e teatral, sabendo-se portador de uma diferente linguagem que não é a da pintura nem do teatro.

O público deste tipo de cinema nunca será maior do que o público de teatro, ou o público de exposição de pinturas e artes plásticas em museus ou galerias de arte. Não é um público televisivo, embora também dialogue criticamente com a estética televisiva. Pode alcançar a dimensão autoral de uma trupe, mas também pode se manter na dimensão solitária de um atelier de pintor. Não busco o conceito elitista de vanguarda na arte, mas, infelizmente, para quem quer se contrapor decididamente à indústria cultural de massas, há que se ter consciência de que se nada contra a correnteza, contra o main stream e o preço pessoal a se pagar é o ostracismo ou a marginalidade. Mas, fazer arte é também uma opção ética diante da vida. Ou se busca a fama, a todo custo (e fama não é garantia de nada, nem de qualidade, nem de perenidade da obra), com seus dividendos financeiros, ou se busca alcançar qualidade estética que não necessariamente terá fama e dividendos financeiros, mas mais chances de permanecer como contribuição qualificada à história da humanidade. Van Gogh só é conhecido hoje, fama que nunca teve em sua vida. Mas isto faz parte da grande tradição artística do próprio ocidente, desde a Grécia antiga. Oswald de Andrade, morreu no ostracismo e sua obra só foi descoberta e revalorizada posteriormente.

Comparando os tempos de duração do cinema documentário com os do jornalismo televisivo ou os tempos da publicidade (seja ela comercial ou institucional), temos alguns contrastes significativos. Por exemplo, a publicidade comercial costuma ficar, no atual momento histórico, entre 15 e 30 segundos. Por outro lado, a publicidade institucional pode se prolongar um pouco mais, na média, mas gira em torno de 1 a 3 minutos. Isto quer dizer que os tempos limites da publicidade forçam os produtores e autores a desenvolverem suas habilidades de condensação das formas e conteúdos, dentro de uma linguagem imagética que tem um foco centralizado em objetivos de comunicação social mais amplos. O jornalismo televisivo, por outro lado, tem limites de realização no tempo mais largos do que os da publicidade, mas, no geral, mais reduzidos do que no cinema já que o máximo que costuma atingir, no critério duração, é a média duração (comparando-se com o clássico média metragem do cinema). Entretanto, o documentário jornalístico veiculado no jornalismo televisivo (que inclui o painel coordenador de uma bancada, situada em um estúdio, chamada de âncoras, não pode ser confundido com documentário jornalístico, também chamado de reportagem) fica mais próximo aos parâmetros de tempo da publicidade institucional.

Como já afirmei em postagens anteriores, não tenho o menor compromisso com a dimensão publicitária, nem jornalística, da produção de audiovisuais (até posso fazer trailers prévios e introdutórios de algumas de minhas produções, mas não ao ponto de reduzir toda a minha produção a uma compactação formalista absurda, só para encaixar em modelos prévios e para concorrer em festivais que não quero e jamais irei concorrer, como o Festival do Minuto). Como decisão ética inicial que tomei, ao iniciar minha produção audiovisual, dentro do programa da pedagogia da imagem do MIS Campinas, em 2007, está a de não querer entrar em competição alguma, mesmo a de Festivais. O máximo que aceito é participar de mostras não competitivas (e mesmo assim, com muita aversão a qualquer tipo de burocracias e por isto não tenho motivação de preencher formulário algum, de moto próprio). Sempre gosto de frisar que um projeto audiovisual tem que ter o tamanho que é próprio somente dele. Não há uma regra formal rígida para todo e qualquer projeto, mas o conteúdo deve ser burilado de acordo com suas potencialidades formais próprias. Ou seja, não parto do princípio de que o tamanho em minutagem é a régua com a qual faço todo o resto. Ao contrário, não só tenho aversão total a esta maneira formalista de conceber o audiovisual, como decididamente me rebelo contra ela. Embora não chegue ao extremo de Andy Warhol de filmar horas e horas seguidas o Empire [State] (mais de oito horas dura o filme), gosto muito desta atitude dele, porque não é um nonsense filmar horas seguidas. Por exemplo, Sleep tem mais de 320 minutos (ou seja, mais de cinco horas de duração e sobre um corpo adormecido do início ao fim, enquanto que Empire é sobre o tempo passando sobre o edifício icônico de Nova York). Gosto deste questionamento experimental de padrões supostamente estabelecidos do cinema e desta experimentação sobre a duração do tempo que é uma pesquisa estética e fenomenológica também.

As peças de Shakespeare tinham uma duração de horas e horas seguidas e era isto mesmo que o público queria, ficar a noite toda, em pé, vendo e ouvindo as peças. Da mesma forma que os cultos eram horas seguidas, nas igrejas anglicanas da época, ou os rituais tribais duravam até mesmo dias seguidos. Outra maneira de se relacionar com a duração dos espetáculos, dos eventos, das mostras, quaisquer que sejam. Não por acaso, o cinema indiano ainda mantém esta outra maneira de se relacionar com a duração da exibição, porque os filmes tem três horas ou mais (com intervalo, para as pessoas irem ao banheiro, como havia no teatro séculos atrás). Claro, por afirmar tais coisas não estou aqui dizendo que meus filmes são muito longos, como os indianos. Ao contrário, procuro não ultrapassar a dimensão do média metragem e, frequentemente, muitos de meus audiovisuais não chegam a dez minutos (mesmo neles, com um ritmo de tempo que nunca será o tempo condensadíssimo e apressado de um comercial de 30 segundos).

As festas na casa da Tia Ciata, um dos locais onde o samba moderno nasceu, no início do século XX, no Rio de Janeiro, que tinham ligação com a prática do candomblé, duravam, muitas vezes, dois ou três dias seguidos (como os rituais nas sociedades africanas tradicionais). Só depois, com a compactação do tempo, feita para mercantilizar o produto cultural, na indústria cultural de massas, é que o samba enquanto unidade sonora feita por meio de alguma canção, para ser gravada em disco, vai ficando reduzido a alguns minutos apenas, dois ou três minutos na época do LP, e os espetáculos, pagodes, vão encurtando a duração para menos do que duas horas consecutivas. Entretanto, no final do século XX, quando este processo de compactação da mercadoria cultural é iniciado, vemos o fenômeno de rebelião juvenil chamado festas raves como prova de que nem tudo cabe dentro do vidrinho...

É preciso enfatizar que técnica não é estética e a isto me refiro não somente em relação aos equipamentos de captação e edição de imagens, mas a certos elementos da própria montagem. Pouco importa se os cortes, as junções, fusões, transições entre planos ou filtros usados na edição de planos estejam "perfeitos". Eles, em si mesmos, não são a estética do filme. São apenas elementos superficiais da forma, mas nem são completamente a forma total do filme. Além disso, de nada adianta, para a narrativa filmográfica, termos uma suposta técnica perfeita, de cortes (e enquadramentos), porque o mais importante é a fusão harmoniosa entre forma e conteúdo de tal maneira que o que se veja ali é uma obra instigante, inovadora e não a repetição pobre de modelos prévios mal assimilados. Além disso, a própria técnica pode se reinventar continuamente, agregando novos elementos, de modo ousado, desrespeitando certos convencionalismos e buscando novos meios de expressão a partir da revisão dos convencionais pontos de uma suposta gramática do cinema esclerosada e dogmatizada.

Da mesma forma que gramáticos não costumam ser grandes romancistas ou poetas, os que seguem à risca padrões formalistas do cinema e confundem técnica com estética (por exemplo, enquadramentos, cortes, sequências etc.) podem fazer obras mortas, sem vida, sem dramaticidade, sem tensões estéticas porque não percebem que estética não é uma lista de técnicas de montagem e movimentos de câmera a serem seguidas de forma prioritária (aliás, na boa arte cinematográfica, quando a técnica aparece muito, em detrimento do ritmo do conteúdo narrativo, que causa uma emoção pessoal no espectador, vemos que a obra em questão não é de qualidade artística, mas mero exercício desprovido de alma, de tecnicalidades; fenômeno típico de momentos em que certas correntes de artes entram em decadência e caem no maneirismo). Não há como fugir a esta questão estética (e ética): na arte há sim, sempre, uma valoração, uma escala de valores, de modo que se pode falar em belo, feio, boa, má e medíocre qualidade de alguma obra. Não se trata de um produto científico feito à maneira da positivismo que se pretende neutro e supostamente isento de valores.

Cinema tem lá sua ligação, em última instância, sim, com os rituais. Ainda há a necessidade de ir em busca dele, de sair de casa, entrar em uma sala escura qualquer (que pode ser uma sala tradicional de cinema, um museu, ou a sala de TV de uma casa), para se dedicar, por algum tempo, com o máximo de concentração que for possível, para ver uma obra audiovisual qualquer. Para fazer parte deste ritual, há que se ter paciência para com a duração e estar preparado para mergulhar nesta janela para o mundo que a obra cinematográfica propõe. Por isto mesmo, há esta diferença conceitual entre cinema e televisão, mesmo em meio a tantas mudanças de paradigmas. Ainda é necessário, mesmo que de modo abstrato, desligar-se do entorno momentaneamente para mergulhar no que propõem a obra (isto pode até se dar dentro do metrô, ou de um ônibus, com fone de ouvido, vendo, pelo celular, algum vídeo pelo YouTube, por exemplo; mas, pelo menos abstratamente, é preciso se desligar do entorno e ter um mínimo de paciência com a duração).

Há públicos específicos que podem receber de um jeito ou de outro, qualquer obra audiovisual. Nem sempre ela irá agradar a todos o tempo todo. O mair provável é que não o fará. Uma das piores das características das televisões abertas, em meados do século XX, era exatamente isto, por falta de alternativas, todos, crianças, meninas e meninos, adolescentes, adultos e velhos, mulheres e homens, de todas as classes sociais e regiões geográficas do país, tinham que se contentar com o massacre imposto pela indústria alienante de massas, baseada em um suposto gosto médio do público em geral. Era deprimente e não por acaso a musiquinha do Fantástico causava aquela sensação de depressão medida por pesquisas psicológicas. Era uma dominação ideológica entorpecedora e castradora sim.


Alberto Nasiasene


Jaguariúna, 6 de janeiro de 2018

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